Ferdinand Porsche pode ser considerado pai do VW Fusca, avô do 911 e bisavô do 911. Mas um dos primeiros veículos projetados por ele era algo completamente distinto e até surpreendente: um carro chamado Löhner-Porsche Mixte, que tinha motores elétricos nas rodas e, em versões posteriores, incorporava um gerador a gasolina – o que fez dele o primeiro veículo híbrido da história.
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Embora não tenha sido produzido em massa, o Löhner-Porsche estava à frente do seu tempo. E não apenas porque sua tecnologia foi aproveitada, anos mais tarde, em locomotivas e ônibus; mas também porque hoje em dia existem automóveis que empregam basicamente o mesmo princípio. E isto inclui superesportivos como o próprio Porsche 918 Spyder, que combina um motor a combustão a motores elétricos, e o Rimac Concept_One, que traz um motor elétrico para cada uma das rodas – entregando ao todo 1.224 cv e 163,1 mkgf de torque instantaneamente. O rendimento não decepciona: o 0-100 km/h é cumprido em 2,6 segundos e a velocidade máxima é limitada em 355 km/h.
Dito isto, o Rimac Concept_One é uma boa demonstração do caminho que as novas tecnologias costumam seguir: depois da fase experimental, elas são aperfeiçoadas e aplicadas em produtos high-end, exclusivos, antes de serem adaptadas para a adoção em massa – quando já ficaram mais baratas e viáveis para a produção e comercialização em grande volume. Em alguns casos são necessárias adaptações fundamentais ao conceito para torná-lo mais acessível. O Rimac um dos primeiros hipercarros com motores elétricos individuais a sair do papel e da fase de conceito para chegar ao mercado – com uma evolução do princípio do Löhner-Porsche. Agora, uma companhia norte-americana chamada Orbis pretende levar a ideia ao grande público.
Como? Bem, podemos dizer que eles estão tentando “reinventar a roda”.
O caso é que “reinventar a roda” é uma expressão que utilizamos quando alguém procura uma solução mirabolante ou desnecessariamente complexa para um problema que não existe. E, às vezes, esta solução acaba criando problemas de verdade. Parece que este é o caso aqui, como vamos explicar a seguir.
De acordo com o CEO da Orbis, Marcus Hays, o conceito de hub motor – um motor elétrico para cada roda – existe há quase 130 anos, começado exatamente pelo Löhner-Porsche. No entanto, nos sistemas disponíveis comercialmente os motores ficam posicionados nos semi-eixos, o que reduz a massa não-suspensa e melhora a qualidade da rodagem. Só que estes motores ainda são pesados (cada um pesa algo entre 30 e 50 kg) e, segundo Hays, ainda precisam transmitir sua força para as rodas através de uma ligação mecânica. Somado à inércia rotacional que os motores precisam vencer para tirar o carro da imobilidade, o resultado é uma redução significativa na eficiência energética e, consequentemente, na autonomia do veículo.
A solução, de acordo com a Orbis, é substituir os motores inboard por motores elétricos montados diretamente nas rodas, que são muito mais leves e conseguem produzir, proporcionalmente, a mesma força que os hub motors convencionais.
No sistema, chamado Ring-Drive, as rodas são substituídas por aros (ou “anéis”, como são chamados pela Orbis) que acomodam os motores elétricos, cada um deles com potência equivalente a 70 cv. Os motores fazem contato com as rodas através de três pares de rolamentos – um deles na posição das “5 horas”, outro nas “7 horas” e um terceiro, nas “12 horas”, usado para fixar a roda na posição vertical. Os rolamentos fazem parte de uma estrutura onde ficam acomodados os componentes que “sobram” do arranjo tradicional – freios e braços da suspensão. É quase como ter um motor no cubo da roda, literalmente.
Como o motor fica montado diretamente na roda, o torque necessário para movimentar a mesma é, segundo a Orbis, até 20 vezes menor do que o necessário em um motor elétrico instalado inboard – o que permite que se use um motor muito mais compacto e econômico, sem prejuízo à potência. E a companhia escolheu o Honda Civic Type R como veículo de demonstração.
