Games de corrida monomarca costumam ser vistos com desconfiança pelos jogadores. Não porque ser monomarca é algo ruim por si só, mas porque as chances de o game ser algo feito meio que nas coxas, para fins promocionais, e não um jogo “sério”, por assim dizer, são relativamente grandes.
Ainda não é assinante do FlatOut? Considere fazê-lo: além de nos ajudar a manter o site e o nosso canal funcionando, você terá acesso a uma série de matérias exclusivas para assinantes – como , , e muito mais!
Um exemplo relativamente conhecido é Ford Simulator, uma franquia de “games” distribuídos pela própria Ford que rodavam no Windows e tentavam passar a experiência de comprar um Ford na concessionária (usando uma espécie de catálogo virtual interativo) e dirigi-lo por aí. Todos eles eram muito ruins enquanto jogos, mas também eram uma forma interessante de apresentar a linha da Ford a um público mais ligado em tecnologia.
Ford Simulator: o bizarro game de corrida que a Ford fez nos anos 1980
Mas quando uma fabricante de automóveis resolve fazer um game bom de verdade, os resultados podem ser incríveis. A Porsche, em parceria com a EA Games, por exemplo, produziu o clássico Need for Speed: Porsche Unleashed, que virou meio que um clássico cult por oferecer uma jogabilidade distinta de todos os NFS que vieram antes ou depois. Já a Ferrari teve o impecável F355 Challenge, lançado em 1999 para arcades e logo depois para consoles (o Dreamcast da Sega e o PlayStation 2 da Sony).
Apesar de ser basicamente um game promocional para a Ferrari F355, que na época estava prestes a dar lugar à 360 Modena. Então, F355 Challenge acabou sendo meio que uma despedida. E o game tinha todos os ingredientes que um bom jogo de corrida precisava ter há vinte anos: dinâmica precisa, bons gráficos, diversos modos de jogo e conteúdo adicional para desbloquear. E, claro, a máquina de arcade com três telas, três pedais e alavanca de câmbio em “H” também tinha seus fãs…
Na época de lançamento de Ferrari F355 Challenge, os games tridimensionais já estavam bem estabelecidos como “o futuro” dos jogos. Gran Turismo, que inovou ao introduzir elementos de simulação em um arcade, já tinha dois títulos. Need for Speed, que nasceu em 1994 quase como um devaneio da revista Road and Track, já havia dado origem a quatro jogos e estava prestes a ganhar “Porsche Unleashed”, seu quinto game. E isso porque nem falamos de franquias menores, porém excelentes, como Test Drive ou Ridge Racer.
Então, era preciso algo realmente bem feito para que F355 Challenge pudesse se destacar. E então, em vez de quantidade, os desenvolvedores miraram na qualidade, mesmo que isso sacrificasse a variedade.
A mente por trás de F355 Challenge foi ninguém menos que Yu Suzuki, que foi chefe do time AM2 da Sega por 18 anos, deixando a empresa em 2008. A AM2 era uma equipe de developers focada em experimentações e inovação, e Yu Suzuki honrava essa tarefa. Foi Suzuki, afinal, quem criou o primeiro game de corrida em 3D de verdade, Virtua Racing, lançado em 1992 para arcades. Antes disso já havia jogos em 3D, como o pioneiro Hard Drivin’, mas Suzuki e sua equipe foram os responsáveis por fazer o 3D passar de uma mera curiosidade a algo realmente jogável, com movimentação fluida (60 fps em 1992, baby!), até oito jogadores em gabinetes interligados, replay com múltiplas câmeras e física precisa. Todo game de corrida em 3D feito hoje, sem exceção, deve algo a Virtua Racing.
Antes disso, porém, Suzuki já havia professado seu amor pela Ferrari em outro clássico: Out Run. O clássico de 1986 também teve sua dose de inovações, mesmo que ainda fosse em 2D – o gabinete de arcade com um sistema hidráulico para simular movimentos, os diferentes trajetos para escolher, e até mesmo a escolha da música antes de cada sessão foram novidades imitadas por toda a indústria nos anos seguintes.
Quando chegou a hora de desenvolver um arcade em parceria com a Ferrari, Yu Suzuki ficou empolgadíssimo. Ele próprio tinha sua F355 na época (dizem que ele só conseguiu comprá-la graças ao sucesso de Out Run), e isto foi crucial para que F355 Challenge pudesse passar a sensação de conduzir uma Ferrari de verdade. Ainda que, no game, a F355 usada fosse algo bem mais radical.
O processo foi mais ou menos o seguinte: o game F355 Challenge foi criado com total inspiração no carro e na competição de mesmo nome. O campeonato F355 Challenge foi criado para que os clientes da Ferrari pudessem disputar corridas na pista com todo o suporte de fábrica. E a F355 Challenge foi criada para ser o carro usado no campeonato. Entendeu?
A Ferrari F355 usava o modelo de rua como base, e usava o mesmo V8 de 3,5 litros e 380 cv. O que ela tinha de diferente? Quase todo o resto: vinha de fábrica com gaiola de proteção integral, bancos concha, cintos de competição, extintor de incêndio, volante de cubo rápido, escape mais leve, aerodinâmica retrabalhada, freios Brembo com dutos de arrefecimento, pneus slick Pirelli e suspensão bem mais firme.
