Apesar de apoiar Carroll Shelby desde 1961, a Ford não pretendia realmente transformar a equipe do texano em sua equipe de fábrica. A intenção era pegar um atalho comprando a Ferrari. O negócio estava praticamente fechado até que a Ford apresentou um contrato leonino que enfureceu Enzo Ferrari e tudo foi por água abaixo.
Para Ford, a Shelby não era uma opção por conta da percepção de que seria preciso investir muito tempo e dinheiro até atingir o nível das Ferrari — ainda mais porque a principal categoria passara a ser a Prototypes em 1963, e protótipos eram um campo em que os americanos não tinham experiência.
Por essa razão, enquanto a Shelby corria com seus Cobra na classe GT, a Ford foi procurar um parceiro para fazer um protótipo com motor central-traseiro. A opção natural era a Lotus, que já tinha parceria com a Ford na Indy e em carros esporte na Europa, porém tanto a Ford quanto a Lotus perceberam que a equipe britânica não daria conta do recado — a Lotus já disputava a Fórmula 1, a F2, tinha um programa na Indy e nas categorias de turismo europeia.
Além disso, Colin Chapman não era o tipo de cara que aceitaria ordens sobre como desenvolver seus carros e como conduzir uma equipe, e tinha mais interesse em promover sua marca e sua imagem — afinal, ele também era um fabricante de carros de rua. No fim, Colin Chapman recusou polidamente a proposta da Ford cobrando uma quantia absurdamente alta, caríssima até mesmo para a segunda maior fabricante de automóveis do planeta e exigindo que seu carro fosse batizado Lotus-Ford. Não deu negócio.
A outra opção era a Lola, que também usava motores Ford. Seu fundador, Eric Broadley era um cara mais low profile, mais interessado no caminhão de dinheiro da Ford do que na autopromoção visada por Chapman. Na época a Lola produzia um dos protótipos mais avançados do planeta, o Mk6 (ou Lola GT), que era equipado com uma versão de alumínio do Ford Fairlane V8 289 (4,7 litros) e tinha conseguido um bom desempenho na 24 Horas de Le Mans de 1963. O acordo consistia em uma colaboração de 12 meses entre Broadley e a Ford, além do fornecimento de dois chassis do Lola Mk6.
Com o parceiro contratado, começava a primeira corrida contra o relógio: eles tinham somente dez meses até as 24 Horas de Le Mans.
40 polegadas
As primeiras etapas do desenvolvimento foram realizadas na sede da Lola em Kent, na Inglaterra, mas logo ficou claro que a oficina era simples demais para as demandas de um projeto ousado como aquele.
Logo em seguida, a Ford contratou John Wyer, que havia chefiado a equipe da Aston Martin durante as incursões da fabricante na F1 e na 24 Horas de Le Mans de 1959. Encarregado de supervisionar a produção, ele providenciou a transferência do projeto para uma região próxima ao aeroporto de Heathrow chamada Slough.
O carro foi testado por Ritchie Ginther, Bruce McLaren e Roy Salvadori — os dois últimos em Monza, na Itália. Durante os testes eles descobriram que o carro não era muito adequado para longas distâncias e que a traseira ficava instável sob frenagem severa, a ponto de causar a perda de controle. Mesmo assim o carro foi aprovado.
Enquanto isso nos EUA, os projetistas da Ford desenvolviam a carroceria do novo esportivo com base no desenho técnico do Lola GT, e as primeiras propostas foram fabricadas em escala e testadas no túnel de vento da Ford em Dearborn para identificar as zonas de alta e baixa pressão sobre o carro com o objetivo de definir a posição dos radiadores, tomadas de ar, respiros e dutos de arrefecimento.
Foi assim que ele ganhou a tomada dos radiadores na parte inferior da dianteira e os dutos de escoamento no capô, uma área de baixa pressão que ajudava a manter o ar quente longe do cockpit, melhorando o conforto dos pilotos.
