No fim de semana contamos a história do Audi Quattro, o bicampeão do WRC que virou a competição de cabeça para baixo ao provar que a tração integral era o futuro. O alemão exterminou os rivais nos anos em que correu, mas houve quem insistisse na tração traseira para enfrentá-lo — e ainda fez dar certo. Estamos falando do Lancia Rally 037 — ou só 037 mesmo —, o italiano que estragou a festa da Audi em 1983. Ou pelo menos metade dela.
Como ele fez isto? Com um quatro-cilindros em linha projetado por Aurelio Lampredi — muito parecido com o motor do Tempra, por sinal —, tração traseira e o talento de Walter Röhrl (sempre ele!) e Markku Alén.
Estamos dizendo isto porque, sem dúvida, a temporada de 1983 do WRC foi nada menos que imprevisível. As equipes finalmente se libertaram das amarras e começaram a aproveitar que o recém-inaugurado Grupo B era muito, muito permissivo em seu regulamento — praticamente qualquer ideia que os engenheiros e mecânicos tivessem podia ser aplicada. Era o paraíso.
Assim, a Lancia decidiu ser radical na hora de projetar o Rally 037 — era preciso, pois o Audi Quattro era forte demais na competição. O trabalho ficaria com a Abarth, e a base seria o Lancia Beta Montecarlo, esportivo de motor central-traseiro produzido entre 1975 e 1981, sendo que em 1980 passou a se chamar só “Montecarlo”. O carro, de perfil baixo em formato de cunha, foi projetado pela Pininfarina e teve pouco menos de 8.000 unidades fabricadas e foi vendido nos EUA como Lancia Scorpio.
A verdade é que, tecnicamente, do Lancia Montecarlo só sobrou a seção central da estrutura, com portas e para-brisa, na hora de “transformá-lo” no 037 — todo o resto era bem diferente: todos os painéis da carroceria eram diferentes, e eram instalados sobre estruturas tubulares na dianteira e na traseira.
O motor era muito parecido — em ambos os carros, era o quatro-cilindros de dois litros projetado por Aurelio Lampredi. Contudo, havia algumas diferenças fundamentais: o 037 recebeu um cabeçote de 16 válvulas para melhor rendimento — unidade que veio diretamente do Fiat 131 Abarth — e foi instalado em posição longitudinal (no Montecarlo era transversal) para dar mais espaço para o sistema de suspensão e ainda por cima melhorar a distribuição de peso.
A mudança mais importante, porém, era o sistema de indução forçada. Se a norma da época era usar turbocompressores, a Abarth decidiu-se por um compressor mecânico Volumex entregando 0,9 bar de pressão — o que fica fácil de entender quando se lembra que, naquela época, os turbos ainda sofriam muito com o lag, prejudicando o desempenho do carro enquanto a turbina não “enchia”.
A versão de homologação foi lançada primeiro. Foram fabricados 207 exemplares (o mínimo eram 200) do Lancia 037 Stradale, que tinha cabeçote de oito válvulas e entregava 205 cv — o que, convenhamos, era um número para lá de respeitável em 1982. Se você acompanha, deve lembrar deste vídeo que postamos há alguns meses, no qual o dono de um 037 Stradale conta (e mostra na prática) por que este carro é mágico:
Obviamente que o carro de competição era ainda mais monstruoso. O cabeçote de 16 válvulas (e outras modificações não reveladas, como sempre) garantiam que a potência ficasse em pelo menos 255 cv nos primeiros carros, que competiram ainda em 1982. Por uma infelicidade, o câmbio ZF de cinco marchas apresentou problemas ao longo de toda a temporada, e por isso a Lancia amargou um fraco nono lugar no campeonato. O melhor resultado foi um quarto lugar no Rali da Grã-Bretanha, com Markku Alén ao volante.
O jogo viraria no ano seguinte, e 1983 trouxe um Lancia 037 aperfeiçoado e ainda mais potente, com algo entre 310 e 325 cv. Foi o bastante para garantir aquela que, provavelmente, foi a temporada mais disputada do WRC. Foram doze etapas, e apenas duas delas não tiveram um piloto da Audi ou da Lancia como vencedor. Das dez que sobraram, cinco ficaram com a Audi e cinco com a Lancia.
Walter Röhrl, que no ano seguinte viraria a casaca e iria para a Audi, subiu ao lugar mais alto do pódio três vezes; Markku Alén, nas outras duas. No Tour de Corse, na França; e no Rallye Sanremo, na Italia, o Lancia 037 conseguiu duas vitórias triplas, além de duas dobradinhas — Monte Carlo e Acropolis, na Grécia.
Apesar do desempenho matador, porém, a vitória contra a Audi no mundial de construtores foi apertadíssima: no fim da temporada, a Lancia levou a taça com 118 pontos. O Audi Quattro foi o vice-colocado, com 116.
A festa da Lancia só não foi maior porque, no mundial de pilotos, Hanu Mikkola reinou absoluto, com 125 pontos contra 102 de Walter Röhrl, o segundo colocado.
Nos anos seguintes o Lancia 037 continuou evoluindo — para as temporadas de 1985 e 1986, o carro ainda ganhou um sistema de injeção eletrônica e teve o deslocamento ampliado para 2,1 litros.
Contudo, seu fim não foi glorioso: além de perder o título por pouco em 1984, o 037 foi substituído pelo ainda mais insano Delta S4 que, apesar de seu motor dual charged, com turbo e compressor mecânico, não conquistou nenhum título em sua curta carreira. Além disso, um acidente fatal envolvendo o piloto italiano Attilio Bettega, que perdeu o controle do carro, bateu em uma árvore e morreu na hora — manchou para sempre a imagem do 037 diante dos olhos da FIA.
A Lancia só voltaria a vencer de verdade no WRC depois que o Grupo B foi extinto, em 1986, e os carros voltaram ser baseados em modelos de produção. Em compensação, o desempenho do Lancia Delta Integrale no Mundial de Rali foi inigualável, estendendo-se por anos. Mas a gente vai falar disso mais adiante.