A nossa memória nem sempre é confiável. Uma das coisas mais sensacionais da mente humana, é que ela foi desenvolvida por milênios para melhorar as chances de sobrevivência da espécie, e, vista por este prisma, é sensacional na forma que guarda memórias.
Diferente de um computador, que guarda tudo sem discriminar a utilidade, a nossa mente está constantemente filtrando o que vale a pena guardar ou não. Por isso você não se lembra mais que hora obrou ontem, mas lembra perfeitamente de todas as minúcias do Opala 1982 a álcool de seu avô, das calotas cromadas e pneus diagonais, ao raro câmbio de três marchas na coluna combinado com o painel de instrumentos novo de plástico. Até o número da placa você lembra, mesmo que não consiga, por mais esforço que faça, lembrar o dia do aniversário de sua esposa, sem olhar algum papelzinho amassado na agenda.
Nossa mente é assim para nosso próprio bem; se lembrarmos de tudo a gente ia ficar maluco: só lembramos o que nos é importante. E normalmente este filtro é decididamente rosado: tendemos a deletar sumariamente as coisas chatas do dia a dia quase imediatamente depois de fazê-las. Lembramos de eventos traumáticos ruins, claro, mas esses são também para nossa proteção, para nos lembrar de não repeti-los. E mesmo assim, ficam meio escondidinhos e reprimidos bem no fundo, e só vem à tona quando é necessário. É uma máquina de sobrevivência, nosso cérebro; não um repositório de fatos.
É bom lembrar disso quando se fala do passado. Ou não, né? Tudo depende de quão interessante você está achando esse papo aqui; conhecendo minha propensão para mergulhar profundamente em inutilidades, a maioria de vocês já esqueceu o parágrafo passado, provavelmente. Mas para benefício da minoria de vocês que curtiu, continuo: é por isso que, quando lembramos do passado, tendemos a criar uma visão mental do que gostaríamos que o passado fosse, usando nossa memória.
Por isso nasceu a escrita. O registro escrito apareceu para tentar guardar a imensidão de coisas que esquecemos diariamente. Computadores são a evolução do papel e lápis, neste sentido. Escrita é só um registro. O que eu disser aqui, está registrado, indelevelmente para as gerações futuras reverem no futuro sem dúvida alguma. Neste caso específico, balançando a cabeça de um lado a outro em desaprovação.
Bom, a escrita costumava ser indelevelmente registrada; quando o grande pulso eletromagnético do juízo final chegar, tudo isso o que eu escrevi vai desaparecer imediatamente — já que, mesmo escrevendo furiosamente há uns 25 anos, nunca toquei numa máquina de escrever; comecei em computadores. O que escrevo não é físico, não posso pegar nas mãos como um livro.
Mas enquanto este hipotético e profundamente improvável PEM não chega, temos registros do passado variados acessíveis pela rede. E ainda temos papéis impressos também, toneladas deles, em revistas e livros que, aqui em casa, tendem a desestabilizar constantemente o bem-estar familiar toda vez que crescem em um volume superior ao que foi separado para ele em casa. Muita gente os considera inútil, e entendo e os invejo; para mim, são uma necessária expansão da minha memória, quase uma parte de mim; inúteis ou não, não consigo me separar deles.
Mas em dias como o de hoje, alguma utilidade aparece para essa fazenda de ácaros e fungos que eu chamo de biblioteca; um dia para tentar buscar, nos registros de época, o que se achava do Gol GTS quando era novo. A utilidade é clara: hoje todos gostamos do Gol GTS: além do desempenho e interação à antiga, existe a nostalgia, a lembrança de tudo que era bom nele quando novo. Falamos aqui não de nossas impressões atuais, filtradas pela nostalgia: queremos saber era dito dele na sua época. Vamos lá?
O GTS na imprensa
Antes do GTS existiu o GT 1.8; um carro que era simplesmente inacreditável a seu tempo. Se tivéssemos recebido um Gol TS 1.6, já estaríamos felizes; o 1.8 litro bravo que veio ali era meio que difícil de conceber. É importante começarmos por ele: mecanicamente parecido, na época ele sempre era o ponto de referência de qualquer teste do GTS.
E a sua recepção foi a melhor possível. Disse José Luiz Vieira na Motor 3, em abril de 1984, 38 anos atrás (barrabás!):
“O mercado brasileiro, a partir de abril, nunca mais será o mesmo. Em sua faixa de esportivos, terá a melhor coisa até hoje feita em nossa terra: o Gol GT 1.8.”
