Hoje faz 21 anos que a Willliams FW16 de Senna teve sua coluna de direção colapsada bem no meio da então curva Tamburello, no Autódromo Enzo e Dino Ferrari, em Ímola, na Itália. Apesar de ser chamado de Grande Prêmio de San Marino, a prova era realizada a 99 km da República de San Marino, um percurso que, segundo o Google Maps, leva 1h14.
Seja como for, foi em decorrência deste acidente que, horas mais tarde, Ayrton Senna da Silva seria declarado morto. Para homenageá-lo, nós do FlatOut pensamos em contar a vocês o que estávamos fazendo no dia, dando uma dimensão pessoal daquele momento e permitindo que vocês também dividam conosco a lembrança daquele momento tão triste para muitos e que afetou, de um modo ou de outro, toda a nova geração de petrolheads.
Juliano Barata
Naquela manhã de domingo eu era um telespectador de treze anos de idade, sentado no chão gelado da minha sala, brigando com a antena de uma cansada televisão Mitsubishi de 21 polegadas. Era a quarta temporada da Fórmula 1 que eu acompanhava integralmente.
Talvez eu gostasse demais de Fórmula 1 para alguém da minha idade. Com meia dúzia de pelos no saco, já tinha assistido “Grand Prix” uma dezena de vezes e tinha testemunhado pessoalmente dois dos mais importantes GPs do Brasil: as edições de 1991 e de 1993, justamente na arquibancada G, no fim da reta oposta. Mas durante a semana, meu barato era assistir aquela sequência interminável de desenhos e programas, como “No Mundo da Lua”, “Castelo Rá Tim Bum”, “Confissões de adolescente”, “Cavaleiros do Zodíaco”, “Tin Tin” e “Anos Incríveis”… Coisas dessa fase.
Seja por sorte ou por relativa evolução no aspecto da segurança, a morte não fazia parte do universo da Fórmula 1. Quando meu pai e seus amigos falavam do falecimento de Gilles Villeneuve ou de Cevert, soava algo distante como falar sobre a Queda da Bastilha. Você sabe que é de alta importância, mas não mexe um traço de seus nervos. Por isso, quando soube do acidente do Barrichello na sexta-feira e vi o rápido clipe do Jornal Nacional, fiquei impressionado, mas não da forma como eu ficaria hoje. Porque hoje eu sei o quão mais grave poderia ter sido a porrada do Rubens. Mas mais do que isso, hoje eu compreendo a delicadeza da vida humana no esporte a motor.
E aprendi tudo de uma vez, naquele fim de semana.
Eu vi o acidente fatal de Ratzenberger ao vivo (falamos dele aqui). Lembro que ele passou pela primeira vez já consumado e, instantes depois, em um replay. Graficamente, foi uma coisa horrível. Todo mundo sabia que aquele era o trecho mais veloz da pista, mas ver o carro despedaçado daquela forma, expondo o corpo de Roland pela lateral e sua cabeça inerte, submissa aos movimentos do carro, me deixou paralisado. Quase todo o atendimento médico — incluindo as tentativas fracassadas de ressuscitá-lo — foi transmitido ao vivo e talvez essa tenha sido a diferença da minha experiência com o acidente do Rubens, reduzida a um clipe de cinco segundos do Jornal.
O Ratzenberger morreu.
Naquele momento, a Fórmula 1 mudou totalmente de significado para aquele adolescente. Agora compreendia verdadeiramente o pânico que os Fittipaldi mencionaram quando falaram sobre o looping de Christian no GP de Monza de 1993. Pra mim aquilo tinha sido incrível, porque tudo era entretenimento. Como foi a própria capotagem de Senna nos treinos do GP do México de 1991. Mas naquele sábado eu descobri a morte na F1.
No domingo, havia um certo senso de “agora vai” (apesar do Williams FW16 não ser mais tudo o que foram os FW14 e FW15), porque tudo tinha dado errado pro Senna nas provas anteriores. Por estar sempre no fio da navalha, ele tinha essa característica de se envolver com acidentes e incidentes meio bobos ao longo da temporada. O acidente que ocorreu na largada do GP de Ímola foi minha primeira experiência com a visão de que sim, pessoas podiam morrer sem dificuldade. Acidentes espetaculares deixaram de ser entretenimento visual e passaram a me preocupar seriamente.
