Você acha que o excesso de burocracia e um governo atrapalhão são exclusividades brasileiras? Então sente-se que o Leo vai contar uma história que tem cor, cheiro e gosto de Brasil, mas que aconteceu na toda-poderosa Inglaterra.
O ano era 2014, mais precisamente 17 de fevereiro de 2014. Um deslizamento acabou danificando parte da rodovia A431, que liga o vilarejo de Kenston à cidade de Bath e, ao averiguar a extensão dos danos, É exatamente o que se espera de um governo, que agiu para proteger as pessoas e impedir a possibilidade de um grave acidente.
O problema é que a interdição não tinha prazo para ser encerrada: enquanto o solo não fosse estabilizado — por meios naturais ou métodos de engenharia — a rodovia não poderia ser reformada ou reaberta. Para piorar a situação, outras rotas também estavam fechadas — uma devido à construção de um túnel ferroviário, e a outra também por um deslizamento. A única alternativa ao trajeto de 8 km era um desvio que acrescentava outros 16 km à viagem, praticamente triplicando a distância entre as duas cidades. O governo resumidamente fechou a rodovia, virou as costas aos moradores dizendo “desculpem, não é seguro, vocês precisarão usar a outra estrada mais longa, mas um dia reabriremos o caminho”.
Passados três meses, o comércio local viu suas finanças definharem. O dono do pub local, Dean Chappell, disse à BBC que logo na primeira semana seu faturamento havia despencado 40%. Os moradores viram seus gastos com combustível saltar de 25 libras para 60 libras por semana (de R$ 105 para R$ 255, aproximadamente) e qualquer compromisso que, normalmente, exigiria uma viagem de 10 ou 15 minutos de carro passou a demorar quase uma hora.
Sim, é uma situação complicada para os moradores e, aparentemente não há muito o que fazer diante das circunstâncias, mas há um detalhe que muda tudo: o trecho interrompido tinha menos de 100 metros, e para continuar usando a rodovia bastaria fazer um desvio pelos terrenos às suas margens.
E foi exatamente o que um morador local decidiu fazer. O empresário Mike Watts, de 62 anos, conversava a respeito com sua esposa quando ela sugeriu que ele fizesse um desvio por sua propriedade. Depois de hipotecar sua casa para obter as 300.000 libras necessárias para a construção da estrada e de uma cabine de cobrança (que não usava cancela, vale observar) o sr. Watts inaugurou a Kelston toll road (“toll road” é o nome britânico para “estrada pedagiada”) no dia 1º da agosto de 2014 — sem nenhum tipo de autorização do governo.
A estrada do sr. Watt é o trecho cinza. A rodovia pública está em rosa, com o trecho interditado indicado por rosa e branco
Por apenas 2 libras, qualquer veículo de até 3,5 toneladas tinha sua passagem liberada pelo desvio de 365 metros, e poderia voltar a realizar o percurso em pouco mais de 8 km e 15 minutos. As motos pagariam metade. O dinheiro arrecadado com o pedágio seria usado para cobrir o investimento do sr. Watts.
O plano inicial era recuperar as 300.000 libras em cinco meses — os cinco meses nos quais a rodovia principal ficaria fechada, segundo uma previsão inicial do governo (que depois aumentou o prazo para seis meses). Para isso, seria preciso que 150.000 carros pagassem a tarifa — uma média de 1.250 carros por dia, o que não seria difícil, uma vez que, segundo as estatísticas do Departamento de Transportes, mais de 7.000 carros passaram por ali diariamente nos 10 anos anteriores. “Se isso não der certo, vou perder minha casa. Wendy e eu tomamos esta decisão juntos por nós e pelas pessoas que conhecemos”, disse o sr. Watt na época em uma entrevista ao jornal Telegraph.
A construção deu certo e agradou os moradores da região. O sr. Chappell do pub, por exemplo, chegou a bancar a tarifa para os clientes que gastassem mais de 20 libras em seu estabelecimento, e uma outra moradora, mãe de duas crianças, disse ao mesmo jornal que uma ida ao médico com os filhos exigia um desvio enorme, e o que o sr. Watt fez foi “brilhante”.
Mas, como sabemos, não se pode agradar todos ao mesmo tempo — e o sr. Watt obviamente desagradou algumas pessoas no processo. Nesse caso, o governo local que não gostou de ver um cidadão construindo uma rodovia sem sua autorização. “Temos ciência das dificuldades que os moradores estão passando desde a interdição emergencial, e já iniciamos os trabalhos para entregar uma solução permanente, mas não encorajamos propostas que não tenham se provado seguras ou de acordo com a regulamentação vigente”, disse o porta-voz do governo na época. “O governo não tem detalhes para confirmar que a estrada atende os padrões de segurança, nem evidências de que os seguros atendem qualquer cidadão que use a rodovia privada”, completou.
No mês seguinte, em setembro de 2014, o sr. Watts enviou às autoridades locais um pedido de permissão retroativo, que foi aprovada em 3 de outubro daquele ano — depois do pagamento da taxa de 25.000 libras. Como se não bastasse, o sr. Watts recebeu uma guia de recolhimento sobre os “lucros” da rodovia, no valor de 3.500 libras.
Apesar da aprovação, a autorização não foi expedida antes do final daquele mês e ainda acabou retida por mais um mês. O motivo nunca foi esclarecido, mas ao mesmo tempo o governo local conseguiu 660.000 libras para antecipar o reparo da rodovia principal.
e a Kelston toll road foi fechada. Na ocasião o sr. Watts disse que havia acumulado um prejuízo de cerca de 10.000 a 15.000 libras, apesar dos mais de 160.000 veículos que usaram sua estrada privada. .
Após a reabertura da rodovia principal, o sr. Watt fechou sua estradinha e deixou que a natureza tomasse conta do caminho de asfalto. Já o governo de Sommerset precisou gastar outras 2 milhões de libras para providenciar uma nova fundação para o reformar definitivamente o trecho danificado da A431.