Depois de uma descrição técnica detalhada do carro, mais elogios:
“Quando o 1.8 acorda, vemos o passe de mágica, a movimentação da varinha de condão, que parece estar no barulho que os engenheiros da VW conseguiram orquestrar no sistema de descarga de gases. Desculpem-me os puristas, mas a gente até chega a pensar que há um BMW de seis cilindros lá na frente.”
“Mas não é só a manifestação acústica do GT que entusiasma. Nem mesmo é o excelente motor 1.8 que o faz, sozinho. É a maneira como o bicho se comporta como conjunto. Motor, embreagem, caixa de mudanças. suspensão, freios, direção- um conjunto mecânico como nunca antes tivemos tão bom e harmônico, em carros de menor porte, em nossa terra. O pessoal da Volkswagen, quando nos disse “mande ver, pode fazer o que quiser”, nos deixou um pouco apreensivos. Afinal, numa pista de corridas, soltar manicacas em carros novos e dizer que podem fazer o que quiserem, é pelo menos aventuroso. Mas que nada. O GT não só anda muito bem, mas pára e faz curvas com grande desenvoltura. Como sempre acreditei no lema da BMW, que diz que um carro deve sempre ser mais rápido de chassi do que de motor, fiquei realmente encantado com as boas maneiras e a educação do GT. Apenas uma vez, e assim esmo porque abusei para valer, ele avisou que estava seriamente propenso a trocar a frente pela traseira: foi no fim do Retão, quando retardei muito a freada e entrei um pouco quente demais na Curva Três. Fui obrigado a “catar” uma terceira, aos 140 km/h em que vinha, e afundar o pé para empurrar a frente para fora e não deixar a traseira me passar. Fora disso, o GT simplesmente parecia tirar de letra tudo que jogava em cima dele.”
A revista reclamou um pouco da aerodinâmica de tijolo, estimando um Cx alto de 0,44 e muito ruído aerodinâmico à alta velocidade, e alguns detalhes de acabamento. Mas de resto, recebeu o carro como todos nós lembramos: com muitos elogios. O carro fez zero a 100 km/h em 10,57 segundos, e chegou a 179 km/h.
A revista Quatro Rodas também se encheu de superlativos. Disse em manchete: “Agressivo, veloz, estável, nervoso, o Gol GT 1.8 é igual aos esportivos europeus.” Emílio Camanzi continuava:
“O Gol GT demonstrou um fantástico desempenho para o seu tamanho. Na pista de Interlagos, comportou-se como um automóvel de competição, igual aos que disputam o Brasileiro de Marcas: estável, sensível, com rápidas retomadas. No entanto, foi no ambiente real de rua e estrada que o Gol GT deu o seu grande recado. Sua suspensão é mais rígida, OS pneus têm perfil baixo e uma grossa barra estabilizadora previne inclinação em curvas. Mesmo assim, mostrou-se muito confortável, obediente e silencioso até em pisos ruins.
Na estrada, é preciso ficar atento ao velocímetro. Basta distrair-se um pouco que ele começa a comer asfalto com incrível apetite. A 140 km/h tem-se a nítida sensação de estar a 80 km/h. Parece que os outros todos resolveram andar devagar. Além de tudo, com os vidros fechados quase não se ouve o som esportivo de seu escapamento. A concepção e o desempenho tornam o Gol GT um esportivo invejável.”
A revista também reclamou de acabamento e qualidade em alguns pontos, e da aerodinâmica obviamente restritiva; certamente um Cx menor o faria chegar aos 200 km/h. Conseguiu um 0-100 km/h em 11,7 segundos, e final de 170 km/h.
Em Agosto de 1986, a Quatro Rodas flagrou em testes um carro branco com placas do fabricante, obviamente o que conhecemos hoje como o GTS: nova frente, para-choques, rodas e saias laterais; na traseira agora com nova iluminação e um spoiler, ainda se lia, porém, o logotipo “GT 1.8”, sem o S, mas com a grafia final. Como sabemos, o S foi adicionado para caracterizar modelo novo, fora do tabelamento governamental de preços de 1987. A revista especulava que poderia receber o novo cabeçote VW de duplo comando e 16 válvulas, o que, infelizmente, não aconteceu.
Em junho de 1987 o novo Gol GTS era capa; ainda com o painel antigo, mas já com a aparência que conhecemos. A novidade era o tempo do 0-100 km/h abaixo dos 11 segundos, inédito na revista. Disse que o tempo de 10,79 segundos era o melhor do país, batendo os não só o Uno 1.5R, Escort XR3 e Monza S/R, mas também o anterior campeão Diplomata seis cilindros à álcool.
