Em 2013, o FlatOut sequer existia. Carros elétricos ainda pareciam uma realidade distante, e nós ainda lamentávamos o “fim” do câmbio manual. O dólar encerrou o ano custando R$ 2,35, Fiat e Chrysler ainda eram duas empresas completamente distintas (a FCA só foi anunciada em 2014), Sebastian Vettel ainda estava em sua fase áurea e prestes a conquistar seu quarto título consecutivo, o Mille Economy ainda era o carro mais barato do Brasil e custava R$ 22.000… e a Piper Motorsports já estava investida no trabalho de transformar um Mercedes-Benz C63 AMG em um 190E Cosworth dos anos 1990, usando a mecânica do primeiro e a carroceria do segundo, em um dos body swaps mais épicos que esse mundo já viu.
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O carro só foi ficar pronto agora, oito anos depois. E, mesmo sem andar nele (algo que provavelmente nunca faremos), temos certeza que cada segundo de esforço, cada gota de suor derramada pelos profissionais da oficina americana no processo absurdamente detalhista de juntar dois ícones em um só, valeu a pena.
Na primeira foto dos dois carros chegando à oficina, publicada pela oficina no Facebook (aliás, o processo todo foi muitíssimo bem documentado , que pode e deve ser apreciado por completo) em outubro de 2013, a maioria dos usuários questiona indignada a motivação para o projeto. E “só porque é possível” não soa como uma explicação muito convincente.
Não: o swap foi uma encomenda de um cliente que, no momento, permanece anônimo. O que importa é que ele queria exatamente o mesmo que a Piper Motorsport: o carro feito da forma mais perfeita possível, sem pressa alguma. Sem adaptações, sem atalhos. Não importava o quanto tempo levasse para ficar pronto. Dinheiro também não deve ter sido problema, claro, mas isso é só um detalhe quando se trata de um projeto de tão alto nível.
Parece seguro afirmar que o cara simplesmente queria um carro com a experiência visceral de um Mercedes-Benz C63 AMG, porém com o visual emblemático do Mercedes-Benz 190 Cosworth, o especial de homologação para o Deutsche Tourenwagen Meisterschaft que garantiu o primeiro título da fabricante na competição em 1992, com Klaus Ludwig ao volante. Compreensível, não?
Já falamos de dezenas de outros projetos que, superficialmente, são parecidos – uma carroceria clássica com mecânica moderna e uma série de adaptações. Alguns carros até já eram famosos, ou ficaram depois. Mas com o chamado Frankenbenz, é diferente. Ele está em outro nível: quando virou notícia pela primeira vez, lá em 2015, ele prometia (e mostrava) uma atenção aos detalhes tão grande que acabou entrando para o imaginário popular. Viralizou. Praticamente todo mundo conhece o projeto ou pelo menos ouviu falar.
Agora, ele ficou pronto. E ainda tem uma surpresinha debaixo do capô.
Mas, antes de chegar lá, o melhor é revisitar o processo todo, desde o começo. Continua tão impressionante quanto em 2015, quando falamos do Frankenbenz no FlatOut pela primeira vez.
Tudo começou em outubro de 2013, com os dois carros chegando à oficina. O primeiro passo foi a remoção da carroceria do C63 AMG, deixando o monobloco e todos os componentes mecânicos à mostra. Então, foi preciso encurtar o entre-eixos do carro para que a carroceria do 190E coubesse sem maiores adaptações.
Foi preciso retirar pelo menos 10 cm do entre-eixos, visto que no C63 AMG 2,76 metros e no 190E, 2,66 metros – sem contar as adaptações milimétricas que foram feitas para garantir que o encaixe de todas as peças fosse absolutamente perfeito, e adicionaram um bom tempo de feitura ao processo. A carroceria foi removida inteira do 190E e encaixada, primeiro provisoriamente, ao monobloco do C63.
Verificando que tudo se encaixava, os caras deram início à instalação definitiva da carroceria, que também levou vários meses e envolveu a fabricação de diversos componentes sob medida em diferentes partes do carro. Por exemplo, um reservatório feito sob medida para o fluido de freio, pois o original não deixava que o capô fechasse. O capô também precisou de um novo suporte no bico do carro, para acomodar o motor V8, e a peça inclui até mesmo entradas de ar para o coletor de admissão. Falando nisso, os coletores também foram feitos sob medida, ainda que isso seja praxe na maior parte dos projetos de swap, mesmo os mais simples. Packaging é tudo.
Os alargadores de para-lama característicos do 2.5-16 Cosworth Evo 2, a última encarnação do sedã esportivo, serviram para cobrir a diferença entre as bitolas (1,61 m contra 1,48 m), e todas as medidas foram cuidadosamente ajustadas para acomodar perfeitamente o 190E sobre o C63 AMG sem alterar as proporções do original. E o kit não é uma reprodução: veio de um exemplar legítimo do 190E Cossie.
O resultado é de uma fidelidade notável, embora ao observar com atenção seu cérebro comece a te dizer que “algo errado não está certo”. Ou talvez seja porque a gente saiba do que se trata o carro na verdade…
O interior do C63 AMG foi mantido por questão de praticidade – as dimensões do painel de instrumentos em ambos os carros são surpreendentemente próximas, embora os pontos de fixação do painel sejam completamente diferentes e tenham exigido mais uma rodada de fabricação em alumínio. Todos os botões, alavancas e seletores do painel do C63 foram mantidos e reposicionados quando necessário.
