Via de regra, nas lanchas a forma costuma seguir muito mais a função do que ser seguida por ela. Claro, há elementos de design diferentes em cada modelo, mas a forma básica das lanchas é quase sempre a mesma. É por isso que estamos falando que esta lancha com motor Ferrari e desenho inspirado nos antigos carros de corrida da Scuderia é uma das coisas mais bonitas que já vimos. Como é que passamos tanto tempo sem conhecê-las?
Na verdade, lancha sequer é o termo correto: trata-se de um hidroplano, espécie de barco que literalmente plana sobre as águas, fazendo contato com a superfície apenas pelos lemes e pela hélice – o restante do casco apenas toca a superfície. Por navegar desta forma, os hidroplanos são muito mais velozes que as lanchas comuns. Nos anos 60, era comum que se disputasse corridas com hidroplanos, e a velocidade atingida não raramente superava os 200 km/h.
Foi um entusiasta italiano destas lanchas, Guido Manzino, quem em 1957 encomendou ao estaleiro San Marco, de Milão, uma dos mais requisitados da Itália, um hidroplano com motor Ferrari. Ele mesmo foi atrás do motor: um V12 de 4,5 litros vindo de uma legítima Ferrari de corrida.
Isto ficava claro no desenho da “carroceria” de fibra de vidro instalada sobre o casco de madeira. Naquela época, fibra de vidro era a última palavra em construção de veículos, mas ou menos como a fibra de carbono é hoje. A San Marco foi uma das pioneiras da utilização de fibra de vidro em hidroplanos, aproveitando que o material era mais leve que o alumínio usado na maioria das vezes.
O carro que cedeu seu motor ao San Marco V12, porém, não era um monoposto, e sim um cupê: a Ferrari 375MM, que participava do WSC de 1953 e fez sua estreia nas 24 Horas de Le Mans naquele ano. Sua última corrida foi a Carrera Panamericana de 1953, na qual o carro bateu a mais de 280 km/h e só deixou intacto o motor.
Projetado por Aurelio Lampredi, com comando simples nos cabeçotes, duas válvulas por cilindro e três carburadores, o V12 de 4,5 litros era capaz de girar a mais de 7.000 rpm e produzir 345 cv.
No hidroplano, o motor ficava na dianteira, sob o “capô”, e movia a hélice diretamente através de um árvore de transmissão ligada diretamente ao virabrequim (note que ele não tem uma alavanca de câmbio no cockpit). A hélice girava na mesma velocidade do motor, que em sua nova aplicação chegava a, no máximo, 6.600 rpm, com isso, a potência ficou 5 cv menor.
A madeira também não era qualquer madeira: era mogno sólido no casco e na estrutura, e compensado naval na estrutura da carenagem de fibra. O desenho aerodinâmico da embarcação ajudava a dianteira a levantar. A parte traseira do casco, então, pressionava a água para baixo e para a frente. Como o barco ficava inclinado, a água acabava ajudando a empurrar a parte da frente do casco para cima. Quanto mais rápido o hidroplano ia, mais o casco se levantava, até “planar” sobre a água.
Este é o princípio de funcionamento de todo hidroplano até hoje, embora atualmente eles tenham turbinas e sejam capazes de passar dos 500 km/h em competições de velocidade. No caso do San Marco, o que impressiona é como o barco consegue desempenhar sua função tão bem e ainda ser tão bonito. Suas formas são tão bem resolvidas e atemporais que ele até poderia ser confundido com um hidroplano moderno caso o interior tivesse acabamento em plástico, fibra de carbono e couro em vez de madeira e metal. É atemporal e irretocável.
O comprimento de fora a fora (LOA, ou length overall) é de 5,4 metros, enquanto a largura (ou “boca”, em termos náuticos) era de 2,5 metros. O San Marino V12 pesa 800 kg, e seu motor de 345 cv é capaz de levá-lo até os 220 km/h de velocidade máxima.
Manzino costumava deixar seu hidroplano no lago de Como, em Milão, uma das locações mais glamourosas da Itália, onde ficava o iate clube que frequentava. Ele usava pouco o veículo, nunca por mais de 15 minutos, e só participou de uma corrida. Não demorou muito para que, em 1969, Manzino vendesse o San Marco V12 a um jovem entusiasta chamado Dody Jost, que mandou restaurá-lo por completo. Há alguns anos, o hidroplano foi inspecionado por oficiais da Ferrari Classiche, divisão da companhia responsável por preservar e autenticar modelos históricos. Eles conferiram a procedência do motor, e o San Marco V12 recebeu o selo de aprovação.
Dito isto, ele não foi o primeiro hidroplano com motor Ferrari. Antes dele, em 1953, a italiana Timossi criou o Arno XI, hidroplano de corrida que também usava um V12 Ferrari de 4,5 litros – não vindo de um carro de corrida batido, mas comprado novo e preparado com um aumento na taxa de compressão para chegar aos 385 cv. Mais tarde, dois superchargers foram adicionados à para que a potência chegasse a cerca de 600 cv.
O motor era capaz de girar a até pouco mais de 7.000 rpm mas, diferentemente do que foi feito com o hidroplano da San Marco, a hélice era ligada a uma caixa de câmbio e, com isto, girava a 10.000 rpm.
O Timossi-Ferrari Arno XI também tinha casco de madeira e carroceria de fibra de vidro. Embora não parecesse tão futurista e moderno quanto o San Marco V12, também era feito de forma artesanal, com pintura Rosso Corsa e emblemas genuínos, além de um interior que poderia ter saído de qualquer Ferrari de corrida da década de 50. Mesmo a preparação do motor foi acompanhada pela Ferrari através de Stefano Meazza, engenheiro-chefe da Scuderia em 1953, que supervisionou as modificações.
Em outubro de 1953, o Timossi-Ferrari Arno XI foi levado para um lago na Lombardia onde, com Achille Catoldi no comando, atingiu os 241 km/h. Com isto, superava por uma boa margem o recorde anterior, de 226 km/h.
Em 1958, Castoldi vendeu o Arno XI a outro entusiasta italiano chamado Nando dell’Orto. Ele seguiu usando o barco em eventos de velocidade, mas aposentou-se em 1968, deixando o hidroplano guardado em uma antiga fábrica de papel em Milão. Lá, a lancha ficou guardada até o início dos anos 90, quando trocou de mãos mais uma vez.
Em 2004, o hidroplano foi completamente restaurado por seu então novo dono. A estrutura do casco de mogno foi refeita, incluindo o subchassi de metal; a carroceria teve a pintura removida e depois aplicada novamente, e o interior foi todo revisado para ficar totalmente fiel ao que era na década de 50.
Leiloado pela RM Sotheby’s em 2012, durante um evento em Monaco, o Arno XI arrecadou nada menos que € 868 mil, o que dá o equivalente a R$ 3,3 milhões em valores atuais.