Qual evento está mais próximo dos ataques de 11 de setembro ao World Trade Center: o último título de Ayrton Senna ou o último título de Sebastian Vettel?
Muitos talvez respondam, por impulso, que foi o último título de Sebastian Vettel, afinal, isso aconteceu recentemente. Mas quando você pensa um instante, percebe que aquele maldito ataque terrorista aconteceu apenas 10 anos depois do tricampeonato de Senna, e 12 anos antes do tetracampeonato de Vettel. Apesar de a contagem temporal ser concreta, a percepção da passagem do tempo é abstrata. Ela depende de uma série de referências pessoais que podem ser racionais ou subconscientes.
As racionais incluem eventos memorizados que usamos para demarcar um espaço temporal. A Copa do Mundo de 1990 e o ataque ao World Trade Center em 2001 são eventos memorizados que me ajudam a lembrar quanto tempo faz, por exemplo, que eu estive na escola. A Copa da Itália aconteceu no meu ano de formatura da pré-escola. Os ataques terroristas de Bin Laden aconteceram durante a viagem de formatura da minha turma do Ensino Médio. Ainda que eu não tivesse memorizado que estudei entre 1991 e 2001, a Copa e o ataque seriam minhas balizas temporais pessoais.
As subconscientes sãos emoções, expectativas, nível de concentração e estresse e outros fatores ligados às sensações, sentidos e sentimentos. Quando você está entediado, na fila do alistamento militar obrigatório, duas horas parecem durar a manhã inteira. Quando você está engajado em um trabalho empolgante, que dá prazer, a manhã inteira parece ter passado em 15 minutos. Há ainda os fatores externos: as experiências que você viveu, por exemplo.
Meu pai tinha uma fita cassete dos Beatles no carro quando eu era criança. E eu gostava de Here Comes The Sun. Ainda hoje, mesmo sabendo que Here Comes The Sun foi composta em 1969, ela me parece uma música de 1989. Meu pai certamente pensa em 1969 ao ouvi-la, mas para mim, ela aconteceu em 1989. Essa referência afeta não apenas nossa percepção da passagem do tempo, mas também nossa percepção dos eventos temporais – ou seja: quando um determinado evento aconteceu. É por isso que o ataque terrorista de 2001 parece mais próximo de Vettel do que de Senna. Senna foi um piloto dos anos 1980 e do comecinho dos anos 1990. Vettel é um piloto dos anos 2000. O ataque aconteceu nos anos 2000. Logo, Vettel está mais próximo do ataque do que Senna.
Da mesma forma, quando falamos dos carros aerodinâmicos, da inspiração aeronáutica, futurista, da era espacial, quem vem à mente são os carros dos anos 1950 e 1960. Mas a “space age” foi, na verdade, a segunda onda do design aerodinâmico/espacial. O início do design aerodinâmico aconteceu um pouco antes, nos anos 1930, na forma do estilo Streamline Moderne, um desenvolvimento da Art Déco — aquele estilo que transformava os carros em verdadeiras obras de arte com inspiração futurista.
O Art Déco surgiu na França nos anos 1910 combinando elementos de vários outros estilos artísticos, técnicas de manufatura de alto padrão e novos materiais, que resultaram em um estilo completamente novo, que acabou associado à modernidade das inovações da época. Pela primeira vez o mundo percebeu que aquele futuro imaginário no qual as máquinas facilitariam nossas vidas e trariam conforto estava começando a acontecer. O estilo enfatizava linhas retas, cores, variações de texturas e contrastes de materiais e processos, que eram usados como elementos decorativos.
A inspiração no futuro idealizado resultou nos para-lamas curvilíneos e alongados, capô longo e o conjunto de formas aerodinâmicas — ainda que fossem da aerodinâmica da época, que via na gota a forma perfeita. Como a origem do estilo era puramente artística, não era raro ver nos carros Art Déco uma sobreposição da forma à função. Como jóias, alta costura e a arte em si, estes carros eram símbolos de um estilo de vida moderno e luxuoso e poderiam ser considerados um mero acessório para exibicionismo social se não fossem alguns dos carros mais potentes, velozes e luxuosos de sua época.