Ao menos a geração W204 do Classe C ainda tinha um visual bastante sóbrio e monocromático, o que ajuda a compensar as formas mais arredondadas – destoa um pouco do restante do carro, mas nada imperdoável. Os bancos dianteiros Recaro foram instalados sobre suportes de Porsche adaptados, e foi preciso refazer a parte do monobloco onde se encaixa o banco traseiro.
Os revestimentos de porta do 190E foram mantidos e modificados para acomodar os controles elétricos do C63. A Piper Motorsport também fabricou um console central sob medida para os comandos do AMG, mantendo toda a funcionalidade. A peça tem armação de alumínio e revestimento de couro preto. Como tudo no carro, parece ter sido projetada e executada pela Mercedes.
Isso vale para itens espalhados em todo canto, que exigiram milhares de horas de trabalho antes mesmo de colocar a mão na massa – medições, cálculos, simulações. Suportes para os pedais, alojamentos dos faróis e lanternas, dobradiças para a tampa do porta-malas e o capô – o pacote completo que costuma vir quando a proposta é colocar as entranhas de um carro moderno em uma “casca” antiga: é preciso reposicionar muita coisa. A dianteira, do C63 W204, por exemplo, tem seis radiadores: o principal, um para o câmbio, outro para a direção hidráulica, o condensador do ar-condicionado e dois radiadores de óleo. Todos eles ficavam organizados da forma mais germânica, precisa e calculada possível, e a Piper Motorsport fez o possível nos arredores para garantir que a engenharia original fosse mantida em plena funcionalidade. Daí a fabricação do alojamento dos faróis, levando todo o arranjo em consideração e, ainda assim, permitindo que os faróis originais do 190E fossem instalados sem alteração.
Até mesmo partes do carro que só se vê quando ele está na oficina, no elevador, receberam atenção semelhante. Com toda a transformação lá na frente, não sobrou espaço para o intercooler, que foi transplantado para o porta-malas. Um suporte simples e algumas mangueiras dariam conta do serviço, mas não seria a coisa mais adequada e esteticamente agradável. Nada disso: o carro ganhou uma caixa de alumínio feita sob medida e cuidadosamente instalada, alimentada por tubulação de alumínio escondida sob o túnel de transmissão (com ida e volta, vale lembrar) – que é como a Piper Motorsport acredita que a AMG faria.
Mas se tudo isso é plenamente justificável quando se trata do arrefecimento, como explicar o mesmo cuidado com algo bem mais simples e dispensável, como o sensor de chuva original do C63? Ele também foi preservado: o motor foi desmontado, ganhou uma carcaça nova, impressa em 3D, e o sensor funciona perfeitamente, como se estivesse em seu carro original. Quem já tentou fuçar os códigos responsáveis por esse tipo de trabalho sabe que, muitas vezes, o melhor, mais barato e mais prático seria partir para um sensor aftermarket, que talvez fosse até mais confiável e com certeza daria menos trabalho. Só que não seria a mesma coisa.
A suspensão teve a geometria refeita para ajustar a postura do carro com a nova carroceria, com pontos de fixação deslocados e amortecedores ajustáveis do tipo coilover para facilitar o fitment das rodas. Mas o layout não foi alterado, permanecendo o conjunto MacPherson na dianteira e o eixo multilink na traseira – uma das vantagens de usar o monobloco completo do C63 AMG. Os freios com discos ventilados e perfurados nas quatro rodas, com pinças de seis pistões na dianteira, foram mantidos.
Toda essa conversa de “manter” e “preservar”, porém, faz parecer mais simples do que realmente foi. Cada manutenção e preservação exigiu uma série de estudos, testes e adaptações justamente a fim de parecer o menos adaptado possível.
Existem apenas uma exceção: o supercharger Weistec no cofre, que tomou o lugar do intercooler. Ele foi criado especificamente para o C63 W204 e é bastante popular entre os donos de C63 por, sozinho, garantir um aumento de até 293 cv e 25,8 kgfm de torque, chegando a 750 cv e 87,1 kgfm no “Stage 3” descrito pela Weistec. A Piper Motorsport não diz se o dono optou pelo Stage 3 mas, mesmo os quase 460 cv originais do V8 aspirado já seriam suficientes para todo mundo aqui. Não seriam?
Até porque, ao fim de tudo, nesse carro há muito mais que o V8 de um C63 e a carroceria de um 190E. Há oito anos de trabalho em um projeto feito nas horas vagas que foi acompanhado nesse tempo todo por milhares, talvez milhões de entusiastas fascinados.
E não será feito outro. O carro certamente custou bem mais que a melhor gaiola de proteção feita pela Piper Motorsport – que, afinal, conquistou notoriedade justamente por causa de suas gaiolas – e obviamente impressiona muito mais do ponto de vista técnico. Mas não é algo que se faz puramente pelo dinheiro, como a Piper Motorsport já avisa de antemão.
Sorte de quem tiver esse carro, uma celebridade sobre rodas, na garagem.