Em meio à urgência com a qual a transição para os carros elétricos vem sendo tratada, a Ferrari apresentou em junho um novo supercarro com um novo motor a combustão – a 296 GTB, que recebeu um V6 biturbo de três litros com tecnologia híbrida e 830 cv.
A nova Ferrari, a princípio, não substitui ninguém, de acordo com a própria fabricante. Mas a tendência é que, com o cerco cada vez mais fechado aos veículos não-eletrificados (ao menos na Europa), a F8 Tributo – que, afinal, ainda tem raízes na 458 Italia de 2009 – saia de cena nos próximos anos. Híbrida ou não, a 296 GTB parece uma substituta digna.
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Mas não estamos aqui para falar só da 296 GTB – até porque já fizemos uma análise dela no lançamento. A questão é que, há poucos meses, outro superesportivo tecnicamente muito semelhante à nova Ferrari foi apresentado: o McLaren Artura.
O motor é um pouco maior, com três litros, mas também é um V6 biturbo com sistema híbrido, totalmente novo, lançado em uma época de transição para os carros elétricos. Sinceramente, só esses fatos são animadores para quem tem gasolina correndo nas veias. Mas é interessante colocar as duas lado a lado e ver o que elas têm em comu e também suas diferenças. Que não são tantas, na verdade, mas são importantes e relevantes.
Então, vamos fazer um exercício de comparação entre os dois mais novos supercarros com motor V6 biturbo híbrido do momento – uma configuração que pode muito bem ser a última antes de todos os supercarros novos do mundo se tornarem totalmente elétricos.
Antes de começar a falar de números e dados técnicos, porém, que tal algo mais subjetivo?
Razão vs. emoção?
Quando se fala em carros italianos, é difícil evitar clichês como “alma” e “paixão” – ainda mais se for um esportivo, e ainda mais se for uma Ferrari. E nem me refiro à fama de “temperamentais” que os carros italianos têm – é algo mais profundo e abstrato. E a Ferrari 296 GTB é um exemplo perfeito. Ela tem um legado para seguir, olhando para o futuro com inspiração latente no passado.
Não é um carro de visual retrô – ao contrário, é a primeira Ferrari intermediária totalmente nova e isso fica evidente em cada detalhe. Mas há elementos que conversam com a história da marca, como as entradas de ar nas laterais que lembram a 250 LM, as proporções harmônicas, os faróis de desenho mais comedido, as lanternas quádruplas. As linhas mais limpas, a dianteira que não lembra um inseto (desculpem os fãs das outras Ferrari modernas, mas nem fui em quem criou essa analogia). O nome, como falei mais acima. É um carro que exala “Ferrari” como qualquer outra. Não tem o mesmo V8 girador de uma 458 ou o câmbio manual com grelha que já foi uma das características mais simbólicas dos esportivos de Maranello (claro, os Lamborghini também tinham, mas o ponto não é esse). Mas é possível traçar uma linha do tempo repleta de modelos lendários e posicionar a 296 GTB nesta linha com muita propriedade.
Não dá para fazer o mesmo com o McLaren Artura. Não dá para dizer que ele carrega nos ombros um legado tão grandioso quanto o da 296 GTB.
Embora a McLaren possa gabar-se de já ter feito aquele que, para muitos, ainda é o supercarro definitivo, na definição mais crua do termo: o McLaren F1, que na década de 1990 foi o automóvel mais rápido e avançado do planeta sem turbos, motores elétricos, aletas atrás do volante ou assistências eletrônicas, é difícil livrar-se da impressão que o McLaren Artura é um carro mais estéril, mais quadrado que a Ferrari 296 GTB. Um carro que, com certeza tem muitos segredos técnicos impressionantes, mas não pode olhar para trás e espelhar-se em dezenas de outros esportivos clássicos. A McLaren não pode dizer que seu nome é uma referência a um veículo icônico dos anos 1960, feito por um engenheiro apaixonado por sua profissão e dono de um temperamento forte que o tornaria uma das figuras mais emblemáticas da história do automóvel. (Claro, a McLaren tem uma tradição enorme no automobilismo, não só na Fórmula 1 mas também nas corridas de longa duração, mas a relação com os carros de rua não tem a mesma intensidade que na Scuderia Ferrari).
Aliás, o nome ironicamente soa italiano, mas a McLaren nunca disse seu significado – especula-se que a inspiração possa ter sido o famoso Rei Arthur, mas fora isso não há qualquer indicação do porquê. Estranhamente, o nome alfanumérico da Ferrari 296 GTB carrega mais força.
Quanto ao visual, não dá para dizer que o Artura é feio – não há nada que comprometa a harmonia das linhas, nem algum elemento que se sobressaia negativemente (né, BMW?). Mas dá para perdoar quem confundir com qualquer outro McLaren recente, especialmente o 570S ou o McLaren GT. A fabricante de Woking pode até mexer nos elementos aerodinâmicos e nos detalhes finos, mas a identidade visual é praticamente a mesma desde o 650S, apresentado lá em 2014.
É uma comparação subjetiva, claro, mas é inegável que o McLaren Artura, apesar de bonito, pode ser considerado menos memorável por muita gente.
