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Papo de Garagem Pilotagem Técnica

Não seja ingênuo: carros de tração dianteira podem ser insanamente divertidos e velozes

Como vocês viram na análise dinâmica do sistema de tração traseira, esta possui uma série de vantagens técnicas importantes: divide melhor as funções entre os eixos dianteiro e traseiro, tende a distribuir melhor as massas e ganha poder de tração com a transferência de peso para trás ocorrida nas arrancadas e saídas de curva. Não à toa, é o sistema mais utilizado em carros de corrida, seja de turismo, protótipos ou monopostos.

E a tração dianteira? Uh, começa só com desvantagens: os pneus da frente ficam sobrecarregados com três funções – a maior parte do esforço de frenagem, esterçar o veículo e transferir o torque do motor para o asfalto –, a distribuição de massas é pior e você fica de fora de quase todas as traquinagens que um tração traseira permite.

powertrain

Há quem fale do torque steer, que é o esterçamento involuntário que um tração dianteira potente pode fazer em arrancadas –  fenômeno em boa parte causado pela diferença de comprimento das semi-árvores de transmissão (veja imagem acima). Mas é importante lembrar que um carro de tração traseira potente faz o mesmo, rabeando para um dos lados devido à diferença momentânea de torque para cada roda produzida pelo diferencial autoblocante.

Então é isso, fim de papo? Não. Como disse no texto anterior, o eixo motriz é tão somente um dos elementos que fazem um carro ser emocionante ao volante e efetivamente veloz na pista. Reduzir os esportivos de tração dianteira ao exercício comparativo entre os três parágrafos acima é o que o senso comum faz e leva muita gente a torcer o nariz para carros realmente incríveis. Há muitos outros ingredientes nesta receita.

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Existem uma série de carros de tração dianteira míticos – tão bons que são capazes de fazer jornalistas ingleses saborearem exemplares franceses de joelhos, caso do Peugeot 205 GTI aí de cima (leia nosso post com a sua história aqui), que fez Chris Harris se derreter em elogios e é considerado por Jeremy Clarkson como um de seus carros favoritos de todos os tempos. Mas como é possível um tração dianteira ser um bom esportivo com estas limitações citadas?

 

Outra filosofia

Certa vez, Jason Fenske, engenheiro mecânico e apresentador do excelente canal Engineering Explained, listou uma série de qualidades que fazem um carro ser emocionante ao volante, sem entrar no mérito de gostos pessoais (ronco, tipo de câmbio, etc). São elas:

1) Agilidade e vivacidade: um carro que mude de direção de forma rápida e graciosa. O mínimo de inércia e o máximo de balanço, idealmente com o peso bem distribuído sobre os eixos.

2) Sistema de direção ágil, com relação bem multiplicada, o máximo de feedback às mãos do motorista sobre o que está acontecendo nos pneus dianteiros em termos de aderência e texturas, peso natural

3) Controlabilidade: um carro de dinâmica neutra, previsível e controlável. Forças G abundantes, mas com limite amigável.

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Com isso já temos um pequeno aperitivo do caminho das pedras de um carro de tração dianteira. Como vimos no post anterior, eles se dão melhor com entre-eixos curtos que os tração traseira, seu powertrain é mais compacto (menos peso) e tudo isso colabora para os fatores enumerados.

Ok, Juliano, entendido. Mas como compensar as dificuldades citadas no início do texto, especialmente a principal no âmbito técnico – a distribuição de peso deficitária e o sobrecarregamento dos pneus dianteiros? Fazendo do limão uma limonada.

Bem, o grande segredo de um esportivo de tração dianteira não está na frente, mas sim atrás. Fazer da traseira a ponta de grafite de um compasso, aproveitando justamente a distribuição de peso para fazê-la girar gentilmente na dose certa para que acompanhe a mesma direção dos pneus dianteiros e facilitando a vida destes – e nisso um tração dianteira pode ser mais abusivo, porque seu eixo traseiro tem menos carga vertical e não é motriz: não há efeito de freio-motor nem aplicação de torque e ainda é mais leve (menos inércia = mais controle).

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A coisa funciona mais ou menos assim. No processo de frenagem, naturalmente a traseira de um tração dianteira já é mais solta, devido à transferência de peso para a frente de um eixo que já é mais leve que um tração traseira de motor dianteiro. Num hatch este efeito é bastante percebível. Na freada – especialmente as mais longas – o piloto precisa estar ciente disso e usar este efeito a seu favor, direcionando esta inércia para que ela ajude a dianteira a apontar.

