Quem acompanha o FlatOut conhece nossa posição em relação à segurança no trânsito. Um dos primeiros textos que publicamos, ainda no final de 2013, questiona a real função dos limites de velocidade brasileiros. Outros dois, que estão entre os mais lidos do site, falam sobre como a polícia americana acaba com os “donos” da faixa da esquerda e sobre mitos a respeito das reduções de velocidade em São Paulo.
Também falamos sobre como a fiscalização eletrônica pode estimular comportamentos de risco, sobre a necessidade de fiscalização humana e questionamos o recente plano nacional de redução de acidentes, que parece mais uma justificativa para produzir infratores do que efetivamente salvar vidas.
Um questionamento recorrente em nossa linha editorial é a eficácia dos radares. Afinal, eles não fazem o motorista adotar um comportamento seguro imediatamente: como estão integrados ao panorama viário, eles são pouco visíveis e, muitas vezes, estão parcialmente ocultos. Se o motorista não vê, ele mantém a velocidade tida como perigosa e o risco continua. Nosso argumento é que se há a necessidade de reduzir a velocidade do tráfego, devemos adotar elementos que induzam o motorista a fazer isso naturalmente. É aquele velho conceito de “velocidade natural”.
Função educativa ou sensação de estar sendo roubado por políticos?
A velocidade natural é tecnicamente conhecida como velocidade operacional ou percentil 85. É a velocidade abaixo da qual 85% dos motoristas trafegam quando não há fatores que condicionem seu comportamento, ou seja: a velocidade em que eles se sentem seguros. Os estacionamentos de shoppings e supermercados são bons exemplos: você adota uma velocidade mais baixa, mesmo sem limites impostos ou fiscalização, simplesmente porque percebe os potenciais riscos de dirigir muito rápido ali. O ambiente te condiciona a diminuir a velocidade.
Isso significa que é possível “manipular” a sensação de velocidade dos motoristas para que eles dirijam mais devagar adotando elementos artificiais no ambiente viário. São as medidas de moderação de tráfego (ou traffic calming), que tendem a ser mais eficazes na redução de velocidades do que placas de limites e radares semi-ocultos. Elas vão desde o simples estreitamento da pista até medidas extremas como a eliminação da separação entre a pista e as calçadas, como veremos a seguir.
Lombada diagonal
Há alguns meses vimos uma faixa de pedestres “flutuante” adotada na Islândia e na Índia. A faixa era uma pintura anamórfica que dava a impressão de ser blocos atravessados na rua, e tinha a intenção de fazer os motoristas diminuírem a velocidade devido à confusão visual causada pelo efeito tridimensional. Mas a Índia também adotou elementos mais eficazes e menos confusos para reduzir os acidentes — que correspondem a 10% do número global de mortes no trânsito.
Boa parte destes acidentes acontecem nos mais de 13.000 cruzamentos com linhas férreas — tudo porque os motoristas arriscavam cruzar a linha sem parar ou diminuir a velocidade. Para influenciar os motoristas, as autoridades de trânsito adotaram faixas salientes transversais em diagonal. Desta forma, as rodas do mesmo eixo não passam juntas pelo obstáculo, causando uma oscilação incomum na carroceria, além de uma indicação sonora à qual o motorista não está acostumado. Esse estranhamento quebra o excesso de autoconfiança do motorista que não para no cruzamento com a linha férrea, levando-o a reduzir a velocidade.
Sinalização “humana”
Sabe as placas com bonequinhos indicando a proximidade com escolas, crianças brincando e travessia de pedestres? Na França, na Índia e no Reino Unido as autoridades de trânsito decidiram torná-las mais impactantes: eles passaram a indicar a presença de pedestres com silhuetas em tamanho real de crianças e adultos, normalmente acompanhadas de frases de efeito. Elas causam mais impacto do que uma placa com linguagem semiótica por indicarem mais diretamente o risco iminente, aumentando a percepção e levando à redução de velocidade.
Planalto de asfalto
Uma variação das faixas de pedestres elevadas e lombadas são os chamados “elevados” ou speed tables. São trechos de uma via elevados artificialmente por alguns para forçar a redução de velocidade. O acesso e a saída são feitos por rampas como nas faixas de pedestres elevadas. Por essa razão, além do fato de ter entre 20 e 50 metros, o elevado desestimula o motorista a desenvolver velocidade. A menos que ele seja da família Duke, de Hazzard.
Os elevados são usados em todo o mundo — no Brasil, inclusive. Em Balneário Camboriú/SC a prefeitura adotou estes elevados em alguns cruzamentos da cidade para controlar a velocidade, especialmente durante o período em que os semáforos ficam no amarelo/vermelho piscante.
