Agora que demos início à série de Lendas do WRC que não venceram títulos de construtores, podemos consertar uma pequena injustiça e dedicar um post especial a um dos carros mais insanos de uma das eras mais insanas do Mundial de Rali: o Lancia Delta S4, que competiu pelo Grupo B em 1985 e 1986. Só tem um detalhe: ele não era um Delta.
Como você já deve saber, o Grupo B surgiu quando a FIA decidiu que o WRC precisava de carros mais rápidos e potentes para garantir o entretenimento do público. Assim, as novas regras estipulavam que as equipes poderiam desenvolver carros específicos para a competição, que não precisavam, necessariamente, ser baseados em modelos de produção. Contudo, as fabricantes deveriam produzir, em série limitada, uma versão de rua do bólido de competição para que este pudesse ser homologado.
Desse modo, a esmagadora maioria das fabricantes decidiu usar ao menos o nome e o visual de seus modelos mais representativos — assim, surgiram carros como o Renault 5 Turbo, o Peugeot 206 T16 e o Audi Quattro S1. Entre as exceções estavam o Ford RS200, que tinha nome e visual totalmente inéditos, e o antecessor do Delta S4, o Lancia 037.
O 037 foi o primeiro carro de rali da Lancia para o Grupo B e, apesar de dividir a porção central da carroceria com o Lancia Montecarlo, era totalmente diferente em todo o resto. Com ele, a Lancia venceu o Mundial de Rali em 1983, em uma temporada disputadíssima com o Audi Quattro — que, naquele ano, deu a Hannu Mikkola o título de pilotos.
O detalhe é que o 037 foi o último carro de tração traseira a levar para casa um título. A Lancia ainda competiu com o 037 em 1984, mas naquele ano ficou clara a superioridade da tração integral — ou melhor, do Audi Quattro, que além de vencer o título de construtores, garantiu que o sueco Stig Blomqvist levantasse a taça na competição entre os pilotos. A Lancia precisava reagir e, por sorte, o 037 já era uma base excelente em termos de suspensão e dinâmica. Só precisava de alguns ajustes.
O Grupo B foi, sem dúvida, a categoria com regulamento mais liberal do WRC: desde que fossem produzidos pelo menos 200 exemplares para uso nas ruas, valia tudo nos carros de competição. A Lancia optou por dar ao novo carro uma cara já conhecida, e assim as formas da carroceria eram ligeiramente baseadas no visual do Delta, ainda que a estrutura tubular de cromo-molibdênio fosse virtualmente idêntica à do 037.
O fato é que o Delta S4 tem tudo para ser o carro mais insano já colocado para correr nos estágios de rali. Por quê? Porque entre as modificações realizadas pela Lancia, estava o sistema de indução forçada. Se com o 037 a Lancia havia remado contra a maré ao instalar um compressor mecânico no motor de 1,8 litros, o Delta S4 deu um passo além: o motor era basicamente o mesmo quatro-cilindros com comando duplo no cabeçote projetado por Aurelio Lampredi, mas aqueles italianos malucos decidiram instalar um turbo e um compressor mecânico ao mesmo tempo, fazendo do Delta S4 um dualcharged.
Como já explicamos, além do aumento de potência, o sistema dualcharged traz a vantagem de eliminar o turbo lag ao entrar em ação enquanto a turbina não “enchia”.
Equipado apenas com o compressor mecânico Volumex operando a 0,9 bar, o motor do 037 entregava cerca de 350 cv na versão de competição. Com a adição do turbocompressor e dois intercoolers no Delta S4, a potência declarada dava um salto e chegava perto dos 500 cv, ainda que números não oficiais indiquem números até 800 cv. Na versão de rua as coisas eram bem mais mansas, com cerca de 250 cv à disposição do pé direito.
Obviamente, nem só de motor vive um carro. Assim, a maior inovação do Delta era, sem dúvida, seu sistema de tração integral. Desenvolvido em parceria com a britânica Hewland, o sistema trazia um diferencial central que distribuía o torque de forma variável, com algo entre 60% e 75% para o eixo traseiro dependendo da situação. O câmbio era manual de cinco marchas, fornecido pela ZF.
A suspensão era independente nas quatro rodas, com braços triangulares sobrepostos e amortecedores telescópicos com molas helicoidais, além de barras estabilizadoras na dianteira e na traseira. Como tudo isto funcionava na prática? Assim:
Vendo o Delta S4 acelerando em fúria, fica até difícil acreditar que ele jamais venceu um título de construtores no WRC. Não foi por falta de competência: o carro venceu logo em seu evento de estreia — o RAC Rally, no Reino Unido, em 1985, com o finlandês Henri Toivonen ao volante.
O problema é que aquela foi a última etapa da temporada, e a Lancia precisaria esperar até o ano seguinte para descobrir se, de fato, havia acertado na fórmula.
A confirmação veio em Monte Carlo: Henri Toivonen, piloto principal da Lancia, venceu com o S4 — à frente do Peugeot 205 T16 e do Audi Sport Quattro S1, segundo e terceiro respectivamente. O Delta S4 ainda venceu outras quatro etapas naquele ano, com direito a dobradinha na Argentina e uma vitória tripla em Sanremo, na Itália.
O que aconteceu, então, que impediu o Delta S4 de seguir uma carreira promissora no Mundial de Rali e conquistar sequer um título? O fim do Grupo B devido a uma sequência de acidentes fatais em 1986 — um deles envolvendo o próprio Lancia. Primeiro, foi a tragédia no Rali de Portugal, quando Joaquim Santos perdeu o controle de seu Ford RS200, matou três espectadores e feriu outros 30. Depois, no Tour de Corse, na França, Henri Toivonen perdeu o controle de seu Delta S4 em uma curva fechada. O carro capotou e pegou fogo, e o piloto finlandês e seu navegador, o americano Sergio Cresto, morreram carbonizados.
Por causa dos acidentes fatais, a FIA decidiu cancelar o Grupo B e colocar um fim prematuro à trajetória do Delta S4 — que acabou com uma mancha em sua reputação. Foi um fim triste, mas marcou um recomeço: o novo regulamento, denominado Grupo A, exigia que os carros voltassem a ser baseados em modelos de produção — e a Lancia faturou todos os títulos de construtores entre 1987 e 1992 com o Delta HF Integrale que, de fato, era um Delta. Mas nós já contamos esta história.