Como todos aqui devem saber, entre as décadas de 1970 e 1990 a Lancia foi uma gigante dos ralis. Mais precisamente, entre 1974 e 1996, a companhia conquistou nada menos que dez títulos no World Rally Championship – marca que até hoje não foi superada. Nem mesmo pela Citroën, que conquistou oito títulos entre 2003 e 2012.
Mas aí você lembra que ela ainda existe e decide olhar o site oficial da marca. O que você encontra? Um Peugeot 208 disfarçado de Lancia Ypsilon — híbrido ou elétrico. A traseira tem algo do Stratos até, mas o carro é claramente um Peugeot 208. Coisas da Stellantis. Ao menos eles deixaram de fingir que os Chrysler 200 e 300 eram carros italianos. É uma pena, porque a Stellantis não tem muito o que fazer com a Lancia, pois ela ainda é razoavelmente popular na Itália, mas é próxima demais da Alfa Romeo e da Fiat para dar origem a uma linha totalmente nova de produtos. É por isso que, apesar de ser a maior vencedora da história do WRC, nunca mais veremos uma linhagem como a destes vencedores do rali. Não em sua forma original.
Porque a Lancia até voltou a tratar com carinho essa fase de sua história, fazendo um novo Ypsilon HF e até uma versão de rali. Mas diferentemente dos HF originais, ele ainda é um Peugeot 208 e tem tração dianteira. Ao menos a Lancia planeja disputar o WRC com ele a partir de 2025, finalmente dando à sigla HF o valor que ela merece. Mesmo que de um jeito diferente.
Foram as versões HF que levaram para a Lancia seus 10 títulos do WRC — você os identifica pelo pequeno emblema com um elefantinho saltitante na dianteira dos carros. Mas o que quer dizer HF? E o que um elefante feliz tem a ver com isto?
As duas letras HF significam, segundo o léxico da Lancia, High Fidelity, ou simplesmente Hi-Fi – “Alta Fidelidade”, em tradução literal. Na audiofilia, um equipamento de alta fidelidade é aquele que reproduz reproduzir áudio da forma mais próxima possível à gravação original – ainda que muitos rádios baratos valham-se do termo “Hi-Fi”, mesmo que não o sejam.
No caso da Lancia, a “alta fidelidade” refere-se à capacidade que seus carros tinham de transmitir com clareza todas as sensações da estrada (ou da rua, ou da pista) ao condutor, através de direção comunicativa, do ronco do motor, da suspensão bem acertada. A experiência de pilotagem é pura, inalterada, sem interferências. Apenas o carro, o motorista e o caminho a ser seguido.
Mas não foi a Lancia quem teve esta ideia. O termo foi usado pela primeira vez neste contexto pelo Lancia Hi. Fi. Club, uma associação de proprietários dos carros da marca fundada em 1960. Já em 1961, o emblema “HF” (ainda sem o elefante) começou a ser usado nos carros que eram convertidos para as pistas pelos próprios donos. Em 1963 o clube deu origem à equipe HF Squadra Corse que, em 1965, tornou-se o braço de competição oficial da Lancia.
Pouco tempo depois, no fim daquele ano, era apresentado o primeiro modelo da Lancia a trazer a denominação HF de forma oficial: o Lancia Fulvia HF. Versão do Fulvia cupê, o HF vinha com um motor V4 de 1,2 litro e 88 cv. Ele era um carro de rua, mas a fabricante encorajava seus proprietários a participar de corridas com ele. Tanto que o Fulvia Coupé HF já vinha de fábrica com peso aliviado – não havia para-choques, o capô era de alumínio, as janelas laterais e o vigia traseiro eram de acrílico, e as rodas eram de aço estampado sem calotas.
Com o sucesso do Fulvia, que nos anos seguintes tornou-se um expoente dos ralis na era pré-WRC, a sigla HF pegou. E foi por isso que todos os Lancia esportivos que vieram depois também eram HF.
Na época do Fulvia, o emblema da HF consistia nas duas letras, com quatro pequenos elefantes no centro. No Lancia 2000 HF Coupé, de apresentado em 1971, o emblema passou a ser uma plaqueta azul e amarela na grade. No Stratos HF Stradale, como não havia grade na dianteira, as letrinhas foram parar ao lado do letreiro “LANCIA” na traseira, como já dissemos mais acima.
O elefante, sim, foi criação da própria Lancia. E, se tratando de animais associados a carros, ele é um dos mais intrigantes: geralmente as fabricantes escolhem animais agressivos e ágeis como mascotes, ou buscam neles inspiração para nomes – pegue, por exemplo, o jaguar da Jaguar, o cavalinho rampante da Ferrari, o garanhão do Mustang. Mas… um animal grande e pesado como um elefante? O que isto tem a ver com esportivos e carros de competição?
Pois bem: reza a lenda que na década de 1960, durante uma reunião para escolher um mascote para a HF, foram sugeridos diversos animais. No entanto, Gianni Lancia – o filho do fundador da empresa, Vincenzo Lancia, sugeriu o elefante. E insistiu na ideia.
Os demais presentes na reunião estranharam, e pensaram exatamente isto: um elefante, grande e pesado, não é o melhor mascote para um carro de competição, quem dirá um carro de corridas. Mas Gianni bateu o pé – e ele tinha um bom argumento. “Eu concordo com vocês”, ele teria dito. “Mas uma vez que um elefante começa a correr, nada pode detê-lo”. Sem falar que, bem, ele era o filho do patrão.
Agora, por mais bacana que seja esta história, ela não é oficial e não pode ser confirmada. A versão mais aceita por historiadores, mas que ainda carece de confirmação oficial, diz que foi uma decisão do departamento de marketing, que queria um animal que representasse não velocidade, mas inteligência, robustez e imponência. O que é meio contraditório, até, considerando a fama dos carros italianos e o tamanho diminuto dos Lancia da década de 1960.
O último dos Lancia HF foi o Lancia Delta 2.0 HF de segunda geração, fabricado entre 1997 e 1999 e equipado com um motor 2.0 turbo de 193 cv. Diferentemente dos HF de primeira geração, ele só era oferecido com tração dianteira – uma das razões para que ele não seja tão lembrado como o original.
Àquela altura, a participação da Lancia em ralis resumia-se a carros inscritos por equipes independentes. As mudanças no regulamento do grupo A para os World Rally Cars e a consequente ascensão dos esportivos japoneses no Mundial de Rali, somados à falta de recursos da Lancia, colocaram um fim em seus esforços em competições, e causaram uma longa interrupção na linhagem HF, que só foi quebrada neste ano com a chegada do Lancia Ypsilon HF, um elétrico de 240 cv.
Sua contraparte de rali, o HF Rally, iferentemente do carro de rua, tem um motor 1.2 turbo de 212 cv e tração dianteira, conforme o regulamento da categoria Rally4 — algo que nos deixa a questão: é melhor explodir de tanto brilhar ou, lentamente, perder o brilho até se apagar completamente?