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Automobilismo História

Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 4: enfim a vitória

De volta aos EUA depois de mais um fracasso em Le Mans os diretores envolvidos no programa de automobilismo da Ford perceberam um clima pesado no ar. Pela primeira vez eles sentiam que seus empregos estavam ameaçados — especialmente depois que Henry Ford II enviou um simpático cartão postal a cada um deles, dizendo: “É melhor vencerem”.

A derrota na França havia sido humilhante. Somente um carro com motor Ford havia terminado a prova, um Cobra que ficou na oitava posição, com quase 600 km a menos que o vencedor. Ken Miles disse que aquela fora “a maior derrota já sofrida por uma equipe na história do automobilismo”. Ele tinha razão. Os motores tinham juntas de cabeçote defeituosas. Elas queimavam, a água vazava e o motor quebrava por superaquecimento.

Até então a Ford havia torrado US$ 6 milhões (cerca de US$ 48,7 milhões atualmente) em um programa que só resultou em uma vitória em 1965. O negócio já estava virando piada. Uma piada muito cara.

E esse não era o único problema: a Ford tinha clientes, como Rob Walker, herdeiro da destilaria escocesa Johnnie Walker, e dono de uma equipe de corrida. Ele havia comprado um dos GT40 para disputar Le Mans e o carro só durou três horas. Depois de ser ridicularizado pela imprensa, ele decidiu tomar uma atitude mais enérgica e chamou para uma reunião Don Frey, chefe da divisão Ford; Leo Beebe, relações-públicas da Ford, e Carroll Shelby, chefe da equipe de fábrica.

Com os três sentados no canto da sala como crianças de castigo na pré-escola, ele encarou fixamente cada um deles em silêncio antes de dizer: “Vocês levaram um chute no traseiro”. E entregou uma plaqueta de identificação na qual havia apenas uma frase escrita: “Ford vence Le Mans em 1966.” Enquanto os três desolados saíam da sala, Ford ainda acrescentou: “Vocês querem seus empregos, não?”.

 

Enquanto isso em Maranello

Enzo Ferrari sabia que a Ford viria com tudo para cima em 1966. Ele conhecia melhor que ninguém o que as dezenas de milhões de dólares da Ford eram capazes de comprar. Ele precisava de um carro novo, que veio na forma da 330 P3.

O modelo era uma evolução da 330 P2, equipado com mesmo o V12 de quatro litros do antecessor, porém com um sistema de injeção mecânica de combustível, o que elevou sua potência em mais de 100 cv. A nova carroceria era mais aerodinâmica e ainda mais baixa que a do Ford GT40, com apenas 37 polegadas de altura. Isso também ajudou na redução de quase 40 kg em relação ao 330 P2.

Questionado pela imprensa da época se um motor de quatro litros seria suficiente para derrotar o novo V8 427 (7 litros) dos Ford GT40 Mk II, Enzo Ferrari respondeu com uma confiança que escondia a folclórica teimosia italiana: “Um motor maior aumenta o consumo e aumenta o peso sobre as rodas, o peso para mudar de direção e o peso para frear. Tudo isso gera problemas que não são compensados pela pouca velocidade extra que o motor maior nos daria”.

A diferença de potência era razoável: a Ferrari tinha 420 cv e o Ford tinha 486 cv. Mas a Ferrari apostava na maior velocidade em curvas e no menor consumo para reduzir a vantagem de velocidade que os Ford tinham em linha reta.

 

Ford vs. Ford

O ultimato de Henry Ford II levou a uma mudança radical. Beebe e Frey formaram o “Le Mans Comittee”, um grupo de trabalho que se reuniria quinzenalmente até junho, quando aconteceria a edição daquele ano das 24 Horas de Le Mans. O grupo era formado por chefes de todas as divisões da Ford, que, ironicamente, não tinham experiência alguma em corridas. Mesmo assim, eles precisavam descobrir uma forma de vencer em Le Mans. A pressão de Henry sobre os subordinados era tanta, que o vice-presidente da Ford, Charles Patterson chegou a dizer que faria um câmbio folhado a ouro se fosse necessário.

Logo na primeira reunião eles tomaram uma decisão para estimular suas divisões esportivas a darem o melhor de si: a Ford teria duas equipes de fábrica. Uma delas seria a Shelby American. A outra seria a Holman-Moody, a equipe responsável pela operação vitoriosa da Ford na NASCAR. A ideia era óbvia: promover a competição entre as duas equipes.

Shelby tinha a seu favor sua própria origem: ele veio da cena de carros esporte nascida no pós-Guerra, quando os americanos voltaram do front com roadsters britânicos no compartimento de carga. Ele havia corrido na Fórmula 1 e já havia vencido a 24 Horas de Le Mans como piloto. Por essa razão ele estava mais pressionado que Holman e Moody. Perder para uma dupla de hot rodders cuja especialidade eram os ovais seria embaraçoso para dizer o mínimo.