Há dois cenários: no mais comum, você vai sentir uma ligeira movimentação da traseira na freada: você vai dialogar um pouco com isso e acertar o timing desta pequena pendulada para que ela case bem com a hora em que você realmente vai esterçar para a curva. Neste último a movimentação da traseira é bastante sutil. Veja isso acontecendo neste vídeo do Suzuki Swift Sport, logo aos 25 s. Essa vivacidade é bastante empolgante, especialmente em carros leves:

No mais dramático, geralmente em descidas ou em carros mais curtos, o automóvel inteiro pendula em torno da dianteira, podendo até exigir algum contra-esterço durante o trail braking, que é o alívio do pedal de freio combinado ao início do esterçamento do volante. Veja Ricardo Maurício fazendo uma entrada profissional de cair o queixo na mesma Curva 1 do Velo Città, aos 1:20 s!

Este foi um exemplo mais extremo baseado numa situação de pista: Ricardo entrou o mais quente que pôde para não dar chance de ser atacado. Mas alguns carros de rali de tração dianteira apresentam comportamento similar. Se você acha isso trivial e pouco emocionante, bem, talvez o seu sobrenome seja Fujiwara, Tsuchiya ou Peterson…

Tanto para o caso do vídeo do Swift Sport quanto o do Civic aí de cima, o carro precisa ter um balanço de freios esportivo, que não seja tão conservador. Em nome da sensação de segurança, muitas fábricas acabam adotando uma distribuição de freios bem mais frontal do que o ideal, pois a traseira dançarina pode causar sensação de insegurança aos incautos – que acabam aliviando o freio em momentos de emergência. Mas apenas com o freio motor numa redução de marcha mais forte já é possível de conseguir esta dança.

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Contudo, é preciso tomar cuidado para a faca não voltar para você: estamos falando do temido lift off oversteer, que é o sobre-esterço súbito causado por uma repentina transferência de peso para a dianteira. Lá no vídeo do Civic, Ricardo Maurício produziu este efeito de forma se não proposital, ao menos esperada. Sendo um piloto profissional do mais alto calibre, ele não só domou a traseira do Honda como fez o efeito trabalhar a favor dele, entrando e saindo quente da Curva 1 do Velo Città. Mas, nas mãos de um amador, o lift off oversteer é bem mais assustador, dramático e menos controlável, pois acontece por razões diferentes: uso de marcha muito curta para uma curva de média-alta (deixa o freio motor muito forte), solavanco produzido pela redução de marcha sem punta-tacco num trail braking ou simplesmente uma tirada de pé do acelerador repentina no meio da curva por erro de cálculo, como o infeliz e irresponsável “piloto” deste Peugeot:

Voltando onde estávamos. Em termos de balanço de freios, os exemplos mais bacanas em esportividade que eu experimentei foram: Ford Ka duas portas, Ford Focus hatch, Peugeot 205 e 106, Mini Cooper das gerações anteriores (R50 e R56), Suzuki Swift Sport, Renault Sandero RS, BMW Série 1 e os Honda Civic EG e EK – mas claro, há dezenas de outros casos. A Audi e a Mercedes-Benz costumam ser mais conservadoras neste balanço: nestes casos, a frenagem é estável, como em um tração traseira, e você precisa fazer o carro apontar só com o volante mesmo, porque o câmbio automatizado impede reduções forçadas.

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Voltando ao caso ideal. Uma vez que a traseira deslizou com sutileza e a dianteira agarrou a tomada da curva, o carro está efetivamente fazendo a tomada e mergulhando em direção ao ponto de tangência, que é o ponto mais próximo do lado de dentro. Se o momento anterior dependeu mais do balanço de freio, a partir daqui é o ajuste do conjunto de suspensão fará a diferença, pois o veículo apoiou nos pneus de fora e são principalmente eles que irão ditar a dinâmica da coisa até o fim da curva. A suspensão lidará com dois comportamentos distintos: o veículo sob ação do freio motor (transferência de peso para a frente) até o ponto de tangência e o veículo sob aceleração (transferência de peso para trás) após o ponto de tangência, deslizando até o lado de fora da pista e finalizando a curva.

Pensando exclusivamente em performance, o ideal é que estes dois momentos continuem o jogo de inércia da traseira iniciado no processo da frenagem, rotacionando-a na dose exata para que haja o mínimo de esterçamento possível, dando uma sobra de aderência nos pneus dianteiros que permita o piloto acelerar com maior intensidade. Quando vemos carros de corrida de tração dianteira, a traseira se comporta como um pêndulo do início ao fim da curva. Para obter este efeito, é necessária uma boa dose de cambagem e cáster na dianteira, além de uma carga avantajada de molas, amortecedores e barra estabilizadora na traseira. E alinhamento divergente nos dois eixos, se possível.

