Na sexta-feira (7) conhecemos os detalhes do projeto de lei enviado ao Congresso Nacional pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro da Infraestrutura Tarcísio Gomes de Freitas, com propostas de alterações no Código de Trânsito Brasileiro.
Agora que já conhecemos exatamente as propostas, neste post vamos analisar as propostas e expor nossas opiniões e sugestões sobre as mudanças no código de trânsito e o que achamos que deveria ser modificado ou não, com base em estudos de segurança realizados mundo afora e nas experiências de países em que a mortalidade no trânsito é muito reduzida.
Cadeirinhas
Vamos começar pelo ponto mais polêmico e tirá-lo logo da frente. Sendo direto: concordamos com a inclusão das cadeirinhas e assentos infantis como item obrigatório, conforme proposto pelo Projeto de Lei.
Isso é uma medida necessária porque atualmente o Código não prevê esta obrigatoriedade — a imposição foi feita por meio de uma resolução, que até pode regulamentar, mas não tem força de lei para impor a penalidade. Ou seja: é inconstitucional multar usando como base legal somente uma resolução. É preciso haver uma lei que disponha sobre a penalidade, sendo a resolução apenas uma “explicação” legal, para colocar em palavras fáceis. Nesse ponto, a inclusão é positiva.
A discussão portanto, não é a desobrigação de ter a cadeirinha, mas se a ausência será punida com multa ou com advertência.
Aqui é importante ressaltar que é interesse dos pais em proporcionar segurança para seus filhos. Se eles precisam da ameaça de multa para proteger seus filhos, minha opinião pessoal é que o problema deveria ser tratado pelo Conselho Tutelar e não pelo Contran. Contudo, considero equivocada a decisão do governo em retirar a punição por multa. Acho que ela deve ser mantida para que não haja relaxamento por parte dos pais, do tipo “vou só até ali, não precisa da cadeirinha”. O acidente acontece quando a prevenção falha.
O que penso é que a advertência por escrito poderia ser uma opção aos motoristas que ainda não têm outras infrações no prontuário, exatamente como prevê a lei para infrações leves ou médias, e que a medida administrativa não deveria ser a retenção do veículo, por uma questão de coerência que exemplifico a seguir.
A cadeirinha é obrigatória no carro da família, mas não é obrigatória em veículos de aluguel ou coletivos. Se o carro particular for flagrado, ele deve ser retido até regularização. Retenção para regularização é o seguinte: o motorista é impedido pelo agente de prosseguir viagem enquanto não estiver adequado à lei. Nesse caso, ele só pode seguir viagem se der um jeito de encontrar uma cadeirinha. Se não tiver cadeirinha, deve ficar no local até o fim da operação, até ser liberado irregularmente pelo agente, ou até conseguir uma cadeirinha.
Ou então há uma outra solução totalmente dentro da lei: chamar um táxi para transportar a criança. Como os táxis não são obrigados a ter assentos infantis, não há infração alguma. A lei foi cumprida, ainda que a criança siga desprotegida. Nesse caso, faz sentido reter o carro para regularização se a lei permite que a viagem prossiga desta forma?
Caso a morte ou lesão a uma criança em acidente de trânsito decorrente da falta de assento infantil ou cuidados fundamentais, resultasse em processo aos pais com base no artigo 136 do Código Penal, que é a base legal em casos nos quais as crianças são deixadas trancadas no carro sob sol forte (Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua […] guarda […] para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, […] privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis[…]), poderíamos extinguir a cobrança da multa, sem correr o risco de impunidade.
Por último, uma informação que não pode ser ignorada: a cadeirinha não é segura por si. É preciso usá-la corretamente. , mostrou que em 20% dos acidentes com mortes de crianças, a cadeirinha não foi usada ou estava sendo usada incorretamente. Portanto, a simples obrigatoriedade não é garantia de segurança.
Luz baixa durante o dia
O uso dos faróis durante o dia é uma forma de tornar o veículo mais visível e visibilidade aumenta a segurança. Curiosamente, tanto eu, quanto o Juliano e o Dalmo usamos os faróis acesos o tempo todo desde que começamos a dirigir, antes da obrigatoriedade — mesmo de dia e mesmo onde ele não é obrigatório, como dentro das cidades. É uma questão de hábito e bons costumes.