Assim que soube da duplicação das equipes, Carroll Shelby e Ken Miles foram a Daytona iniciar o desenvolvimento do carro. Nem mesmo o inverno do hemisfério norte impediu que o Ford GT40 Mk II fosse aperfeiçoado pela dupla. Nos meses mais frios, eles foram para o Sul dos EUA, onde o clima era mais ameno e permitiu que os testes continuassem. Os problemas de confiabilidade foram sanados exceto um: os freios. Com o motor de sete litros o carro era significativamente mais pesado que o modelo equipado com o V8 289. Durante os testes de inverno, Miles teve um problema de superaquecimento do fluido de freio, seguido pela quebra do disco. Para piorar, não havia o que fazer em termos técnicos. Restava apenas controlar os freios pela tocada. Ao fim do inverno o carro estava pronto para seu primeiro desafio: a 24 Horas de Daytona.

 

As preliminares

Em fevereiro de 1966 a Shelby American e a Holman Moody foram a Daytona para a edição daquele ano da Daytona Continental. Pela primeira vez a prova seria disputada ao longo de 24 horas — as edições anteriores eram provas de 2.000 quilômetros. A Scuderia Ferrari não foi aos EUA, mas a marca estava representada por seu braço italiano, o North American Racing Team, de Luigi Chinetti.

Shelby estava apreensivo. Ele ainda não havia superado a humilhação em Le Mans e, agora, com os engravatados do “Le Mans Comittee” na sua cola e o fogo amigo da Holman Moody, ele estava ainda mais pressionado. Um novo fracasso seria o seu fim.

Para colocar um pouco mais de pressão sobre Shelby, a Ford decidiu que as duas equipes correriam com carros iguais, o que gerou desconfiança no texano. E se a fabricante decidisse favorecer a Holman Moody? Como se não bastasse, a Ford tinha um relacionamento de longa data com a Firestone, desde a época em que o fundador da borracharia americana fornecia pneus para os Ford T. Shelby, por sua vez, era muito próximo da Goodyear. Isso aumentou ainda mais sua desconfiança sobre um possível favorecimento à Holman Moody.

Nos GT40 da Shelby estavam Dan Gurney e Jerry Grant, Bruce McLaren e Chris Amon, e Ken Miles e Lloyd Ruby. Nos carros da Holman Moody as duplas eram Mark Donohue e Walt Hansgen, e Richie Ginther e Ronnie Bucknum. As Ferrari tinham Jochen Rindt e Bob Bondurant na 250 LM, Pedro Rodriguez e Mario Andretti na 365 P2 e um trio formado por George Follmer, Don Wester e Paul Hawkins em outra 250LM.

Ken Miles conquistou a pole position e manteve a dianteira ao longo de praticamente toda a prova. Depois de 24 horas ele recebeu a bandeira quadriculada antes de todos os outros, fazendo uma dobradinha com Gurney e Grant. A terceira colocação ficou com o GT40 de Donohue e Hansgen, seguidos pela primeira Ferrari a cruzar a linha de chegada, a 365 P2 de Andretti e Rodriguez.

Pela primeira vez um carro americano vencia uma corrida de 24 horas sancionada pela FIA. Pela primeira vez a Ford superava a Ferrari na classificação geral de uma corrida de 24 horas. Shelby tirou o peso de um 427 dos ombros e Miles estava mais do que satisfeito por ter levado o carro até o final sem quebrar os freios. Até mesmo Luigi Chinetti comemorou a vitória: quando questionado pela imprensa se a derrota para a Ford havia sido amarga, ele respondeu apenas que “estava feliz por seu país”.

 

O martelo e o dedo

A segunda parada dos Ford seria na 12 Horas de Sebring, pouco mais de um mês depois da vitória em Daytona. Novamente a Shelby e a Holman Moody inscreveram seus GT40 e a NART representou a Scuderia Ferrari com uma 365 P2, mas desta vez a Ferrari compareceu com sua nova 330 P3.

Shelby foi com dois carros: um GT40 Mk II dividido entre Dan Gurney e Jerry Grant, e uma versão roadster do GT40 chamada X1, que ficou com Ken Miles e Lloyd Ruby. A Ferrari tinha novamente Mario Andretti e Pedro Rodriguez na 365 P2 e Bob Bondurant e Mike Parkes na 330 P3.

Por volta da sexta hora de prova Gurney estava liderando e Miles vinha em segundo. Por ordens da equipe eles não deveriam disputar a posição. Não importava quem chegasse na frente; o que importava era que a Shelby vencesse a Ferrari e a Holman Moody.