Minutos mais tarde, o acidente de Senna.
Outra vez paralisado. O carro com a lateral despedaçada, cabeça inerte, a voz trêmula do Galvão. Lembro de uma filmagem do helicóptero, mostrando Senna parado, como Ratzenberger. A cabeça dele mexe, mas não volta a se mexer mais. Minutos depois, removem ele do carro. Lembro de ter visto sangue no chão, embora as câmeras tentassem esconder o quanto possível. Por que esse sangue, por que toda aquela demora pra tirar ele dali? O Williams dele estava danificado, mas nem de longe ao estado que ficou o Simtek de Ratzenberger!
O fim da transmissão do GP de San Marino deixou uma nuvem negra no ar. Já se sabia que o estado de Senna era grave e que sua vida estava em risco.
Naquela época a internet era apenas um feto (o grande barato eram as BBS – não, não a rodas) e não havia cobertura jornalística on line. Ficamos presos à TV, sem almoçar, toda hora tomando um choque com aquela música mórbida do plantão da Globo. Até hoje, toda vez que ela toca, lembro daquele primeiro de maio. A cada plantão noticiado, menores ficavam as esperanças.
E então veio o plantão derradeiro. Roberto Cabrini noticiou o falecimento de Ayrton Senna da Silva. Os sons da minha família chorando e da vizinhança gritando ecoam na minha cabeça até hoje. Horas mais tarde, eu e meu pai fomos assistir a uma partida de Corinthians x Palmeiras, a qual só fomos porque os ingressos já estavam comprados. O silêncio sepulcral da massa de dezenas de milhares de torcedores caminhando cabisbaixas na Av. Jorge João Saad, em direção ao estádio, é algo que dificilmente se repetirá na história. Antes da partida, lembro que o minuto de silêncio foi seguido por um emocionante e longo coro “Ole-ole-o-la! Senna, Senna!”. Em casa, novamente, mais lágrimas. Lembro de ter chorado até dormir e de ter acordado muito mal. Aquela semana foi um lixo.
Nunca torci para o Ayrton Senna. Desde que comecei a acompanhar a Fórmula 1, fiquei intrigado com um cara de capacete branco, vermelho e azul, talvez primeiro porque todo mundo o odiava e eu não entendia o por quê. Depois, porque ele ia tão rápido, suave e parecia se esforçar tão pouco que ele parecia ter o total controle de tudo sempre. Alain Prost. O cara que o povo amava odiar porque era a grande ameaça ao ídolo. Mas, no fundo, ambos pilotos eram contrapartes perfeitas. Talvez fosse por isso que eu tivesse sentido o luto do Ayrton tão fortemente.
Tão amargo quanto o primeiro de maio em si foram as provas seguintes, especialmente porque o GP posterior ao de San Marino foi o de Mônaco. Ver os carros alinhando no grid e se dar conta de que o cara do capacete amarelo não iria aparecer no spot onde foi coroado como “rei” (apelido herdado de Graham Hill) me lembrou da sensação simultânea de presença (pode chegar a qualquer momento) e falta (nunca mais chegará) que ocorre no quarto vazio de um ente falecido.
Piquet, Mansell e Prost se aposentaram em 1991, 1992 e 1993, respectivamente. Então já havia um traço dessa sensação a cada início de temporada – o paradigma dos top runners estava mudando rapidamente. Mas Senna foi arrancado do grid. Desapareceu no ar, no intercurso da história, sem se despedir. E por isso a teimosa sensação de que ele iria alinhar no grid ficou por toda a temporada pra mim.
Ayrton Senna é um assunto excepcionalmente difícil, porque a polarização é inevitável. Muitos de seus odiadores o vincularam a uma imagem ufanista como se ele fosse produto da Globo, artificialmente formado, um equívoco alienado e infantil. Muitos de seus apaixonados criaram uma espécie de divindade, um ser humano iluminado messiânico, o que também é infantil. Sua determinação, fé e excesso de convicção em disputas sempre dividirão as opiniões em dois extremos. Eu? Quanto mais recordo e mais pesquiso sobre Senna, mais me impressiono com a sua técnica e precisão. Sua determinação e perfeccionismo estimulam muitas pessoas que conheço a batalhar todos os dias até hoje. E confesso que ainda hoje tenho dificuldades para lidar com o material que circula sobre aquele primeiro de maio. Em especial com este abaixo.