O governo justifica a mudança devido à durabilidade das lâmpadas e isso é realmente uma questão a ser considerada. Ao mesmo tempo, o governo propõe transformar em lei a obrigatoriedade das DRL, o que também é algo positivo.
Concordamos com a obrigatoriedade das DRL por força de lei, mas não concordamos com a desobrigação do uso dos faróis em rodovias de pista dupla. A luminosidade do farol baixo ajuda na percepção do veículo — como o próprio Ministro reconhece em sua justificação ao tratar dos ônibus e motos — e é benéfica mesmo dentro das cidades, especialmente em situações de penumbra.
O problema é que a infração pode ser assinalada sem a abordagem ao condutor, que não tem como verificar nem se defender. E isso também vale para os motoristas com lâmpadas queimadas.
Por mais absurdo que pareça, é preciso ter uma tolerância com faróis e lanternas queimados. A lei não exige que você tenha fusíveis ou lâmpadas sobressalentes no carro, não exige que você saiba trocar a lâmpada do seu carro, e tampouco pode exigir que você reboque seu carro ou que seu carro seja apreendido por ter uma lâmpada queimada.
Na maioria dos países desenvolvidos, como EUA, Itália, Reino Unido e Austrália, nem existe uma legislação específica para lâmpadas queimadas. Se você for flagrado com um dos faróis ou lanternas apagados, o agente pode te parar (pode, não deve) e questionar o motivo da lâmpada queimada. Na Itália, se você tiver as demais luzes funcionando, pode seguir viagem sem multa, desde que apresente o carro reparado dentro de um prazo pré-estabelecido pela autoridade de trânsito
O mesmo acontece nos EUA: você é multado, mas se apresentar o reparo, sua multa é cancelada e você paga apenas 10 dólares. Em Portugal você também é multado e tem um prazo para apresentar o reparo. Se apresentar, a multa é reduzida pela metade. A Austrália é mais severa com o prazo: você tem menos de 24 horas para apresentar o reparo, mas não há multa alguma. Em todos os casos você tem o direito de regularizar o carro imediatamente, caso seja prevenido e tenha uma lâmpada extra. E em nenhum destes países a infração é anotada sem abordagem do agente.
Nossa sugestão é que o uso dos faróis seja mantido nas rodovias de pista dupla, porém como infração leve e penalizada com advertência por escrito. Nas pistas simples, a infração poderia continuar como está (média, com multa e possibilidade de advertência). Nos dois casos, deveria ser obrigatória a abordagem pelo agente, e, nos casos de lâmpadas queimadas, o motorista deveria ser notificado, e deveria ter prazo de 24 horas para apresentar o carro reparado. Algo como a zona azul das cidades: você é notificado e se apresentar o reparo, paga apenas uma taxa administrativa. Se não apresentar o reparo, é multado.
Farol baixo sob chuva, neblina ou cerração
Outra proposta referente aos faróis é o uso de luz baixa sob neblina, chuva ou cerração durante o dia. Atualmente o Código de Trânsito exige apenas que se use as luzes de posição, que são inócuas nessas condições. Concordamos com a modificação pois são situações de baixa visibilidade em que a luz baixa permite que o veículo seja melhor percebido pelo outro — algo fundamental para a segurança.
Pontos na CNH
Como vimos há algumas semanas, se o governo pretende atuar para acabar com a “indústria das multas” , não há a necessidade de mexer na pontuação da CNH. Nosso sistema de pontos já é um dos mais permissivos do mundo, com prazos de validade de apenas um ano e uma boa margem de tolerância, mesmo com a chamada indústria da multa. Nesse caso nossa sugestão é que tudo fique como está.
O caso dos motoristas profissionais deve ser analisado separadamente. Eles estão mais sujeitos a infrações, porém são profissionais — o que inclui um processo de habilitação diferenciado. Sendo assim, eles deveriam ser mais prudentes e mais habilidosos que eu e você. Uma possibilidade seria dobrar a pontuação como na Itália (veremos mais adiante), porém exigindo alguma contrapartida, como validade menor para o exame médico e e testes mais severos para renovação. Por mais que isso seja oneroso para o empreendedor do asfalto.