Entre eles, estava o vencedor do Concours d’Elegance Pebble Beach de 2021, um raríssimo Mercedes-Benz 540K Autobahn Kurier.
O carro é a essência do design mezzo aerodinâmico mezzo gótico da época. É preto, com as rodas traseiras cobertas, uma silhueta dinâmica, que transmite velocidade e, ao mesmo tempo, algo misterioso em suas linhas, com a dianteira imponente. E ele nem poderia ter sido diferente.
Nem todo 540K tem esse status de obra de arte. A maioria deles eram carros de seu tempo, com variações de carroceria convencionais, sem essa inspiração futurista — exatamente como a maioria dos carros comuns de hoje. Os carros futuristas, os carros visionários, são aqueles destinados a uma camada mais alta da pirâmide de consumidores. E o 540k Autobahn Kurier era um desses.
Os 540K foram lançados em 1936 no Salão de Paris como um desenvolvimento do 500K, que, por sua vez, era uma evolução do SSK, projetado por Ferdinand Porsche e imortalizado na versão Count Trossi, outro ícone dos carros Art Déco. Os 540K poderiam ser conversíveis de dois ou quatro lugares, cupês de quatro lugares ou limousines de sete lugares (com direito a laterais e vidros blindados). Além disso, havia três variações de chassi — duas longas e uma curta.
O motor de oito cilindros em linha era uma variação de 5,4 litros do 500K, alimentado por dois carburadores pressurizados que produzia… 115 cv. Achou que seria mais, certo? Por algum tempo ele tinha mais sim. Porque havia um compressor roots, que poderia ser acoplado manualmente por alguns instantes ou automaticamente sempre que você colasse o pedal no metal, como um “kickdown” de carro automático. Isso elevaria a potência para 180 cv, suficientes para levar o Mercedes até 170 km/h.
O carro, claro, não era apenas visual. Ele podia ser equipado com um câmbio de cinco marchas com sincronização nas três velocidades mais altas. Os freios já tinham assistência hidráulica e o chassi era significativamente aliviado, se comparado ao do seu antecessor, graças ao uso de tubos de seção oval, herança das Flechas de Prata, que já corriam na época.
Tudo isso fazia dele um dos carros mais avançados que se podia ter na época e a Mercedes pretendia ir além, atualizando o motor com um aumento de cilindrada de 5,4 litros para 5,8 litros. E o carro foi muito bem sucedido — entre 1936, ano de seu lançamento, e 1939, ano em que teve sua produção interrompida forçadamente por causa da Segunda Guerra Mundial, foram feitos 419 exemplares. Considerando que o mundo ainda sofria as consequências da Crise de 1929, estamos falando de mais de 100 unidades por ano.
Isso, por si, tornaria o 540K um carro digno das maiores coleções do presente. Mas há um outro detalhe que o torna ainda mais especial. Ele é o único sobrevivente da espécie Autobahn Kurier, ou “cruzador de Autobahn”.
Celebrando a estrada
A história dos Autobahn Kurier começou pouco antes do lançamento do 540K, em 1934, quando a Mercedes levou seu antecessor, o 500K ao Salão de Berlim. Em referência à novíssima rede de auto estradas inaugurada pelo governo alemão, a Mercedes desenvolveu uma versão destes carros com uma carroceria aerodinâmica mais avançada que o permitisse viajar nas altas velocidades que este novo sistema de rodovias permitiria.
Infelizmente as informações sobre os Autobahn Kurier são escassas e esparsas. Há quem diga que foram feitos seis exemplares com esta carroceria aerodinâmica, e que somente um deles saiu com o motor 5,4 — daí a possibilidade de haver apenas um exemplar do 540K Autobahn Kurier. Outras fontes sugerem que foram feitos dois destes e que somente esta unidade que venceu o concurso de Pebble Beach em 2021 sobreviveu. As duas hipóteses não se anulam, como você já deve ter percebido. Como estes carros eram frequentemente configurados de acordo com o gosto do cliente, é perfeitamente possível (e muito provável) que seu primeiro proprietário, o oftalmologista espanhol Ignacio Barraquer, o tenha solicitado desta forma.
