Em 2018 tivemos a chance de ver a história acontecendo: pela segunda vez na história uma equipe japonesa vencia as 24 Horas de Le Mans – o Toyota TS050 Hybrid, que foi o primeiro a cruzar a linha de chegada do Circuito de La Sarthe. Uma bela conquista, que veio quase trinta anos depois da vitória do Mazda 787B, em 1991. Em 2019, novamente a Toyota triunfou – e ainda repetiu o sucesso uma terceira vez na edição 2020, realizada entre os dias 19 e 20 de setembro . Desta vez, porém, sem público: as arquibancadas estavam vazias, como efeito colateral da pandemia.
No geral, foi uma corrida previsível, cujo resultado não surpreendeu a ninguém – exceto, talvez, pela presença de um Rebellion R13 (com Gustavo Menezes, Norman Nato e Bruno Senna revezando ao volante) entre na segunda posição, entre os dois carros japoneses. Mas isto não retira da Toyota a honra de figurar entre as Lendas de Le Mans – a antiga série do FlatOut que, agora, ganha um novo capítulo.
O Toyota TS050 Hybrid é o mais recente representante de uma linhagem que começou em 1992 com o TS010, protótipo do Grupo C feito em parceria com a Tom’s – a mesma que cuidou dos Toyota Supra da Super GT na época. Seus resultados nas corridas foram apenas razoáveis, mas o motor V10 naturalmente aspirado de 3,5 litros roncava bonito e o carro agradava aos olhos.
Seu sucessor, porém, é bem mais conhecido – o lendário TS020, mais conhecido como Toyota GT-One. Criado para a categoria GT1, como seu nome dizia, ele teve apenas um exemplar construído para homologação e ficou famoso graças aos Gran Turismo do PlayStation. Seu visual era simplesmente matador, ainda mais pela cor vermelha, mas ele foi completamente ofuscado pelo Porsche 911 GT1, vencedor de 1998.
Foi só em 2012 que a Toyota retornou a Le Mans com um protótipo totalmente novo – o TS030 Hybrid, que foi a estreia da fabricante na categoria LMP1 em seu formato atual. Os mais atentos vão lembrar que o TS030 foi o primeiro protótipo híbrido a participar do WEC – e que, a apesar de jamais ter vencido em Le Mans, o TS030 conseguiu uma dobradinha nas 6 Horas de São Paulo de 2012. E que ele, assim como seu sucessor, o Toyota TS040 Hybrid – que correu em 2014 e 2015, usava um V8 naturalmente aspirado ligado a um sistema de recuperação de energia (KERS) com supercapacitor.
Há uma razão, porém, para que estes carros não sejam tão lembrados: além de não terem vencido em Le Mans, eles eram muito parecidos com os outros – e melhor sucedidos – protótipos no grid. Audi R18 e-tron quattro e Porsche 919 roubaram a cena, destacando-se por seus resultados, e não pela estética. E, agora, podemos dizer que o TS050 Hybrid fez a mesma coisa, com três vitórias consecutivas em 2018, 2019 e 2020.
Aos olhos dos fãs, uma vantagem do WEC sobre a Fórmula 1 é a possibilidade que as fabricantes têm de escolher a configuração do motor. A Audi apostava em um V6 turbodiesel de 3,7 litros (2011-2013) ou quatro litros (2014-2016). A Porsche tinha seu curioso motor V4 de dois litros com turbo, injeção direta e dois sistemas híbridos – um KERS e um sistema que recuperava a energia térmica dos gases de escape.
Já a Toyota apostou em um V6 biturbo de 2,4 litros para substituir seu V8 naturalmente aspirado – acompanhado de um novo sistema híbrido que trocava o supercapacitor por baterias de íon de lítio. Dois motores elétricos, um em cada eixo, ajudavam a mover o carro. No total, o carro entregava exatos 1.000 cv, sendo metade pelo motor V6 biturbo – que era ligado a uma caixa sequencial Xtrac de seis marchas – e metade pelos dois motores elétricos.
Desenvolvido pela Toyota Motorsport GmbH (TMG), hoje Toyota Gazoo Racing, o novo motor era mais compacto e chegava ao pico de torque mais cedo – o que garantia menor consumo de combustível e melhor aceleração. O aumento no torque também foi a principal razão para adoção de novos motores elétricos movidos pelas baterias no lugar do supercapacitor – e, segundo o que a Toyota disse na época, o fato de o V6 biturbo ser mais pesado que o V8 naturalmente aspirado era compensado pelas vantagens em packaging e pelo ganho em desempenho.
O carro em si era muito parecido com o TS040 na silhueta e estruturalmente. Pudera – ele também usava um monocoque de fibra de carbono e suspensão por braços triangulares sobrepostos nas quatro rodas, além de ser, em termos de aerodinâmica, uma continuação dos esforços anteriores. O que mudava bastante no TS050, porém, era o design da dianteira, que trocava o bico baixo do antecessor por um nariz mais alto e redesenhado para lidar melhor com o fluxo do ar – tanto na configuração high-downforce quanto na low-downforce. Ambas as configurações eram muito semelhantes, com detalhes que mudam apenas na dianteira e na traseira.