Abaixo temos um on board em um Uno pra lá de endiabrado. Este vídeo é um documento empírico de tudo o que falamos até agora: note na frenagem para o “S” do Senna (33 s) o jogo de inércia durante o trail braking – é efetivamente a rotação da traseira do carro que o faz apontar para dentro da primeira perna. E aos 40 s o piloto “captura” a dianteira com belo timing. Este efeito também é obtido somente com o freio motor, algo que pode ser visto já nos primeiros segundos do vídeo.

E nas curvas longas, como a Curva do Sol (48 s) e o Mergulho (2:05), podemos ver como a deslizada de traseira sob aceleração é diferente de um carro de tração traseira: o eixo que está tracionando o veículo é também o que o esterça, permitindo um poder de aceleração angular impossível para um tração traseira. Aqui não há perda de tempo por destracionamento (exceto, é claro, em ângulos de guinada críticos) e o automóvel continua desenvolvendo.

Em carros de rua, contudo, não é possível ser tão radical. Uma dinâmica destas seria extremamente perigosa, pois qualquer freada ou alívio mais rápido no acelerador (lift off) durante estas deslizadas soltaria a traseira de vez, resultando numa rodada. Mas esta lógica está presente nos esportivos de rua de tração dianteira, apenas em uma versão suave. Carros como os hot hatches franceses da década de 1990, Ford Ka das primeiras gerações, Civic EG e EK são todos assim. Mesmo carros maiores, como o Ford Focus hatch, apresentam uma dinâmica surpreendentemente neutra, que só pode ser obtida pelo escorregamento com finesse do eixo traseiro.

Já os esportivos modernos ficaram muito mais velozes mas perderam bastante desta característica, optando por uma dose sutil de sub-esterço, induzida pela suspensão e pela eletrônica. Um dos mais neutros (ou, melhor dizendo, menos sub-esterçantes) é o Honda Civic Type R.

Outra artimanha que foi usada por alguns fabricantes para fazer o eixo traseiro se engraçar um pouco mais são os sistemas de esterçamento na traseira, sejam os passivos, como o famoso CATT (leia sobre como ele funciona aqui) e os ativos, como os 4WS do Honda Prelude (veja aqui).

Mas ainda não terminamos a curva, não é mesmo? Falta falar sobre o momento após o ponto de tangência, o trecho de reaceleração e saída de curva. Este é o ponto no qual os pneus dianteiros assumem duas funções – esterçar e aplicar o torque do motor – e como ambas consomem aderência de diferentes razões (aceleração lateral e longitudinal) e o peso é transferido para trás com a aceleração, é aqui o calcanhar de aquiles teórico dos carros de tração dianteira. Isso não se aplica aos carros de competição que vimos ali em cima, pois o esterçamento deles é quase zero devido à tocada sobre-esterçante. Mas em carros normais, você vai precisar de paciência e aceleração progressiva para não lidar com uma saída de frente. Quanto mais torque, caso dos carros downsized, como o novo Golf GTI, mais progressividade.

Contudo, o duelo abaixo nos dá um pequeno aperitivo de como a dinâmica automotiva traz muitas surpresas. Num duelo de preparação de nível similar, você consegue imaginar um Honda S2000 (tração traseira) perder de um Prelude (tração dianteira) – inclusive nas saídas de curva? No fim das contas, a vantagem do tração traseira só existe se efetivamente ele conseguir aderência para transferir peso para trás. Só que se o ajuste do veículo já é neutro, isso significa que há algum deslizamento dos pneus traseiros na curva. Ou seja, neste caso, no tração traseira a aderência disponível para tracionamento também está limitada!

Levando o caso acima ao extremo, chegamos ao ponto no qual os carros de tração dianteira apresentam forte vantagem em relação aos de tração traseira: a chuva. Nós falamos longamente as razões técnicas para isso neste post.

Em resumo, é importante termos em vista sempre a noção de que o que faz um esportivo ser emocionante e veloz nunca foi a escolha do eixo motriz, mas sim o conjunto. No papel, ter um motor pendurado lá atrás seria uma catástrofe em termos dinâmicos, mas o Porsche 911 é um dos esportivos de dinâmica mais fabulosa do mundo. Da mesma forma, os esportivos de tração dianteira fazem do limão uma limonada e podem surpreender muitos pilotos de Super Trunfo. É só ter a mente aberta e não escolher o perfume pelo frasco.

 

Os melhores esportivos de tração dianteira já feitos no mundo

Como recordar é viver, não deixe de rever nossas saborosas listas, feitas com a ajuda de vocês: parte 1 e parte 2!