Esta, aliás, foi uma das principais preocupações do designer Roy Lunn. Ele havia sido o responsável pelo Mustang I depois de uma temporada na Inglaterra para estudar os esportivos europeus e era o único engenheiro da Ford americana com experiência em carros com motor central-traseiro.
Sua atenção ao conforto era rara no projeto de carros de corrida — afinal, o que importa é ir mais rápido, e não ser confortável. Mas o GT40 era um carro confortável na medida do possível. Os bancos eram ventilados pelo ar captado na parte inferior da dianteira, ao lado dos faróis auxiliares, que saía por ilhoses instalados nos assentos e encostos para reduzir e evaporar a transpiração. Além disso, o encosto tinha ajuste lombar por meio de uma bolsa inflável manualmente, operada pelo próprio piloto. Tais medidas exigiram que os bancos fossem fixos, contudo, a distância da pedaleira era ajustável.
Àquela altura o desenvolvimento do novo modelo não era segredo — ao contrário: a imprensa já havia dedicado centenas de páginas ao carro e o público estava apreensivo, especialmente com o formato esguio e aerodinâmico da carroceria, que também se destacava por ser muito baixa; “pouco mais de 40 polegadas” dizia a imprensa da época. Até então ele era conhecido somente como GT/101, mas em algum momento de 1963 ele começou a ser chamado internamente como GT40. A Ford achou que soava melhor que somente GT e o batizou Ford GT40.
Em outubro de 1963 a Ford aprovou o desenho do carro, que havia sido aperfeiçoado por uma série de aparelhos eletromecânicos para simulações aerodinâmicas — o que fez dele um dos primeiros carros a ter o projeto aerodinâmico feito por modelos computadorizados. No mês seguinte o modelo em argila foi enviado à Inglaterra para que fosse feita a moldagem e a fabricação da carroceria.
A equipe começou a trabalhar no carro ainda em 1963 — ou seja: enquanto a Shelby desenvolvia o Daytona — inicialmente na fábrica da Lola e, mais tarde, no aeroporto de Heathrow, onde foi criada a Ford Advanced Vehicles Ltd, que era liderada por John Wyer. O primeiro chassi foi entregue em 16 de março de 1964, e seguia o projeto básico da Lola: um monocoque de aço tão rígido quanto pesado — com cerca de 135 kg ele pesava muito mais que os demais monocoques da época, contudo, ele tinha uma rigidez à torção quatro vezes maior que a das Ferrari P da época.
O carro ficou pronto em 1º de abril, data em que posou para uma sessão de fotos no aeroporto de Heathrow.
Na traseira ele tinha o mesmo conjunto mecânico do Lola Mk6 (e do Lotus 29 da Indy): o motor V8 Fairlane com bloco e cabeçotes de alumínio, porém com a cilindrada reduzida para 4,2 litros e um sistema de cárter seco. Com quatro carburadores Weber de corpo duplo, ele produzia 350 cv a 7.200 rpm e 37,9 kgfm a 5.600 rpm. A transmissão da força para as rodas era feita por um transeixo Colotti.
Missão Le Mans
A estreia do carro aconteceu na 1000 Km de Nürburgring, em maio de 1964, com Phil Hill e Bruce McLaren ao volante do esportivo. Durou pouco: na 15ª volta Bruce McLaren abandonou a prova com a suspensão quebrada enquanto estava em segundo lugar.
Em junho de 1964, três semanas depois, a Ford desembarcou na pequena Le Mans com três carros, apreensiva sobre o retorno de seu investimento milionário. Aquela seria a primeira vez que o GT40 iria encarar uma prova de 24 horas, e nos primeiros treinos eles conseguiram o sexto melhor tempo, atrás somente das Ferraris. No segundo dia, já valendo para a classificação, Richie Ginther conseguiu o segundo melhor tempo, novamente atrás da Ferrari, mas agora somente uma. Melhor ainda: o carro havia atingido 309 km/h na Hunaudières, pouco menos que os 322 km/h projetados nas simulações durante o desenvolvimento.