Na Itália os motoristas amadores têm limite de 20 pontos para dois anos, com validade dos pontos de 24 meses. Se não for multado, o motorista ganha dois pontos extras a cada dois anos sem multas, com limite de 30 pontos. Já os motoristas profissionais têm o dobro da pontuação — 40 pontos —, mas se forem multados o valor também é multiplicado por dois.
Como comparação, no Reino Unido os motoristas têm um limite de apenas 12 pontos para três anos. As multas têm peso de 1 a 11 pontos, e a pontuação fica no prontuário por um mínimo de quatro e máximo de 11 anos. A pontuação é atribuída por infrações, mas também por acidentes: o motorista alcoolizado que causa um acidente fatal tem 11 pontos atribuídos à sua licença por um período de 11 anos. Ou seja: você até pode voltar a dirigir, mas se cometer uma única infração em 11 anos, perderá sua licença.
Na Alemanha os motoristas têm limite de oito pontos, com validade de 2,5 a 10 anos dependendo da severidade da infração/acidente.
Dito isso, nosso limite de 20 pontos com validade de um ano é um dos mais permissivos, e seria suficiente com radares não-ocultos, lombadas eletrônicas, sinalização correta e, especialmente se as autoridades fizessem valer o direito do cidadão de transformar sua primeira infração leve ou média no período em advertência — algo que vem sendo negado por indeferimento automático das solicitações.
Validade da CNH
A ampliação do prazo de validade da CNH para motoristas não-idosos é uma boa proposta para “desburocratização”. Praticamente todos os países desenvolvidos (EUA, Austrália e União Europeia) têm prazos mais longos que os nossos cinco anos. Isso não significa abrir mão da severidade com motoristas mais idosos. Uma renovação a cada dez anos não será algo nocivo se mantivermos o sistema de 20 pontos.
Quanto aos motoristas idosos a periodicidade poderia ser ampliada para cinco anos entre 60 e 65 anos e, a partir dali, a cada dois ou três anos, no máximo, a exemplo dos países citados anteriormente.
A exceção seriam os motoristas profissionais. A contrapartida para o limite maior de pontos, é uma verificação mais frequente de sua capacidade de conduzir em segurança. Afinal, se eles ficam mais tempo no trânsito, da mesma forma que estão mais propensos a serem mais multados, eles também estão mais propensos a se envolver em acidentes. Uma revisão da CNH a cada cinco anos, com testes e exames mais severos poderia ser esta contrapartida.
Radares
Os radares não estão no Projeto de Lei, mas aproveitamos para tocar nesse assunto novamente porque ele vem sendo envolvido na discussão pública.
Todos concordam que os radares eles estão lá para garantir que você não exceda o limite de velocidade. O jeito mais fácil de fazer isso é, obviamente, dirigindo sempre no limite ou abaixo dele. Só que, a menos que você seja obsessivo com o velocímetro (ou tenha limitador/alerta sonoro de limite), a velocidade praticada é influenciada pelo seu entorno — é daí que vem o conceito do 85º percentil, usado para definir limites de velocidade e justificar a implementação de controladores de velocidade. É o que te faz aliviar o pé no estacionamento do supermercado ou shopping, e o que te faz aumentar a velocidade ao sair da rua de casa e entrar em uma avenida.
Ao mesmo tempo, nenhum motorista é capaz de ficar 100% do tempo controlando precisamente sua velocidade — nem mesmo a ECU do cruise control faz isso com precisão. Controlar a velocidade no painel de forma contínua é desgastante e perigoso, pois divide a atenção do motorista com o que realmente interessa, que é o que acontece ao seu entorno.
Como o radar é uma máquina programada para multar, se detectar uma velocidade acima de valor X, se houver uma máquina destas em uma daquelas oscilações breves de velocidade do carro, o motorista será multado — e considerado um risco em potencial ou ridicularizado como “apressadinho”, mesmo que não representasse um risco ao ambiente viário. E o motorista multado nessa condição sabe que não representou um risco, afinal, ele chegou em casa com segurança, freou no cruzamento, deu passagem ao pedestre e tomou cuidado na área de escola, como faz a maioria dos motoristas. Ele vai e volta sem causar nem sofrer acidentes. Mas dali a 30 dias vem a notificação do departamento de trânsito, dizendo que ele é uma potencial vítima/agressor se não mudar de comportamento.