Basicamente, a versão high-downforce trazia dutos maiores na dianteira e na traseira, além de um “capô” mais alto – aumentando-se a área frontal e o fluxo aerodinâmico pelos dutos da carroceria, consequentemente tornando mais forte a pressão do ar sobre o carro. A versão low-downforce, seguindo esta mesma lógica, tinha a área frontal reduzida e dutos redesenhados para “cortar” o ar com mais facilidade.
Nos primeiros três anos em que competiu, o Toyota TS050 Hybrid não passou por mudanças no chassi e nem alterações drásticas no design, exceto por ajustes nos aparatos aerodinâmicos – questões de custo. Apenas na temporada de 2019 foi que a Toyota deu ao TS050 um bico mais alto tanto nas versões low-downforce quanto high-downforce, de modo a torná-lo mais eficiente no consumo de combustível. Para isto também contribuíram a instalação de dois novos dutos no topo do bico – os chamados S-ducts – ligados a saídas de ar na parte inferior do bico. Os dutos ajudam a mitigar a turbulência do ar sob o carro, reduzindo seu impacto negativo sobre os outros aparatos aerodinâmicos de forma geral.
No mais, a verdade é que o carro mudou pouco em cinco anos – o que ajudava a conter custos e manter a consistência dos resultados. A fórmula da Toyota deu certo – o desempenho do TS050 Hybrid nas 24 Horas de Le Mans melhorava a cada edição das 24 Horas de Le Mans.
Em 2016, os japoneses conseguiram classificar-se na terceira e na quarta posição – logo atrás dos dois Porsche 919 que largaram na ponta.
Na frente estava o carro nº 6, com o Stéphane Sarrazin, Mike Conway e Kamui Kobayashi. O carro nº 5 vinha na sequência, com Anthony Davidson, Sébastien Buemi e Kazuki Nakajima. Depois de trocar a ponta com os carros da Porshe e da Audi na primeira volta da corrida, a dupla da Toyota assumiu a liderança, com o carro nº 5 na frente. Faltando cerca de seis minutos para o fim da corrida, porém, Nakajima avisou à equipe que estava sentindo o TS050 perder potência.
Foi um duro golpe – em um instante, a Toyota liderava a corrida com mais de um minuto de vantagem sobre a Porsche. No outro, o carro de Nakajima parou de funcionar com pouco mais de três minutos para o fim da prova, a poucos metros da linha de chegada. Uma vez que as 24 horas se completaram, Nakajima desceu do carro para empurrá-lo e completar sua volta – que, contabilizando a parada, levou mais de 11 minutos, mais que o dobro do limite de seis minutos.
Foi um dos finais de corrida mais dramáticos e emocionantes em toda a história das 24 Horas de Le Mans. Algo que não aconteceria nas provas seguintes.
Nos treinos de classificação para a edição de 2017, Kamui Kobayashi começou bem – ele virou 3min14s79, quebrando o recorde estabelecido por Neel Jani, da Porsche, em 2015, em mais de dois segundos, e ficou com a pole. Além disso, havia outros dois carros no grid desta vez – dois com os mesmos pilotos do ano anterior, mais um terceiro carro, com Nicolas LaPierre, José Maria Lopez e Yuji Kunimoto.
Kobayashi, porém, sofreu um problema na embreagem com dez horas de corrida. E o terceiro carro, minutos depois, teve um pneu furado que e atingiu alguns resíduos de uma colisão na pista, danificando o câmbio. No fim das contas, apenas o carro de Nakajima, Buemi e Davidson terminou a prova – na oitava posição, nove voltas atrás do líder.
A vitória só veio em 2018. Foi redenção de Kazuki Nakajima, que acompanhado de Fernando Alonso – estreante na equipe – e Sébastien Buemi. Dissemos na ocasião e mantemos nossa posição: foi uma vitória sem sustos e sem surpresas, com o carro nº 8 da Toyota liderando a prova do início ao fim. Mas o gostinho de dever cumprido que Nakajima deve ter sentido certamente é algo que jamais poderemos experimentar com a mesma intensidade. Afinal, como dissemos ali no começo, foi a história sendo escrita – e os japoneses estavam mais uma vez no topo do pódio de La Sarthe.
É bem verdade que, sem a Porsche (que correra pela última vez em 2017), o nível da competição estava mais baixo que de costume. E o mesmo ocorreu nos dois anos seguintes – 2019 e 2020.
Tanto é que, embora a prova tenha sido até monótona, a Toyota conseguiu atrair atenções não por sua terceira vitória, mas por um gostinho do que está por vir: seu novo Hypercar, que competirá no WEC a partir da próxima temporada. Ainda que seja feito com base no TS050, ele agora tem outro nome – GR Super Sport – e dará origem a uma série de homologação.
Se ele será capaz de tornar-se outra lenda de Le Mans? Só o tempo dirá.
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