Leonardo Contesini
Em 1º de maio de 1994, eu tinha quase 10 anos, mas, diferentemente do Juliano, não acompanhava a Fórmula 1. Quero dizer, na época, a F1 nas manhãs de domingo era algo meio automático no Brasil, então não é difícil lembrar do tema da vitória tocando na sala enquanto eu arremessava uma bola contra minha tabela de basquete (era a época do Bulls bicampeão de 92-93, a primeira febre da NBA no Brasil), ou enquanto eu e meu pai ajustávamos o banco e o guidão da minha bicicleta.
Mas aquele primeiro de maio foi diferente. Estávamos todos sentados na sala escurecida pela veneziana fechada. Não lembro onde estavam meus irmãos, mas lembro que meus pais estavam no sofá e eu no chão sem dividindo a atenção entre alguma outra coisa desimportante e a corrida na TV.
Quando a Williams bateu não entendi por que os socorristas demoraram tanto para atender Senna, mas lembro de ouvir minha mãe, uma enfermeira experiente, dizer quase que imediatamente e com aquela frieza dos profissionais da saúde que o negócio havia sido grave. Mesmo assim ficamos lá esperando Senna sair do carro (como naquela imagem que ganhou a internet há alguns anos), o que infelizmente não aconteceria.
Não lembro exatamente como, nem quando veio a notícia, mas lembro claramente de ter ficado chocado, não apenas por Senna, mas por ter sido o segundo. No sábado, quando os jornais mostraram a cena da batida fatal de Ratzenberger, lembro de algum comentário mórbido da minha mãe.
Sendo sincero, minha memória da cena da morte do austríaco é mais chocante que a de Senna. Nós vimos o sangue e os movimentos da cabeça sem vida de Ratzenberger, enquanto Senna estava perseguindo Schumacher em um segundo, depois vemos o carro sendo destruído no muro, como tantos outros em que os pilotos saíram vivos, e no segundo seguinte ele estava lá, imóvel no cockpit do Williams FW16. A TV ocultou o pior.
Mais tarde, veio o anúncio da morte cerebral de Senna. A impressão imediata é que o país inteiro se calou por um momento. Como diz o clichê, um silêncio ensurdecedor: não se ouvia carros, nem vizinhos, nem nada. Mas eu estaria mentindo se dissesse que fiquei abalado com a morte de Senna. Fiquei chocado, obviamente, mas o ídolo ainda não tinha um significado especial para mim quando se foi.
Na verdade, 1994 é um ano muito nebuloso em minha memória; muita coisa aconteceu naqueles 365 dias: comemorei a classificação para a Copa, Dener morreu, Senna morreu, me despedi dos amigos e mudei de cidade, de casa, de escola, sofremos um acidente de carro na viagem da mudança, procuramos muitas casas novas, aprendi a andar de ônibus, consertamos o carro, comecei a torcer para o BEC, o dinheiro mudou, o Brasil foi tetra, o Mussum morreu, achei uma pequena fortuna no chão, conheci os BMW E36 na concessionária da cidade, peguei recuperação em matemática pela primeira vez na vida e lembro da morte do Tom Jobim antes do fim do ano. É muita coisa para a memória de um moleque de nove anos e meio guardar em detalhes.
Mas as mortes de Senna e Ratzenberger, por outro lado, me aproximaram da Fórmula 1. De repente o jovem Rubens Barrichello, aquele cara que morava na minha geladeira, numa caixinha de ketchup Arisco, se tornou o novo candidato a herói brasileiro. E, cara, como eu torci pelo Rubens.
Sem essa admiração por Ayrton Senna em vida, ele é como Alfred Hitchcock e John Lennon, para mim: sou fanático por sua obra, mas é um cara que se foi muito antes de eu conhecê-la e compreendê-la, e por isso minha admiração tende a ser mais racionalizada, bem menos passional, e também por isso não esqueço que naquele fim de semana a Fórmula 1 perdeu não apenas um, mas dois heróis. Um quase desconhecido, outro no auge de sua carreira, ambos em busca do mesmo sonho.