Afunilamento psicológico
Apesar do estreitamento das faixas ser uma das medidas mais comuns de acalmamento de tráfego, ele traz o inconveniente de limitar o compartilhamento da faixa — algo comum onde há um número significativo de motos e ciclomotores como no Brasil, na Índia e na Europa.
Como alternativa, há medidas para fazer com que o motorista veja a faixa mais estreita, porém sem realmente estreitá-la. Em algumas cidades brasileiras, os gestores de trânsito usam tachões para delimitar a faixa, fazendo com que o motorista perceba um espaço menor para transitar — especialmente no contorno de curvas, uma vez que não há a possibilidade de cruzar a linha central divisória da pista.
A impressão de estreitamento também pode ser obtida com elementos gráficos da sinalização horizontal. Ainda que tenham sido criadas para alertar sobre a aproximação de um cruzamento ou travessia, as faixas em ziguezague do Reino Unido são o exemplo mais famoso dessa percepção de estreitamento.
Há ainda um outro tipo de sinalização de estreitamento que são as setas convergentes para o centro da faixa em sequência, e também texturas e cores diferentes na pavimentação, como nesta rua residencial dos EUA:
A sensação de estreitamento aumenta a percepção de velocidade — quando você passa correndo por uma porta estreita sua percepção de velocidade é maior do que quando você passa por um portão largo — e faz o motorista desacelerar.
Faixas que aceleram
Outra forma de aumentar a percepção de velocidade é alterando os elementos viários de referência de velocidade. Em 2006, as autoridades de trânsito de Chicago pintaram uma sequência de linhas transversais na aproximação de uma curva com alto índice de acidentes na estrada North Lake Shore. À medida em que a curva se aproximava, o intervalo entre as linhas era diminuído para criar a impressão de que o carro está mais rápido do que deveria, fazendo os motoristas reduzirem a velocidade naturalmente. Depois da pintura das faixas, o número de acidentes naquela curva caiu 36% em apenas seis meses, e as autoridades de trânsito da cidade passaram a adotar essa sinalização em outros pontos críticos.
Esse tipo de pintura também é utilizado no Brasil em alças de acesso de rodovias (como o acesso da SP-070 para o Rodoanel Mario Covas, em São Paulo acima) e antecedendo cruzamentos perigosos ou áreas de entrada e saída de veículos ou travessia de pedestres em rodovias.
Há uma outra variação destas faixas usada no Havaí e em alguns estados dos EUA. Em vez de uma sequência de linhas transversais, as autoridades locais criaram uma linha em ziguezague semelhante às faixas britânicas, porém pintadas no meio da pista. A frequência do ziguezague vai aumentando à medida em que a curva ou o cruzamento se aproxima, também causando a sensação de que se está rápido demais.
Espaço compartilhado
Outra medida de acalmamento de trânsito que vem se tornando popular são os espaços compartilhados, ou “shared spaces” em inglês. Em vez de usar barreiras físicas para proteger as ciclofaixas, sinalização para delimitar as faixas de rodagem, desníveis para separar a calçada das ruas, a ideia aqui é abolir tudo isso. É mais ou menos como as pistas de estacionamentos, que são compartilhadas entre carros e pedestres e cada um cuida do seu. O pedestre toma cuidado para não atrapalhar os carros nem ser atropelado, e os motoristas tomam cuidado para não atropelar alguém ou bater em outro carro.
A adoção mais famosa deste modelo foi na cidade holandesa de Drachten, que foi a primeira a adotar esse conceito, idealizado pelo arquiteto local Hans Monderman. A cidade aboliu as rotatórias, faixas de pedestres e ciclofaixas e simplesmente transformou algumas interseções em um enorme calçadão no qual tudo se organizou naturalmente, de forma pacífica para que todos conseguissem seguir seu caminho em segurança.
“Anarcotrânsito”
Uma variação dos espaços compartilhados é a remoção da sinalização. A Inglaterra iniciou a remoção da linha divisória central de algumas ruas para que os motoristas reduzam a velocidade instintivamente. No Brasil, Canadá, Austrália, Japão e meia-dúzia de outros países isso não seria possível pois usamos a faixa central para determinar se a via tem mão dupla (faixa amarela) ou mão única (faixa branca), mas na Inglaterra essa distinção não existe.
Indo mais além, um cruzamento sem sinalização alguma indicando preferencial, parada obrigatória ou divisão de faixas também tem um efeito semelhante: como não há preferencial, a tendência natural é que os motoristas parem o carro e negociem com os outros motoristas a passagem. Quando se determina uma preferencial em vias concorrentes, o motorista se sente seguro para praticar uma velocidade mais alta porque sabe que o outro é obrigado pela lei de trânsito a lhe ceder a vez.