Disse Luiz Bartolomais Jr: “Quando se abre um semáforo, o Gol GTS, como uma fera, pula na frente. E feras exigem domadores. Para desfrutar desse bom desempenho, quem dirige o Gol esportivo precisa se acostumar bem à sua agressividade e aprender a soltar as rédeas no momento certo. Em certas condições, como em longas descidas ou em pistas à beira-mar, onde é maior a pressão atmosférica, o Gol pode chegar aos 175 km/h. E o velocímetro, exagerado como sempre, a essa altura poderá estar beirando os 190 km/h. Mesmo nessas faixas de velocidade, os reflexos da fera são bons. Freios bem dimensionados, ótima suspensão e excelentes pneus 185/60 HR 14 não deixam que as emergências se transformem em dramas. E isso ainda vai melhorar quando o carro receber amortecedores pressurizados, o que já está praticamente acertado pela engenharia da fábrica.
O câmbio, muito rápido e preciso, facilita o trabalho do domador. E, juntando a tudo isso o bom nível de conforto para o motorista, nada mais natural que seja um prazer dirigir esse Gol GTS.”
Em outubro do mesmo ano, o carro retornava à capa da maior revista nacional: o novo GTS 1988 era “melhor em tudo”. Novo painel, vidros elétricos e melhor acabamento. A revista também dizia que permanecia o carro mais rápido do mercado em aceleração: o 0-100 km/h se dava em 10, 65 segundos, e 169 km/h de final.
Em fevereiro de 1988, comparando-o ao Monza S/R, a revista já então anunciava que o GTS tinha 106 cv, e não os 99 cv que a VW “teima em alegar”. O peso do carro era de 960 kg. Disse que o câmbio era “melhor no Gol, com os engates fáceis e perfeitos que caracterizam os câmbios VW. Mas a alavanca mais curta presente nos carros de motor 1.8 — e não apenas neste esportivo — torna o câmbio um tanto menos leve, o que se reflete sobretudo na ré: seu engate é às vezes um pouco difícil.”
A revista também preferiu a estabilidade do Gol: “Em todas as situações, e mesmo quando exigido a fundo numa estrada sinuosa, o Gol GTS revela equilíbrio perfeito. O segredo está na boa calibragem do conjunto mola/amortecedores associado ao uso dos pneus de perfil baixo, série 60.”
Com o lançamento do GTI em 1989, as comparações entre os dois foram inevitáveis. Gabriel Marazzi disse na Oficina Mecânica: “O Gol GTS 1.8 era até agora o automóvel mais rápido nacional, preferido entre os que buscavam pilotagem com tempero esportivo. Com o GTI ele perdeu essa posição, porém o GTS não deixa de ser um carro veloz e seguro. A grande vantagem do GTS em relação ao Gol GTI uma vez que são basicamente carros semelhantes é o preço, 55% mais caro, fora o ágio, para quem deseja o luxo da injeção e um motor de maior cilindrada.” Marazzi também duvidou dos 99 cv declarados, e disse que o carro tinha pelo menos 105 cv.
A diferença de preço era difícil de justificar: o GTI chegou a 184 km/h e o GTS, a 182 km/h. “Outro ponto de surpresa foi a medição de aceleração e retomada de velocidade. O Gol GTi deveria, teoricamente, acelerar e retomar velocidade em tempos muito inferiores aos do GTS, mas isso não aconteceu: de zero a 100 km/h, o GTI levou 10,5 segundos, esticando-se as marchas com o cuidado de não chegar às 6.100 rpm, quando a ignição é cortada. O GTS podendo chegar facilmente as 6.500 rpm, fez de zero a 100 km/h em apenas 9,1 segundos.”
Outras revistas porém conseguiram melhor desempenho no GTI: na Auto Esporte, o GTI fez o 0-100 km/h em 9 segundos, e o GTS precisou de 11 segundos na mesma prova; a aerodinâmica sempre um limitante no final, as finais ficaram em 182 e 172 km/h, vantagem para o GTI. Provavelmente, respeitando os limites de rotação recomendados.
No famoso teste com a foto “photoshopada” de capa entre os dois Gol esportivos, a Quatro Rodas também conseguiu alguma vantagem para o GTI: 0-100 km/h em 10,04 segundos frente aos 10,68 segundos do GTS; finais de 177 e 171 km/h.
Nossa memória pode ser seletiva, mas neste caso, apenas confirmou o que lembrava. O GTI era mais sofisticado e sensacional, claro, mas no mundo real, não lá muito mais rápido que um GTS. E nunca subestime um carro sem limitador de giro; donos de Chevette que o digam: no mundo real, eu apostaria no GTS. Uma das raras vezes em que a memória registrada confirma a nossa muitas vezes rosada memória…