Como é comum com carros opulentos do passado, este 540K Autobahn Kurier foi cercado de lendas sobre sua origem. Uma delas dizia que o carro fora um presente de um alto oficial do partido nazista, que foi submetido a uma cirurgia bem-sucedida do dr. Barraquer. O enredo é um clichê dos carros de luxo alemães dos anos 1935-1940, e sempre envolve nazistas e personalidades de destaque. Outra história, contava que o carro foi um presente de um príncipe árabe que teve sua visão restaurada pelo médico. Tudo muito romântico, mas a verdade é bem mais mundana e pragmática.
Segundo o filho do dr. Ignacio Barraquer, Jose Barraquer, seu pai comprou o carro porque estava trabalhando na Alemanha, na época. A versão é comprovada pelo arquivo de ordens de compra da Mercedes. O próprio dr. Barraquer encomendou o carro, sob o número de pedido 288557.
O carro ficou pronto em 1938, mesmo ano em que ele decidiu sair para uma grande viagem com sua esposa. Com a sra. Barraquer e o Mercedes 540K, o médico partiu da Espanha em direção ao Egito, onde visitou a capital Cairo e a cidade histórica de Alexandria. De lá, o carro voltou embarcado para Barcelona.
O dr. Barraquer usou o carro sempre que podia e era um tanto ciumento com o belo Mercedes (quem pode julgá-lo por isso?). A única modificação feita por ele foi a remoção dos para-choques, que deixavam o carro ainda mais esbelto e aerodinâmico. Segundo seu filho José, mesmo a 170 km/h o carro se mostrava estável e seguro. Apesar disso, em 1953 o dr. Barraquer ficou cansado de lidar com os problemas de um carro tão exclusivo de quase 15 anos, feito antes da Guerra, e o substituiu por um 300S cupê produzido em série.
O carro foi dado de presente ao seu genro, que o usou por algum tempo até devolvê-lo ao dr. Barraquer, que então passou o carro ao filho José. O carro foi repintado e mantido na garagem da família e, depois, passou algum tempo exposto em um clube automobilístico local — a família já estava de volta à Catalunha, na época.
José conservou o carro até sua morte, em 1998. O 540K Autobahn Kurier foi vendido em 2003 a um colecionador americano que o restaurou completamente na renomada restauradora de Paul Russell, em Massachussets, EUA.
Durante a restauração foram descobertos detalhes até então desconhecidos sobre o carro. Na verdade, o carro em si era algo jamais visto, porque passou 65 anos com a mesma família, sempre em suas propriedades ou no clube espanhol, então pouquíssimas pessoas haviam visto este Mercedes até sua compra pelo colecionador americano.
No ateliê de restauração foi descoberto, por exemplo, que a pintura e o interior já não eram mais originais — o que era esperado, considerando o tipo de uso que o dr. Barraquer fazia do carro. Além disso, ele tinha motor, câmbio e eixo traseiro originais, e as únicas modificações vieram de um reparo que o próprio dr. Barraquer fizera em sua viagem intercontinental nos anos 1930. A junta do cabeçote acabou queimada e ele fez o conserto por conta própria usando os componentes que estavam disponíveis.
O que mais intrigou os restauradores, contudo, foi como a Mercedes conseguiu adaptar componentes de prateleira a um carro tão exclusivo. Toda a estrutura de madeira do Autobahn Kurier veio do 540 Cabriolet, tendo sido modificada apenas onde necessário para acomodar a carroceria e componentes exclusivos do chassi do Autobahn Kurier. As janelas traseiras também usam o mesmo mecanismo de abertura do para-brisa do Cabriolet.
A restauração durou cerca de dois anos, e o carro estreou no Pebble Beach Concours d’Elegance, conquistando o prêmio de melhor da categoria, o troféu Mercedes-Benz (concedido ao melhor modelo da marca no evento), o prêmio de Carro Fechado Mais Elegante, e foi finalista na decisão de Melhor do Evento. Agora, em 2021, ele voltou a Pebble Beach depois de alguns prêmios em outros eventos de clássicos para, finalmente, receber o título máximo.