O problema é que Miles conhecia os carros como ninguém e achou que poderia pressionar Gurney, que começou a imprimir um ritmo ainda mais rápido para manter a dianteira. Quando Shelby sacou o que eles estavam fazendo, correu até o pit wall e começou a pedir que eles reduzissem o ritmo. Eles ignoraram.

Por alguma razão Shelby voltou com um martelo ao pit wall e continuou pedindo insistentemente que eles parassem com a disputa e conservassem os carros (veja a partir de 14:15 do vídeo abaixo), Miles tirou o pé, mas não perdeu a oportunidade: na volta seguinte mostrou o dedo para o chefe e seguiu em segundo.

A corrida foi terrível: o canadense Bob McLean bateu seu GT40 partícular e não resistiu aos ferimentos. Depois Andretti se envolveu em um acidente com um Porsche, que saiu da pista e acabou matando quatro espectadores. Andretti voltou para os boxes para consertar o carro, mas antes que qualquer coisa pudesse ser feita, o carro pegou fogo. Isso pouco depois da nova 330 P3 abandonar com o câmbio quebrado. No fim, somente os Ford da Shelby tiveram um bom dia e seguiam nas duas primeiras posições.

Nos últimos minutos da prova, Gurney encostou para seu último pit stop com uma volta de vantagem para Miles. Shelby avisou Gurney e pediu para que ele pegasse leve para terminar a prova. Na 12ª hora, a multidão já se amontoava na reta dos boxes enquanto Gurney se arrastava com o motor quebrado. Mais alguns metros e ele venceria a prova. Foi quando Ken Miles entrou na reta e passou rasgando por Gurney para vencer a segunda corrida do ano. Gurney acabou cruzando a linha atrás do carro, empurrando seu GT40 quebrado e acabou desclassificado. Teria Ken Miles forçado Gurney propositalmente?

 

A batalha de 24 Horas

Por incrível que pareça, o mês de junho começou sem que a Ford tivesse definido seus pilotos para as 24 Horas de Le Mans, que aconteceriam entre os dias 18 e 19.

Os italianos estavam dispostos a dar uma surra nos americanos mais uma vez, enquanto os americanos estavam sob pressão da opinião pública e dos chefes, e ainda sentindo o gosto amargo de 1965. A disputa seria acirrada e a lista de inscritos ilustrava claramente: a Ford levou oito GT40 MkII, todos com o motor 427, a Ferrari levou sete protótipos inscritos por diversas equipes, mas todos preparados nas oficinas de Maranello.

Os pilotos da Ford seriam Bruce McLaren e Chris Amon, Ken Miles e Denny Hulme, Dan Gurney e Jerry Grant nos carros da Shelby American; Mark Donohue e Paul Hawkins, Ron Bucknum e Dick Hutcherson, Mario Andretti e Lucien Bianchi nos carros da Holman Moody; Graham Hill e Brian Muir, e John Whitmore e Frank Gardner nos carros da Alan Mann Racing.

Na Ferrari, Mike Parkes e Ludovico Scarfiotti, Lorenzo Bandini e Jean Guichet pilotariam as duas 330 P3 da fábrica. Pedro Rodriguez e Richie Ginther dividiriam outra 330 P3, mas da NART. Masten Gregory e Bob Bondurant dividiriam o 365 P2 da NART; Richard Attwood e David Piper dividiriam a 365 P2 da Maranello Concessionaires; Jean Blaton e Pierre Dumay dividiriam a 365 P2 da Ecurie Francorchamps; e Willy Mairese e Hans Müller dividiriam a 365 P2 da Scuderia Filipinetti.

A pole position foi definida na sexta-feira: Dan Gurney foi o mais rápido com 3:30,6, seguido por Ken Miles com 3:31,7. A Ferrari mais rápida ficou em quarto, com 3:33. Antes da corrida, o “Le Mans Comittee” se reuniu pela última vez. Eles precisavam incutir na cabeça dos pilotos que aquela empreitada era um trabalho de equipe e que eles não queriam saber de rivalidade interna na pista. Eles sabiam que Bruce McLaren estava louco para vencer porque acreditava que a vitória seria uma boa propaganda para sua recém-criada equipe de F1. Da mesma forma Dan Gurney queria a vitória que não conseguiu em Sebring. E Ken Miles, evidentemente, queria coroar seu trabalho no GT40 com a vitória em Le Mans.

Tudo isso preocupava a Ford, mas Miles causava desconfiança entre o comitê da Ford. A teoria de que ele forçou Gurney a uma quebra ainda reverberava entre os engravatados.

