Para onde vão os carros raríssimos que são arrematados em leilões por cifras multimilionárias? É de se imaginar que geralmente eles passem de uma coleção incrível guardada em um galpão climatizado para outra coleção incrível guardada em outro galpão climatizado. O que é até compreensível, considerando que muitos destes automóveis são carros raríssimos, ou mesmo únicos, e em alguns casos podem ser considerados patrimônios históricos e culturais que, por coincidência, também são veículos automotores.
Não temos dúvida de que este é o caso do Lancia Stratos Zero. Apresentado em 1970, durante o Salão de Turim, ele costuma ser descrito como o carro-conceito que inaugurou a tendência dos esportivos em forma de cunha que foram lançados naquela década – o que incluiu o próprio Lancia Stratos em sua versão de rua, que àquela altura já estava sendo desenvolvido e teve seu primeiro protótipo apresentado no ano seguinte. A Lancia pretendia dar sequência ao sucesso do Lancia Fulvia nos ralis usando o Stratos, o que de fato se concretizaria entre 1974 e 1976, quando o esportivo com motor V6 Ferrari (o mesmo usado na Dino 246, aliás) conquistou três títulos consecutivos no Campeonato Mundial de Rali.
O protótipo do Lancia Stratos HF…
… e sua atuação no Campeonato Mundial de Rali, que junto de sua bela carroceria foi responsável por transformá-lo em um dos esportivos mais emblemáticos da história
Tanto o Stratos Zero quanto o HF foram obra do mesmo desenhista: o italiano Marcello Gandini, do estúdio Bertone. No entanto, enquanto o carro de competição tinha formas condizentes com sua época (formas belíssimas, por sinal), o conceito era uma verdadeira viagem estilística. No bom sentido – o pessoal da Lancia simplesmente disse ao designer para usar sua criatividade. E, bem, ele usou.
A verdade é que pouco antes, em 1968, Marcello Gandini já havia prestado seus serviços a outra companhia italiana que estava em busca de um conceito inovador. O resultado foi o Alfa Romeo Bertone Carabo, que tinha carroceria em forma de cunha e é creditado como um dos primeiros carros a usar as famosas portas “tesoura”, que abriam para frente e para cima. Não foi por acaso, aliás, que o Lamborghini Countach, lançado em 1974, trazia portas assim: ele foi totalmente inspirado pelo Alfa Romeo Carabo.
Agora, no caso do Stratos Zero, a coisa era ainda mais radical: enquanto o Alfa Romeo Carabo ainda tinha uma separação visível entre a linha do capô e a linha do teto, no teto a silhueta do carro realmente consistia em uma linha ininterrupta.
Com isto, o conceito era absurdamente baixo: tinha apenas 84 cm em relação ao solo – para se ter ideia, um carro comum de passeio daquela época media entre 130 e 150 mm de altura. De acordo com Eugenio Pagliano, um dos designers que trabalharam no projeto na época, havia uma ordem para que a equipe procurasse tornar o carro o mais baixo possível.
É por esta razão, aliás, que alguns dizem que o Stratos Zero era uma resposta à Ferrari 512S Modulo, que estreou no mesmo Salão com 93,5 cm de altura e acesso ao interior pelo vidro da frente.
Seria simplesmente ridículo dar a um carro tão baixo portas laterais e esperar que alguma pessoa entrasse por elas. Então, Bertone optou por tornar o para-brisa (que era quase horizontal) basculante, abrindo para cima para dar acesso ao habitáculo de dois lugares. Nas laterais ficavam apenas vidros basculantes, um de cada lado. Olhando o Stratos Zero de lado, perceba que o perfil da carroceria quase pode ser dividido em duas metades idênticas e é bastante inclinado, com a traseira “arrebitada”.
A caixa de roda traseira, com desenho irregular, é uma das marcas registradas dos carros projetados por Marcello Gandini entre o fim dos anos 60 e o início dos anos 70
A estranheza não se limitava à porta de acesso, porém: o lado de dentro era ainda mais inusitado. Para começar, a coluna de direção era articulada, dobrando-se para a frente para que o motorista pudesse sentar. Quer dizer, o banco era tão inclinado que os ocupantes ficavam quase deitados, com as pernas esticadas.
O volante tinha uma enorme gravação do emblema da Lancia, com a tipografia clássica destoando visualmente do restante do carro. Mas o detalhe que costuma ficar de fora quando se fala o Stratos Zero é o quadro de instrumentos, que imitava uma enorme tela digital verde alojada na soleira do lado esquerdo, mas era na verdade um conjunto de instrumentos analógicos.
O Lancia Stratos Zero tinha uma estrutura tubular com carroceria de fibra de vidro, projetada do zero. Da bela Lancia Fulvia Coupé só herdava mesmo o motor, um V4 de de 1,6 litro (1.584 cm³) com dois carburadores Solex de 45 mm e 115 cv, que ficava instalado sob uma tampa prateada triangular que abria para o lado, e era acoplado a um câmbio manual de cinco marchas.
A suspensão usava um arranjo McPherson na dianteira e braços triangulares sobrepostos na traseira, e havia freios a disco nas quatro rodas. Vê-se que, apesar da carroceria inspirada pela Era Espacial, o Stratos Zero tinha alma de esportivo italiano clássico. Tanto que ele era 100% funcional, e por isso havia todo o malabarismo para acomodar dois ocupantes.
De acordo com a literatura da época, o Stratos Zero foi a maneira que a Lancia encontrou de dar início a uma relação com o estúdio Bertone a fim de que a casa trabalhasse no desenvolvimento da versão de competição. Tudo dependeria da reação do público do Salão de Turim de 1970 – que acabou sendo mesmo bastante entusiasmada e garantiu que as duas companhias cooperassem na criação do Stratos HF.
Pouco depois de sua estreia em Turim, o Stratos Zero foi pintado de prata, tonalidade mais discreta e mais futurista. Depois de posar para algumas fotos e gravar material publicitário, o Lancia Stratos Zero foi levado para o museu da Bertone, onde ficou em exposição por décadas até que, no ano 2000, foi restaurado pela própria firma, voltando a sua cor original.
Depois disto, em 2011 ele foi leiloado pela RM Sotheby’s durante Concorso d’Eleganza Villa d’Este, nas proximidades de Roma, na Itália. Exatamente igual ao que era nos anos 70, o conceito foi arrematado por um colecionador por € 761,6 mil – cerca de R$ 3,34 milhões em conversão direta.
Lembra da pergunta do início deste post? Custando mais de R$ 3 milhões, não surpreende que depois de arrematado o Stratos Zero tenha levado sete anos para aparecer em público novamente. E foi durante a edição 2018 do Concorso em Villa d’Este que o conceito deu o ar (e o ronco) da graça, possibilitando a gravação do vídeo abaixo. Nele, se ouve o som peculiar produzido pelo V4 de 1,6 litro e podemos ver que, de fato, o carro é 100% funcional. E ainda mais impressionante em movimento.
Sugestão do leitor Fabricio Guassaloca