O problema é que a carroceria esbelta e aerodinâmica não era tão eficiente quanto se imaginava — alguns dos dutos aerodinâmicos espalhados pelo carro causavam resistência por não ter escoamento, literalmente “roubando” 76 cv do V8. Ele havia sido projetado com auxílio dos computadores da época, mas como a aerodinâmica de carros de corrida ainda estava engatinhando, os engenheiros simplesmente não sabiam interpretar os dados.
Quando descobriram os problemas na prática, a solução foi recortar a dianteira do carro para permitir a saída do ar. Ainda nos treinos de classificação, Bruce McLaren conseguiu o quarto tempo, e o terceiro carro, de Richard Attwood largaria em sétimo.
O desempenho dos Ford nos treinos esquentou a torcida e a imprensa local, que já noticiava o confronto entre as duas potências. O público compareceu em massa ao circuito de La Sarthe para ver o duelo, ainda que os fãs, a imprensa e a própria Ford soubessem que uma vitória, embora não impossível, era altamente improvável. Na época falava-se que, para vencer Le Mans, eram necessárias ao menos três participações para adquirir experiência e desenvolver uma estratégia vencedora.
Por essa razão, a Ford optou por aproveitar ao máximo sua ida à França e fez o máximo de barulho que poderia fazer. Ginther, que era o mais rápido dos pilotos com o GT40, foi escolhido para dividir com Masten Gregory, vencedor da prova em 1963, a pilotagem do carro “lebre” — o carro que dita o ritmo para forçar o adversário a acompanhá-lo. Os outros dois GT40 ficaram com Phil Hill e Bruce McLaren e com Richard Attwood e Jo Schlesser.
Na segunda volta Ginther passou as Ferrari e assumiu a liderança. O carro atingiu seu limite de rotações da Hunaudières, chegando pela primeira vez aos 320 km/h. Só que a Ferrari não mordeu a isca. Nesta primeira etapa eles optaram por conservar os carros, especialmente por saber que o GT40 ainda era um carro em desenvolvimento. Em 90 minutos Ginther abriu uma vantagem de dois minutos, mas ao encostar nos boxes para reabastecer e entregar o carro a Masten Gregory, a vantagem foi revertida pela Ferrari com uma ajuda da própria Ford: com a demora no reabastecimento Gregory saiu 40 segundos atrás da Ferrari.
A situação não era melhor com os outros dois GT40: em um dos pit stops o carro de Hill e McLaren encostou e não ligava mais de jeito algum. Quando o V8 finalmente voltou a roncar, eles já estavam em uma longínqua 44ª posição. A dupla ainda conseguiu uma escalada até a 23ª posição nas quatro horas seguintes, apesar de uma falha no ponto da ignição.
A disputa ainda estava acirrada na altura da quinta hora de prova, com as Ferrari imprimindo um ritmo forte e constante. Foi quando os problemas voltaram. Na 58ª volta, o GT40 de Richard Attwood saiu da pista e, com a ruptura de uma linha de combustível, o carro pegou fogo. O piloto escapou ileso, mas era o fim do chassi 104. Cinco voltas depois, já na sexta hora, foi a vez do carro de Gregory e Ginther: o câmbio Colotti sofreu danos irreversíveis e encerrou a participação da dupla antes mesmo da metade da prova.
Restou apenas o GT40 de Hill e McLaren, o chassi 102. Phil Hill cravou a volta mais rápida, 3:49,2, colocando o carro na quarta posição na 13ª hora. A cada volta ele se aproximava das três primeiras Ferrari e a Ford começou a sonhar com a chance de vitória. A empolgação durou pouco: depois de 192 voltas, a alguns minutos da 14ª hora, o câmbio também quebrou irremediavelmente e os três protótipos da Ford estavam fora. A Ferrari estava livre para ganhar a 24 Horas de Le Mans de 1964.
