Na metade dos anos 1980 a Ferrari decidiu entrar para valer no mundo dos ralis preparando um modelo exclusivo para disputar o Grupo B. O resultado desse esforço foi a Ferrari 288 GTO, que rivalizaria com o Porsche 959 nos estágios do WRC. Essa briga, como sabemos, nunca aconteceu pois o Grupo B acabou cancelado após uma série de acidentes fatais com pilotos e espectadores na temporada de 1986.
Usar uma Ferrari como carro de rali pode soar estranho — especialmente um modelo em forma de cunha e de perfil baixo como a 288 GTO – mas é exatamente o que a Scuderia Michelotto fazia desde o fim dos anos 1970. Na verdade seus anos de experiência nos ralis de terra e asfalto que mostraram à Ferrari qual seria a base ideal para se fazer um carro de rali vencedor: a 308 GTS.
Quando a Ferrari lançou a 308 para ser seu “verdadeiro” modelo de entrada em 1975, ela não tinha a menor intenção de colocá-la para correr nas pistas — afinal, naquele mesmo ano eles estavam muito bem na Fórmula 1, com Niki Lauda ao volante de seus monopostos e um carro competitivo. Enzo Ferrari acabou mudando de ideia no ano seguinte, talvez empolgado com o título de sua equipe e de seu piloto na temporada anterior da Fórmula 1, e passou a construir as 308 de corridas de acordo com o regulamento do Grupo 4 da FIA.
Para não atrapalhar o andamento da equipe de F1, as 308 de corridas foram produzidas pela divisão “Assistenza Cliente” (o atendimento da Ferrari aos clientes comuns). Ainda no começo de 1976 a Ferrari homologou a 308 de testes e começou o seu desenvolvimento na pista de Fiorano com a intenção de competir em provas de endurance. Os planos foram barrados pela Fiat, que já controlava 50% da empresa e restringiu a atuação da Ferrari à Fórmula 1.
Sem poder correr com o carro, a Ferrari decidiu terceirizar a produção da 308 do Grupo 4, encarregando Giuliano Michelotto do serviço — ele era um concessionário da Ferrari em Pádua e já havia preparado os Lancia Stratos de rali em sua oficina no começo da década. Além da autorização para produzir os carros, a Ferrari deu um bom nível de ajuda “extra-oficial” a ele.
A Michelotto recebia os chassi desmontados da Ferrari e construía todo o resto do zero — incluindo motor e carroceria. O V8 de três litros recebia novos pistões para aumentar a taxa de compressão, sistema de injeção eletrônica Kugelfischer, cabeçotes e tampa do virabrequim de liga leve de alumínio, e lubrificação por cárter seco. Como resultado, o Tipo F106 produzia 315 cv a 8.000 rpm.
Como um bom carro de corridas, o câmbio tinha cinco marchas encurtadas em relação às originais e um diferencial de deslizamento limitado de 80/20. Os freios eram da Lockheed com circuito duplo, e usavam pinças de quatro pistões para alicatar os discos de 305 mm.
A carroceria original de fibra de vidro (e mais tarde de alumínio) teve várias partes feitas de Kevlar ou fibra de vidro com menor espessura. A principal modificação eram os para-lamas alargados para cobrir as rodas Campagnolo, idênticas às que Michelotto usou nos Lancia Stratos. Por dentro, a cabine era toda modificada e recebia painel liso, gaiola completa e bancos concha.
A primeira 308 GTB do Grupo 4 ficou pronta em 1978 e estreou na Targa Florio de 1978, mas não conseguiu completar a tradicional prova italiana. A vitória, contudo, veio no mesmo ano, no Rallye del Monza. Depois desta, a Michelotto fez outras três 308 entre 1980 e 1983, feitas a partir de carros novos ou usados. Um desses modelos, a 308 chassi 19051 conseguiu a vitória geral na Targa Florio de 1981.
Com o fim do Grupo 4 da FIA e a criação do Grupo B como seu substituto, a Michelotto passou a produzir as 308 com as especificações da nova categoria a partir de 1983. As 308 do Grupo B usavam motores de 310 cv com quatro válvulas por cilindro e tinham suspensão mais elevada e reforçada, além de freios Brembo. Elas também ficaram 30 kg mais pesadas, mas isso não as impediu de conseguir bons resultados antes da chegada dos monstros de tração integral.
Uma dessas Ferrari feitas pela Michelotto era esta 308 Grupo B que será leiloada no próximo dia 4 de fevereiro pela RM Auctions. Ela foi fabricada para o piloto Antonio Zanini, heptacampeão espanhol de rali que procurava um carro especial para a temporada de 1984. Zanini viu na Ferrari 308 a ferramenta ideal para manter o trofeu de campeão nacional pela oitava vez.
Ele então procurou o representante da Ferrari na Catalunha e perguntou se ele por acaso não teria uma 308 para um multicampeão disputar uns ralis. O concessionário deu a ele uma 308 GTB original de fábrica, e Michelotto foi chamado para fornecer os componentes e supervisionar a construção do carro na Espanha. Da Itália vieram as bandejas aliviadas da suspensão, freios AP Lockheed, barras estabilizadoras mais grossas, caixa de direção de relação mais curta, câmbio e embreagem e amortecedores ajustáveis para as quatro rodas — tudo homologado pela Michelotto.
O motor era um pouco menos potente que os carros fabricados pela Michelotto na Itália, tinha “apenas 280 cv” e a carroceria não tinha modificações além do conjunto de faróis auxiliares, que foi instalado em posição mais baixa a pedido de Zanini.
Contudo, o carro não ficou pronto para a abertura da temporada, e Zanini usou uma outra 308 Grupo B feita pela Pro Motor Sport. O projeto acabou atrasando ainda mais e ficou pronto somente no fim da temporada, quando Zanini já tinha assinado um contrato com a Pro Motor Sport.
A Ferrari acabou estreando somente na última corrida do campeonato, com Fernando Serena Jr. — filho do concessionário catalão — ao volante, mas acabou tendo um problema na linha de freios e abandonou a corrida. Enquanto isso, Zanini tornou-se campeão espanhol pela oitava vez.
A Ferrari 308 do Grupo B voltou a correr outras provas do campeonato espanhol em 1985, mas foi aposentada naquele mesmo ano. Desde então, o carro rodou apenas 20 km desde então. Agora, ele está a venda sem valor de reserva e a RM Auctions espera que ele troque de mãos por US$ 385.000.