A F355 Challenge, obviamente, era o único carro disponível em Ferrari F355 Challenge. Então, não havia desculpa para não torná-la o mais fiel possível à realidade.
Usando seu próprio carro como referência, Yu Suzuki conseguiu transmitir as mesmas reações da F355 em uma pista para o game: as reações volante, a inércia atuando sobre a carroceria nas frenagens, o feedback dos pedais e o comportamento da suspensão.
Obviamente, o sistema necessário para rodar o game tinha de ser muito robusto. Assim, F355 Challenge tirava proveito da recém-lançada placa NAOMI da Sega, que usava a mesma arquitetura do Dreamcast, porém com maior capacidade de processamento. E a cabine projetada para abrigar o sistema, meus amigos… era praticamente uma obra de arte: seus três monitores, posicionados de modo a “abraçar” o jogador, permitiam uma visão completa do que vinha à frente e dos arredores, proporcionando uma experiência extremamente imersiva. O volante com force feedback era complementado pelo jogo de pedais com acelerador, freio e embreagem – e só com ela era possível operar o câmbio manual de seis marchas com grelha, exatamente como no carro de verdade.
Aquilo levou os jogadores à loucura. Pela novidade, claro, mas também pelo desafio: F355 Challenge era extremamente difícil.
A versão original, para arcades, chegava a assustar. Você colocava sua ficha e de cara tinha de escolher entre uma das seis pistas, todas do mundo real: o oval de Motegi, Suzuka (a versão mais curta ou o traçado completo), Monza, Sugo e Long Beach. Depois, escolhia-se o nível de dificuldade entre Novice, Intermediate e Simulator, e ao escolher esse último o jogo até perguntava se você tinha certeza da escolha. Por fim, você escolhia entre os modos Training, Driving e Racing.
Os dois primeiros modos eram opcionais. Training, como o nome dizia, era uma espécie de tutorial que te ensinava os controles básicos e te guiava pelo traçado com uma linha vermelha. Em Driving, as dicas de pilotagem e a linha vermelha do traçado sumiam, e você ficava sozinho na pista para “pegar as manhas”. Pronto? Hora da corrida.
F355 Challenge só tinha a câmera do cockpit, e ela era posicionada bem perto do para-brisa. O painel do carro não aparecia, mas tudo bem: havia uma excelente reprodução do painel da F355 no gabinete, o que realmente fazia parecer que você estava em uma Ferrari.
Com o vídeo em 60 quadros por segundo, o ronco do V8 muito bem sintetizado e movimentos de câmera muito bem acertados, você só tinha que pilotar bem. Graças aos estudos de Yu Suzuki com sua própria F355, era preciso uma boa dose de habilidade para frear na hora certa, trocar as marchas no momento exato e não contar com as regalias típicas dos arcades, como “paredes de borracha” nos limites da pista e carros que não perdem velocidade mesmo após pancadas monstruosas. A AI do jogo também era consistente e desafiadora na medida certa. Nas retas, os rivais até tinham certa vantagem, nas ultrapassagens eles podiam te fechar e dificilmente havia um momento de tranquilidade, sem ninguém no retrovisor. Por outro lado, eles também cometiam erros: freavam cedo ou tarde demais, perdiam o momentum das curvas e se envolviam em acidentes. Yu Suzuki queria que F355 Challenge fosse desafiador por natureza, e não porque a máquina só pilotava de forma perfeita ou tinha carros mais rápidos. Imprevisibilidade era algo a ser usado a favor, e foi.
Ainda havia um sistema de checkpoints e, se você fosse lento demais, o contador acabava e você tinha que correr para o balcão do arcade para comprar mais fichas. Mesmo os melhores jogadores costumavam encerrar suas voltas no último instante, e quem já jogou garante que o sentimento de encerrar uma volta no momento exato em que o timer chega a “0” era recompensador.
Não foi por acaso que a Sega resolveu lançar uma versão doméstica de Ferrari Challenge pouco depois. Em 2000 o game chegava para o Sega Dreamcast, primeiro representante da sexta geração. O game era praticamente igual, exceto por usar apenas uma tela em vez de três (algo totalmente esperado, já que o arcade usava três processadores do Dreamcast), e também por trazer outras seis pistas desbloqueáveis, incluindo o oval de Atlanta, uma versão surpreendentemente fiel de Laguna Seca, Sepang, Nürburgring (GP, e não o Nordschleife) e a pista de testes da Ferrari em Fiorano – única onde você não podia disputar corridas.
Chamado F355 Challenge: Passione Rossa, o port para Dreamcast é considerado até hoje um dos que melhor se adaptaram aos consoles domésticos. Tanto que a versão de PS2, lançada em 2001, era praticamente igual, exceto pela adição de uma câmera em terceira pessoa que até tornava as coisas mais fáceis, mas não era indicada para quem quisesse ter a experiência completa. Para isso, na verdade, o negócio era mesmo procurar uma máquina de arcade.
É difícil transmitir em palavras o quanto F355 Challenge foi revolucionário. Mas basta puxar na memória e lembrar que aqui no Brasil, mesmo anos depois, para muitos moleques o auge da simulação em um arcade era Cruisn’ World, um game bem mais antigo e primitivo. As máquinas de F355 Challenge eram mais raras, reservadas aos grandes centros, e eram concorridíssimas. Com razão.