V6 vs. V6
Os motores de seis cilindros em V de ambos os carros são muito parecidos, tecnicamente falando. Os dois trazem deslocamento praticamente idêntico – 2.993 cm³ no McLaren e 2.992 cm³ na Ferrari (ou seja, o “296” é mais uma licença poética) e exatamente o mesmo ângulo de 120° entre as bancadas de cilindros. E as razões técnicas para isso são as mesmas: essa configuração permite o arranjo denominado “hot V”, no qual os turbos ficam entre as bancadas de cilindros – resultando em um fluxo mais “direto” dos gases de escape, e também permitindo um conjunto mais compacto e posicionado mais baixo no cofre, o que deixa o centro de gravidade mais perto do chão.
Vamos aos números: na Ferrari, o motor entrega sozinho 663 cv e a 8.000 rpm – são 221 cv por litro, o que a fabricante diz ser um recorde. O McLaren, por sua vez, desenvolve 585 cv a 7.500 rpm. Os dois motores são ligados a transmissões de dupla embreagem e oito marchas, e ambos usam sistemas híbridos plug-in com baterias de 7,4 kWh.
Mais interessante, porém, é ver o que os dois carros têm de diferente. No caso da Ferrari, estamos falando de um sistema híbrido mais potente – o na Ferrari são 167 cv. Combinados, ambos os motores entregam 830 cv e 75,3 kgfm de torque. No Artura, o motor elétrico tem 95 cv – somado ao motor a combustão, temos 680 cv e 73,4 kgfm de torque. Curiosamente, o câmbio do McLaren não tem marcha à ré: em vez disso, o motor elétrico trata de mover o carro para trás quando desejado. Com isso, a McLaren conseguiu eliminar alguns quilos do câmbio.
A diferença em potência é considerável – a Ferrari tem 150 cv a mais. No torque os dois estão quase empatados. E o empate técnico também ocorre no desempenho: apesar da potência extra, a Ferrari vai de zero a 100 km/h nos mesmos 2,9 segundos que o McLaren. E a velocidade máxima de 338 km/h da Ferrari é apenas 8 km/h mais alta que no McLaren. Como uma Ferrari que tem 150 cv a mais que um McLaren pode ter praticamente o mesmo desempenho? Você começará a entender no próximo tópico.
Dimensões e suspensão
O peso dos dois carros pode ajudar a explicar a diferença mínima em desempenho. A McLaren se orgulha – e deve mesmo se orgulhar – de ter conseguido reduzir o peso seco do carro a 1.395 kg, sendo apenas 46 kg a mais que seu antecessor, o 570S. Boa parte do mérito está na nova estrutura monocoque que, sozinha, pesa parcos 82 kg (menos que este que vos escreve, para se ter ideia). Mas o sistema híbrido também é muito leve – motor e bateria, juntos, pesam só 130 kg. Com fluidos, em ordem de marcha, o Artura tem saudáveis 1.498 kg.
No caso da Ferrari, o peso seco é de 1.470 kg. A Ferrari não costuma divulgar o peso em ordem de marcha mas, usando como parâmetro o Artura, a 296 GTB deve ficar na ordem dos 1.550 a 1.600 kg. É uma diferença considerável que praticamente anula a potência extra — veja só: o McLaren pronto para andar pesa apenas 28 kg a mais que a Ferrari com todos os reservatórios vazios, incluindo o tanque de combustível.
Nas demais dimensões, porém, os dois carros são mais próximos. Confira na tabela abaixo:
Perceba que a o McLaren Artura tem 4 cm a mais no entre-eixos – uma diferença mínima. Por outro lado, a maior largura da Ferrari permite bitolas maiores. Estes dois fatores combinados levam a crer que as eventuais diferenças no comportamento dinâmico poderão ser creditadas aos diferentes arranjos de suspensão.
No McLaren Artura, a dianteira utiliza um eixo multilink, enquanto a traseira traz braços triangulares superiores e braços de controle inferiores e um novo diferencial de deslizamento limitado eletrônico (novidade para a McLaren). Já a Ferrari aposta em braços triangulares sobrepostos nos quatro cantos, com amortecedores magnéticos de série e, no pacote Assetto Fiorano, amortecedores pressurizados Multimatic (os mesmos usados nas Ferrari 488 GT3 e GTE).
Fechando a conta
Se você estava esperando uma conclusão categórica, sinto decepcioná-los – não dá para dizer qual dos dois é melhor sem ter andado no McLaren Artura e na Ferrari 296 GTB. O que dá para dizer, porém, é que a diferença de potência parece considerável em um primeiro momento, mas tem tudo para ser apenas mais um entre vários fatores a se levar em conta na hora de colocar os dois lado a lado na pista
E, reforçando: ver dois novos supercarros, com dois motores totalmente novos, sendo lançados em pleno 2021 praticamente juntos é animador. Independentemente do lado que você escolher.
Só que a McLaren tem uma carta na manga, e ela está no preço: o Artura custa US$ 225.000 (R$ 1,16 milhão em conversão direta, julho de 2021) – o que dá quase US$ 100.000 a menos que a Ferrari 296 GTB, que sai por US$ 321.000 (R$ 1,65 milhão). Mesmo com 150 cv a menos, o McLaren anda junto da Ferrari por pouco mais de 2/3 do valor.
Assim, objetivamente e matematicamente, dá para dizer que o McLaren Artura é um melhor negócio.
Só que… estamos falando de carros que carros cuja compra costuma ser grandemente emocional. E, nesse caso, acredito que o cara que sai de casa para comprar uma Ferrari voltará para casa de Ferrari. Ele não vai comparar preços e decidir que o McLaren Artura é um melhor negócio que a 296 GTB só porque ela custa US$ 100.000 a menos. Na verdade, em algumas situações, pode até ser o oposto. Prestígio é algo pelo qual não se barganha.