Com todas as suas falhas, a Harley-Davidson ainda é sinônimo de moto americana. Mas não é o único sinônimo – se você quer ser do contra, ou simplesmente gosta de pensar diferente, há outra marca que pode te interessar: a Indian, fabricante mais antiga que a Harley-Davidson mas que, por uma série de motivos, não obteve o mesmo reconhecimento universal. Mesmo quem não entende de motos conhece ou pelo menos já ouviu falar da Harley, mas não se pode dizer o mesmo da Indian.
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No Brasil, isso se deve em boa parte à falta de uma representação oficial – algo que a Harley-Davidson tem há tempos. Entre 2015 e 2018 a Indian chegou ao Brasil através da Polaris, mais conhecida por seus quadriciclos e bugues com pegada off-road (que são belos brinquedos, diga-se), mas a falta de procura no mercado levou a empresa brasileira a encerrar o contrato com a Indian em apenas três anos, durante os quais foram vendidas cerca de 800 unidades.
É uma pena – especialmente porque a Indian não deve nada à Harley em termos técnicos e de heritage. Ao contrário: fabricando motos desde 1901, a marca completa 120 anos em 2021 e, à parte a pandemia, viveu seu melhor momento nos EUA nos últimos dez anos. Desde 2011 a Indian tem crescido em ritmo acelerado nos Estados Unidos – a marca sempre foi tímida ao falar em números, mas cita um aumento nas vendas de 18% ao ano, em média. Por si isto já impressiona, considerando que o mercado de motos grandes (com motor maior que 900 cm³ de acordo com o padrão local) vem sofrendo nos Estados Unidos. A Harley-Davidson só começou a reagir de verdade recentemente, com o lançamento da belíssima big trail Pan America.
A verdade é que, desde o começo de sua história, a Indian dedicou-se a diversificar sua atuação no ramo das motos – claro que, exatamente como sua maior rival, a Indian têm nas motos cruiser clássicas o grosso de sua reputação. Mas ela é bem mais que isso.
A Indian foi fundada em 1897 por George M. Hendee, que parcicipava de competições de ciclismo antes de aposentar-se e decidir fabricar bicicletas. De início ele adotou os nomes Silver King e Silver Queen para seus modelos, mas no ano seguinte ele decidiu adotar o nome American Indian, a fim de afirmar com mais ênfase a identidade das bicicletas nos mercados externos. Em 1901 um colega de Hendee, Oscar Hendstrom (também ex-ciclista profissional), juntou-se a ele e os dois começaram a projetar sua primeira motocicleta. Que, a exemplo de todas as outras motos do início do século 20, era pouco mais que uma bicicleta com um tanque de combustível, carenagens e um motor adaptado – no caso, um monocilíndrico de 1,75 cv.
Acontece que a moto era muito bonita e andava bem, tornando-se um sucesso rapidamente. Apoiada em recordes de velociadade locais, nos quais as motos eram pilotadas pelos próprios construtores (porque as coisas eram bem diferentes há 120 anos), a primeira Indian foi um sucesso e suas vendas cresceram vertiginosamente nos anos seguintes. Em 1904, ano em que a Indian introduziu a cor vermelho-sangue que se tornaria uma de suas marcas, produziu mais de 500 motos. Em 1913, o número chegou a 32.000.
Em 1914 as motos da Indian conseguiram ainda mais publicidade quando o piloto-dublê Erwin “Cannonball” Baker, um dos mais famosos de todos os tempos, atrevessou os EUA de San Diego, na Califórnia, a Nova York – mais de 4.400 km – em um tempo recorde de 11 dias, 12 horas e 10 minutos montado em uma Indian.
Nos anos seguintes, Erwin realizava a maioria de suas exibições no guidão de uma Indian Powerplus, moto lançada em 1916 que tinha um motor V-twin de 1.000 cm³ consideravelmente mais potente e suave do que os disponíveis até então. A Powerplus foi vendida praticamente sem modificações até 1924. Ela também foi vendida ao exército norte-americano durante os últimos anos da Primeira Guerra Mundial, que aconteceu entre 1914 e 1918.
A Primeira Guerra Mundial, aliás, causou problemas para a Indian, que não tinha capacidade fabril para vender motos ao governo e ainda abastecer sua rede de concessionárias. Como consequência direta disto, apesar do crescimento econômico dos Estados Unidos nos primeiros anos depois da Guerra, muitas das autorizadas Indian migraram para outras fabricantes, incluindo a Harley-Davidson, que no começo dos anos 20 abocanhou a posição de líder do mercado norte-americano.