Pelo que diz a Orbis, o resultado prático é um Type R com 460 cv (os 320 cv do motor K20 turbo, mais 140 cv dos dois motores elétricos) e com tração integral – com direito a vetorização de torque, visto que é possível controlar de forma individual a força produzida por cada motor. É possível ter mais estabilidade nas curvas, reduzir o tempo de zero a 100 km/h em até 1 segundo (ou seja, de 4,9 segundos para 3,9 segundos) e ainda ganhar em economia de combustível – pois, na prática, o Type R se torna um “híbrido”.
Além disso, a Orbis diz que o conjunto completo, ou seja, motor mais aro, é mais leve que uma roda de 18 polegadas convencional usada pelo Civic Type-R – são 4,9 kg contra 5,2 kg – o que também contribui para melhor eficiência dos freios, maior estabilidade nas curvas e mais eficiência energética. Mas… será que é mesmo uma boa ideia?
Nós encontramos uma série de problemas com o projeto. Primeiro, a instalação: segundo a Orbis, trata-se de um protótipo feito com a funcionalidade em primeiro lugar – no produto finalizado não haverá tantos componentes móveis expostos aos elementos, colisões e detritos em alta velocidade. Mas ainda assim é preciso pensar no fato de que, como o motor está trabalhando na extremidade do eixo, toda a vibração produzida ao rodar sobre pisos irregulares seria multiplicada e transferida para o motor elétrico, que poderia simplesmente não suportar o estresse e quebrar.
Além disso, há algumas questões práticas que até nos surpreendem. Começando pelo peso do sistema. O CEO da Orbis diz que a roda pesa 4,9 kg, mas ele provavelmente se refere apenas ao aro externo – não há possibilidade de o conjunto todo ser mais leve que, por exemplo, uma RAYS Volk TE37, que pesa cerca de 5 kg. Para onde iria o benefício da redução de peso?
Depois, há todos os elementos móveis expostos e sujeitos a contaminação de diversas fontes – óleo, poeira, água, neve. A superfície de contato do aro com o rolamento (a “pista” da roda) precisa ser limpa e seca. Se contaminada, pode comprometer irreversivelmente o funcionamento do sistema ou, na melhor das hipóteses, anular a força gerada pelo motor elétrico, com os rolamentos girando “em falso” – algo que poderia até fazer o carro rodar, caso a diferença entre o torque produzido por cada um dos motores variasse muito de forma não intencional. Para resolver esta questão, o sistema teria de ser praticamente selado – e aí, esbarraria em outra barreira técnica: o calor gerado pelo atrito dos rolamentos com o aro, e também pelos próprios motores. Considerando que uma das principais funções do desenho de uma roda tradicional é a dissipação do calor, como esta dissipação aconteceria em um Ring-Drive selado? O calor iria diretamente para os freios e para os pneus – o que seria bastante indesejável se considerarmos que a temperatura ideal em um pneu de rua não passa de 60°C. Em um semi-slick, esta temperatura fica na casa dos 80°C. Um sistema de arrefecimento dedicado adicionaria peso ao conjunto e anularia quaisquer supostos benefícios.
Ou seja: para o Ring-Drive funcionar “no mundo real”, o curso da suspensão teria de ser mínimo e a superfície de rodagem, virtualmente perfeita. Sem falar no fato de que os motores se tornariam presa fácil para ladrões, que veriam neles uma forma fácil de obter componentes elétricos que, se vendidos separadamente, podem valer um bom dinheiro. No protótipo funcional, foi improvisada uma cobertura de plástico transparente para proteger as partes móveis, mas uma solução mais eficaz teria de ser desenvolvida para o mercado.
O teste começa na marca dos 3:00
Além disso, é bom lembrar que existem outras companhias envolvidas em projetos parecidos. Uma empresa chamada Protean já oferece há alguns anos um motor elétrico que pode ser adaptado na parte de trás de uma roda convencional. Mas ele esbarra no mesmo problema: atualmente, seus motores pesam cerca de 30 kg cada — o que não fica muito longe de um motor inboard, mas novamente temos a desvantagem da massa não suspensa.
Não é nossa intenção desencorajar iniciativas inovadoras e que podem trazer reais benefícios não apenas à indústria automotiva ou aos entusiastas, mas à sociedade de uma forma geral. É preciso, contudo, saber diferenciar entre uma tecnologia viável e uma invenção que promete soluções quase milagrosas, mas (ao menos por enquanto) possui falhas quase imperdoáveis que, na prática, a tornam inviável.