O antídoto americano
Enquanto a Ford desenvolvia seu GT40, Carroll Shelby estava desenvolvendo uma evolução do Cobra, que receberia uma nova carroceria mais aerodinâmica para alcançar as Ferrari no final da Hunaudières/Mulsanne. E para isso ele chamou… um jovem de 23 anos chamado Peter Brock.
O maior problema dos Shelby Cobra era que eles geravam muito arrasto aerodinâmico e, por isso, mal passavam dos 240 km/h no retão de La Sarthe, enquanto as Ferrari 250 GTO chegavam aos 280 km/h. Como a Hunaudières tinha 4,8 km sem chicanes, os italianos abriam uma vantagem imensa no trecho, que chegava a quase 10 segundos por volta.
Peter Brock pegou um Shelby Cobra batido que estava na oficina, retirou a carroceria do carro, colocou um banco e um volante na posição ideal do chassi, pediu para que o piloto Ken Miles se ajeitasse no “cockpit” e começou a modelar o novo carro com retalhos de madeira e fita de tecido. Primeiro ele fez o quadro do para-brisa, depois começou a montar as fôrmas de madeira que usaria para modelar a carroceria de alumínio.
Durante a modelagem do carro, Brock aplicou um conceito aerodinâmico que conhecera em seus estudos: “a traseira Kamm”. Elaborado pelo aerodinamicista alemão chamado Wunibald Kamm na década de 1930, o conceito dizia que para alcançar a forma mais aerodinâmica possível era preciso criar uma cauda virtual. A carroceria deveria ter o formato de uma gota, mas antes de iniciar a cauda era feito um corte abrupto. Mesmo sem a superfície, o fluxo aerodinâmico formaria a cauda alongada que reduziria o arrasto.
Shelby não estava tão confiante e até chamou um especialista em aerodinâmica da Convair para avaliar as linhas de Brock. O “especialista” criticou o design e falou que o cupê teria uma aerodinâmica melhor com uma traseira 91 cm mais longa. Brock bateu o pé. Shelby decidiu seguir seus instintos e aprovou o controverso cupê do jovem Brock.
Deu certo: Ken Miles levou o carro ao Riverside Raceway e atingiu 300 km/h na reta de 1,6 km do circuito. Com mais 30 dias de desenvolvimento, Miles levou o carro a 310 km/h. Em sua primeira corrida ele conquistou a pole position e ganhou seu nome: Shelby Cobra Daytona Coupe. A prova foi vencida por Pedro Rodriguez e Phil Hill em uma Ferrari 250 GTO, mas o Daytona Coupe ainda teria sua vez nas 12 Horas de Sebring, vencidas por Dave MacDonald e Bob Holbert. Depois disso, quatro exemplares do Daytona Coupe — os quatro únicos além do protótipo — foram embarcados para a França, onde disputaria as 24 Horas de Le Mans de 1964.
No circuito de La Sarthe os Daytona atingiram a máxima de 315 km/h. O carro pilotado por Dan Gurney e Bob Bondurant terminou em primeiro na categoria GT e quarto no geral, e um dos Daytona Coupe chegou a colocar uma volta sobre a Ferrari 250 GTO. Nada mau para um carro construído em um galpão na Califórnia por meia dúzia de americanos com lápis e martelos.
O problema é que os três primeiros colocados eram três Ferrari. Sim, eram três protótipos, mais leves e com motor de maior deslocamento, mas ainda três Ferrari à frente da Ford.
A Ford deixou Le Mans frustrada, mas com muito mais know how para derrotar a Ferrari em seu próprio jogo. Além disso, como veneno e antídoto, a Ford percebeu que, para derrotar um velho piloto e sua equipe garagista, seria preciso se livrar das amarras burocráticas típicas das grandes corporações. Eles precisavam de um velho piloto como Enzo e de uma equipe garagista como a Ferrari. Alguém como Carroll Shelby e a Shelby American.