Dito isto, foi também no início da década de 20 que a Indian lançou seus modelos mais bem-sucedidos, Scout (1920) e Chief (1922), cuja fama levou à adoção dos nomes para as duas primeiras motos lançadas pela Polaris no revival de 2011. Ainda nos anos 20, a Indian lançou a Four, moto de luxo com motor quatro-cilindros em linha que foi vendida entre 1928 e 1942. Apesar de não ter mais a liderança do mercado, o período entre-guerras foi um dos melhores para a Indian, que não foi tão afetada pela Grande Depressão de 1929.
As coisas começaram a desandar depois da Segunda Guerra Mundial, que estourou em 1939. A preferência das tropas aliadas pelas motos da Harley-Davidson e até mesmo a chegada do Jeep, que era capaz de encarar terrenos difíceis com mais desenvoltura que as motos e ainda levar quatro soldados, foram fatores que desestabilizaram a fabricante e atrapalharam sua retomada após o fim do conflito em 1945.
Em 1947 a Indian introduziu outra de suas marcas registradas: o war bonnet, farol auxiliar no para-lama dianteiro que tinha o formato da cabeça de um nativo americano usando um cocar (war bonnet, em inglês) e é visto nos modelos mais caros da marca até hoje. Mas a novidade acabou ofuscada por uma crise financeira que culminou com um pedido de falência em 1953.
Entre 1955 e 2006, diversas tentativas de reviver a Indian foram realizadas por companhias diferentes, em todas as ocasiões com sucesso limitado – geralmente vendendo motos importadas da Europa, como as Royal Enfield, que eram rebatizadas como Indian. Foi só com a compra pela Polaris, em 2011, que a situação voltou a melhorar. Em 2013, já em sua fase de recueperação, lançou uma versão especial da Scout: a Spirit of Munro. O nome da moto era uma homenagem ao neozelandês Burt Munro, outro piloto-dublê que ajudou a Indian a ser uma marca reconhecida.
Nascido em 1899 na Nova Zelândia, Munro comprou sua Indian Scout em 1920, ano de lançamento. Ele passou as décadas seguintes participando de provas de velocidade com a moto e a modificando extensamente – sempre a mesma moto. Ele era um cara humilde, que gostava tanto de motos que ganhava a vida as vendendo, e geralmente trabalhava sozinho nas modificações em sua Scout, que batizou de “The Munro Special”. Muitas vezes Munro passava a madrugada toda mexendo na Indian e ia trabalhar sem dormir.
Tanta dedicação rendeu frutos com o passar dos anos: em 1938 Munro quebrou seu primeiro recorde de velocidade na Nova Zelândia e não parou mais. Burt Munro viajou para as planícies de sal de Bonneville, em Utah, nos EUA, dez vezes ao longo das décadas de 50 e 60. Em três destas viagens – em 1962, 1966 e 1967 – Munro quebrou recordes em solo norte-americano. O último deles, conquistado quando Munro tinha 68 anos de idade e sua moto, 47, ainda está de pé: 295,453 km/h em uma moto com deslocamento inferior a 1.000 cm² (a Scout Munro Special deslocava 950 cm³, sendo que originalmente eram 600 cm³). Detalhe: no treino de classificação, Munro chegou a 305,89 km/h, maior velocidade já registrada por uma Indian até hoje. Dez anos depois, em 1978, Burt Munro morreu de causas naturais, aos 78 anos de idade.
Não foi sem merecimento, então, que em 2005 Burt Munro teve sua história contada no filme “Desafiando os Limites” (The World’s Fastest Indian), estrelado por Anthony Hopkins. E nada mais justo, por parte da Polaris, que homenageá-lo com a Indian Scout “Spirit of Munro” em 2013. E, como se não bastasse, em 2014 Munro consegiu quebrar seu próprio recorde retroativamente, 36 anos depois de partir, depois que seu filho notou um erro de cálculo na velocidade média: na verdade, em 1967 ele não atingiu 295,453 km/h. Ele chegou aos 296,259 km/h.
É possível que a aparição no cinema tenha ajudado a reacender a chama da Indian, porque o último revival, em 2011, foi o melhor sucedido. Há cinco anos, a linha da Indian nos EUA contava com seis modelos e 16 variantes diferentes. Hoje, são sete modelos com 38 versões distintas – da clássica tourer Chieftain à scrambler moderna FTR, que é uma moto bem diferente dos padrões
A FTR foi lançada em 2017, e fez pela Indian exatamente o que a Harley-Davidson espera que a Pan America também faça. A partir de agora, o que eu quero mesmo ver é as duas gigantes americanas disputando mercado tète-a-tète, como era em seus anos de ouro.