É isso o que causa a revolta dos motoristas. A proliferação indiscriminada dos radares, mesmo em locais sem histórico de acidentes, transformou motoristas outrora responsáveis em potenciais assassinos ao volante.
E a situação fica pior se o radar não for visível: a máquina multou, mas não impediu que ele seguisse viagem em velocidade tida como “perigosa”. Não é como a cadeirinha, que só coloca em risco a criança. Ele coloca em risco o ambiente viário, se estiver em velocidade escandalosamente alta, e segue colocando todos em risco. É por isso que os radares deveriam ser visíveis. Também é por isso que as lombadas eletrônicas não sejam retiradas.
Se a segurança depende da redução de velocidade, o que importa mesmo não é multar para, quem sabe, numa próxima vez, o motorista não fazer mais isso. Isso soa como adestramento, no qual você recompensa ou pune o animal por sua condita. O que importa mesmo é que o motorista assuma a velocidade segura. Até porque pode não haver uma próxima vez. Esqueça o argumento de que o motorista, temendo os radares escondidos, irá andar devagar. Ele irá fazer uma análise de risco. Então é melhor que se reduza a velocidade em pontos críticos, do que transformar a fiscalização em uma loteria.
Nesse ponto, portanto, o governo está equivocado em sua tentativa de acabar com radares e lombadas eletrônicas. A população, tenho certeza, não é contra o controle de velocidade, mas contra a incoerência dos radares escondidos. Até mesmo porque nem sempre a sinalização está adequada. E esta é nossa próxima sugestão.
Sinalização adequada
O Código de Trânsito Brasileiro, ao mesmo tempo que impõe deveres ao motorista, também concede direitos e atribui deveres às autoridades. Entre estes deveres está a necessidade de uma sinalização adequada e regulamentada. Ela deve ser suficiente para que o motorista tenha a chance de se informar corretamente para cumprir a lei.
Um bom exemplo é o rodízio municipal de São Paulo: a sinalização é insuficiente para que o motorista possa cumprir a lei. Ao se aproximar da zona de rodízio, a sinalização informa apenas que há restrição e diz para o motorista verificar sua placa. Onde? Como? Onde começa e onde termina? Quando começa e quando termina? Tudo isso deveria constar na sinalização, por mais absurdo que possa parecer. Porque o motorista precisa ter a chance de cumprir a lei. Sem isso ele só tem duas alternativas: dar meia-volta e ir embora, ou ir em frente e arriscar.
Quando a sinalização/fiscalização está errada:- Em uma pista com duas faixas para o mesmo sentido, coloque no lado direito da pista placas de limite de velocidade que possam ser encobertas por caminhões e/ou outros veículos de maior altura. Lembre-se que veículos pesados trafegam pela direita. – Alguns metros mais adiante coloque outra placa com limite menor, também em altura baixa, de modo que ela possa ser encoberta por veículos na faixa da direita. – Mais adiante instale um radar de 70 km/h no ponto em que você normalmente usaria o embalo do carro para enfrentar uma subida ingreme. – Crie no seu código de trânsito um artigo que prevê limite de velocidade de 100 km/h quando não houver sinalização. Pronto. Você terá motoristas achando que estão dentro da velocidade sendo multados e gerando estatísticas para o governo dizer que eles são irresponsáveis e potenciais assassinos sobre rodas.
Posted by Leo Contesini on Saturday, October 6, 2018
A sinalização de limites de velocidade também tem suas falhas: uma pista dupla precisa ter as placas indicativas em altura suficiente para não ser coberta por veículos maiores na faixa da direita. E também há os abusos do poder público, como relatamos Entre estes deveres está a necessidade de uma sinalização adequada e regulamentada..
Se o governo está realmente interessado em garantir a segurança e diminuir o número de infrações do jeito certo — que é fazendo os motoristas cumprirem a lei — deveria incluir em suas medidas a revisão da sinalização, que não pode ser menos que perfeita. Sem isso, não há como cumprir a lei integralmente, e o próprio estado perde o direito de punir.