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Mais do que uma máquina, uma caixa de metal com um motor que queima combustível para gerar movimento, um carro é um símbolo de independência e liberdade — ainda que não pelas mesmas razões de 20 ou 30 anos atrás, quando os jovens queriam um carro para poder sair de casa sem pedir carona para os pais, quando não existiam a internet do jeito que conhecemos hoje, ou smartphones e todos estes aplicativos que permitem que eles fiquem conectados a qualquer momento.
Antes, ter um carro era a ambição de quem queria liberdade para ganhar o mundo. Hoje, ele representa a liberdade para fugir dele.
A noite é quando a natureza nos deixa cegos, mas dirigir um carro te dá olhos para enxergar o mundo de uma maneira diferente, uma maneira toda sua. A possibilidade de misturar o isolamento de dentro do seu carro com a capacidade de enxergar tudo à sua volta de uma maneira primitiva, cujos inúmeros pontos escuros são preenchidos com o que há na sua mente e, ao mesmo tempo, observar a estrada à sua frente com muito mais atenção. Ou não.
Se dirigir é uma forma de fuga, dirigir à noite é a melhor forma de fuga. É um escape diferente, um período de minutos ou horas em que você é só mais um no meio da noite, sozinho com seus pensamentos e, talvez, uma boa música. Se desviar o olhar por uns instantes, você verá que o tempo não parou lá fora, ou que passou rápido demais. Só que não faz diferença para você.
É curioso como um carro pode ser um instrumento tão poderoso, capaz de te colocar em uma zona diferente do espaço-tempo. Curioso porque carros são feitos por empresas que gastam milhões em seu desenvolvimento, empregam milhares de pessoas e movimentam a economia global. Empresas tão importantes que influenciam decisões do governo. Empresas que precisam de lucro. Carros são nada mais do que produtos, no fim das contas.
Mas, quando você abre a porta, senta no banco, aperta o cinto e se ajeita para um passeio noturno, nada disso importa. É como se o carro e você tivessem nascido juntos e jamais tivessem se separado. Você trabalhou, juntou grana, pagou as prestações, o licenciamento e, talvez, o seguro, e agora pode se dar ao luxo de sair de casa às duas da manhã no seu carro. Mas quando chega o momento, o legal é esquecer de todo o processo que te levou a ter um carro e só se preocupar em interagir com ele.
Antes de continuarmos, assista a este vídeo. Sério: não siga com sua leitura sem terminar de assistir a este vídeo primeiro.
A ideia do vídeo era capturar justamente esta fuga que é dirigir à noite sem destino, sem rumo e sem hora para voltar para casa. O carro, no caso, é o Scion FR-S de Reggie Mah, famoso por seus carros japoneses personalizados. Gastei alguns parágrafos para tentar descrever a sensação ambígua de sentar-se ao volante do seu carro e aproveitar para colocar a cabeça em ordem dentro de uma máquina que você pode controlar totalmente, e que interage com o mundo ao mesmo tempo em que te isola dele. Eles — Reggie Mah, o dono do carro, e a BOX One Collective, que produziu o vídeo — conseguiram sem dizer uma palavra.
Na verdade, você e o carro são um só, seja em uma estrada isolada ou nas ruas de uma metrópole. E, quando se separam, tudo fica estranho. Barulhento demais, claro demais, chato demais. Mesmo que seja só uma parada para reabastecer.
Qualquer um que goste de carros e os coloque como peça importante na sua vida conhece este sentimento, esta necessidade de saltar para dentro do carro e sair por aí sem destino. Onde você quer chegar? Não faz diferença. Você descobrirá quando chegar lá. E se chegar, porque, muitas vezes, o destino é justamente o espaço entre o banco e o volante do carro, e o caminho que você fará é só um detalhe — contanto que esteja ali, e você esteja nele.
Eu assisti Drive ontem. Sim, o filme saiu em 2011, e eu demorei três anos para, finalmente, separar uma hora e meia para vê-lo. O tempo realmente passa, porque parece que foi ontem que todo mundo falava nesse filme com Ryan Gosling interpretando o anônimo personagem principal que trabalha em uma oficina, é dublê de cinema e, à noite, ganha um dinheiro extra levando gente que ele não conhece para lugares que não são da conta dele, contanto que lhe paguem direito e não demorem mais do que cinco minutos.
O motorista do filme (ele não tem nome e é identificado apenas como “Driver”) conhece as ruas da cidade como poucos. Ele ganha a vida fazendo isso e parece apreciar cada vez que precisa sair à noite para cumprir sua parte no acordo.
Assisti ao filme justamente porque Nightrun, a pequena obra de arte que é este vídeo, tomou muita inspiração em Drive. É só reparar na fonte do título, na fotografia e na trilha sonora, que segue a mesma linha das músicas de Kavinsky, que compôs a música-tema de Drive (que conta com a participação da brasileira Lovefoxxx, do Cansei de Ser Sexy).
Fiquei inspirado. Não a me tornar motorista de aluguel, mas a sair de casa à noite só para dirigir. Meu carro não é nenhuma barca americana com tração traseira e motor V8, mas ele tem tudo o que eu preciso para mergulhar na escuridão irregular e explorá-la sem medo de ser engolido por ela. Ou até, secretamente, desejando que isto aconteça. Eu podia fazer isso, e fiz.
Foram os melhores 30 minutos que eu tive em semanas.
Aconselho, definitivamente, que você faça a mesma coisa. Ouça o chamado da noite. Ela sempre está lá, te esperando, e vai te abraçar sem fazer perguntas ou julgamentos. Aproveite.