A corrida transcorreu bem até a madrugada. Durante a fase escura da prova o GT40 de Mario Andretti fritou a junta de um cabeçote, Ludovico Scarfiotti destruiu o principal carro da Ferrari e, mais tarde, a Ferrari mais rápida, de Rodriguez e Ginther, encostou com o câmbio quebrado. Às três da manha, os três GT40 da Shelby estavam nas três primeiras posições. As três principais Ferrari haviam abandonado. A Ferrari mais próxima dos Ford estava em quinto e com dezenas de voltas de desvantagem. O fogo amigo da Holman Moody? Virou uma fagulha: somente um dos carros ainda estava na pista, e atrás da Ferrari.

Miles estava em primeiro no GT40 #1, Gurney vinha em segundo no GT40 #3, e McLaren em terceiro no McLaren #2. A ordem era clara: voltas de quatro minutos e sem disputa interna. Somente problemas mecânicos ou paradas poderiam alterar a ordem dos carros.

Às quatro da manhã Ken Miles encostou nos pits e lá ficou. Os discos de freio dianteiros estavam no fim. Mesmo com o sistema de troca rápida desenvolvido pela Shelby, Miles voltou em segundo lugar, atrás de Gurney e à frente de McLaren, onde ficou até às nove da manhã.

Nessa hora o GT40 de Gurney encostou nos pits com um vazamento no radiador. O motor ferveu e ele estava fora. Mais uma vez. Novamente com Miles na sua cola.

Isso levou o comitê da Ford a questionar se Miles não havia forçado Gurney. Eles viram os tempos de volta mais baixos do início da prova e suspeitaram de algo. Shelby defendeu Miles, mencionando o incidente com a porta que of fizera perder várias posições, o que justificava o ritmo acelerado.

A manhã terminou com Miles na dianteira, McLaren em segundo, e o comitê da Ford nos pits perguntando a Carroll Shelby como ele achava que “a história deveria terminar”. Shelby evidentemente apontou que Ken Miles seria o vencedor. “Ele liderou a prova nas últimas horas”, disse Shelby. “O que você acha que deveria acontecer, Leo?”, emendou perguntando a Leo Beebe, o chefe do comitê.

Depois de uns instantes em silêncio, Beebe respondeu que seria interessante ver os três carros cruzando a linha de chegada juntos. Daria uma boa foto e seria ótimo para a marca. Além disso, eles poderiam encenar um empate entre Miles e McLaren, ainda que o neozelandês estivesse uma volta atrás de Miles. Shelby achou uma boa ideia e concordou. Beebe deixou os pits e foi conversar com os comissários para saber se era possível que a corrida terminasse empatada.

Enquanto isso na pista, depois de ser avisado sobre o arranjo nos pits, Miles baixou o ritmo, fazendo voltas 10 segundos mais lentas que McLaren. Nos últimos minutos, os dois estavam na mesma volta. Nesse instante Leo Beebe foi avisado de que não há como empatar uma corrida de automóveis. Como Bruce McLaren se-classificou com um tempo menor que Miles, ele largou atrás e, por isso, percorreu uma distância maior. Esse seria o critério de desempate. Beebe ficou desesperado.

Ele procurou uma saída, mas chamar os dois para os pits e mandar que disputassem a primeira posição era arriscado demais para quem havia chegado até ali. No fim das contas, ele decidiu não fazer nada. Era tarde demais para qualquer decisão.

O relógio apontou 16:00 e logo depois o trio de Ford GT apareceu, Miles, McLaren e Hutcherson (que estava em terceiro, mas 12 voltas atrás). Miles e McLaren estavam alinhados, em baixa velocidade, prontos para um empate que daria uma vitória técnica a McLaren. Nenhum deles sabia que a corrida não poderia terminar empatada. Nos últimos metros, McLaren avançou alguns metros e cruzou em primeiro.

A Ford finalmente vencia a guerra de Le Mans. Os americanos finalmente derrotaram a Ferrari em seu território.

Ambos pensavam ter vencido a prova e Miles já estava manobrando o carro para o pódio quando foi impedido por um comissário que explicou a situação a ele. Enquanto McLaren e Amon subiam ao pódio para tomar champanhe com Henry Ford II, Ken Miles estava sentado em um canto, tomando uma Heineken, desolado. Instantes mais tarde ele encontrou Bruce McLaren, os dois se olharam nos olhos e Miles deu-lhe um abraço parabenizando o neozelandês pela vitória.

Miles voltou aos EUA amargurado e culpou a Ford pela confusão. Para Miles, eles jamais deveriam ter feito a chegada como fizeram. Semanas depois ele voltou ao trabalho, desenvolvendo um novo protótipo derivado do GT40, o J car. Mas essa é a história da próxima parte desta série.