Gustavo Henrique Ruffo
No dia 1º de maio de 1994, domingo, fui com meus pais à casa dos meus avós paternos, no Belém, em São Paulo, para almoçar. Sempre dávamos um pulo para visitar nossos velhinhos nos finais de semana e aquela era quase uma despedida da casa. Pouco tempo depois eles se mudariam para a Saúde, para uma casa que ficava perto do metrô e que ia tornar a vida dos dois muito mais tranquila.
Como de costume, meu pai ligou a TV para assistirmos à corrida. Eu já estava um bocado chocado com o acidente do Barrichelo e com a morte de Ratzenberger. Já tinha ouvido falar dos perigos das corridas, da morte do Gilles Villeneuve, mas aquilo tudo, pra mim, era distante pacas. Ninguém mais morria em corrida, na minha cabeça. Ninguém. Pelo menos não até aquele sábado dos infernos. Comecei a assistir meio cabreiro.
Com meus 17 anos, eu cobrava de Senna um desempenho melhor na Williams. Não entendia muito porque ele estava indo tão mal no campeonato e culpava tanto o carro quanto o piloto pelo mal desempenho. Achava que Senna estava enferrujando, sem saber tudo que havia mudado no carro e o quanto isso o havia prejudicado. Desde moleque eu amava automóveis, mas nunca tive uma ligação com competições a não ser pelo Senna.
Assistia por causa dele, mas perdia tempo mesmo lendo sobre os segredos no Jornal do Carro e comprando a Quatro Rodas para ler testes e avaliações. Meu barato sempre foi mais no produto do que nas corridas. A não ser por aquele piloto que mostrava um Brasil vencedor. Um de que eu sentia orguho. Lembro de vê-lo em um show em Melbourne, da Tina Turner, e de aquela mulher cantar “Simply the best” apontando para o cara.
Pombas, era de matar de orgulho!
Logo no começo da corrida, um porrão. Bandeira amarela, limpa a pista e toca a corrida começar de novo. Senna desembesta na frente. Fiquei com esperança de ver o cara voltar a se dar bem em corridas, mesmo com aquele alemão metido a besta do Schumacher na cola dele. Eu tinha um bode violento do Schumacher… passou com o tempo. Hoje, torço para o heptacampeão se recuperar da lesão cerebral que sofreu em uma pista de esqui. Que ironia besta essa de Senna e Schumi sofrerem justamente acidentes na cabeça…
A televisão transmitia a câmera on board do alemão quando o carro de Senna bateu no muro. Não, não tenho a memória tão boa a ponto de me lembrar tanto de tudo, mas as sensações voltaram ao rever a corrida neste vídeo. Ele evidencia, pra quem não viveu aquilo tudo, a tensão em torno do que poderia ter acontecido a Senna.
Achei, a princípio, que não havia sido nada grave. E fiquei esperando o piloto tirar o volante e sair do carro, como acontecia em acidentes do tipo. Mas ele não saiu. Galvão Bueno repetia que a batida tinha sido muito forte, que o resgate demorava muito a chegar e eu e meu pai ficamos de olhos grudados na TV. Uma imagem aérea mostrou Senna dentro do carro. E ele mexeu a cabeça. O narrador exaltou o fato e sentimos que ele talvez só estivesse atordoado. E a demora no atendimento. Eu também não entendia por que já não tinha alguém ali em volta.
Quando chegou, Sir Sid Watkins e os para-médicos tentaram tirar o capacete de Senna e imediatamente fizeram um bloqueio em volta do piloto. A porcaria do helicóptero ficava rodeando a cena e filmando ora o carro, ora um monte de árvores. Quando mostrava um pouco melhor Senna sendo retirado do carr, já logo mostrava a p&*%$ das árvores de novo. “Mostra o Senna, cacete!”, meu pai dizia ao meu lado. E eu pedia a mesma coisa.
Os médicos o puseram no chão e a TV mostrava pouco o que acontecia. Só uma tensão violenta no ar não saía de cena em momento nenhum. Não dava para saber como Senna estava. Ele continuava estendido no chão, com aquele monte de gente em volta. Reginaldo Leme dizia que o atendimento era assim, que Senna estava sendo bem cuidado, mas ninguém falava do sangue no chão ou do lençol azul que era usado para esconder a parte de cima do corpo dele. Quando o levaram para o helicóptero, falei: “Lascou-se.” Meu pai ainda tentou ter uma atitude mais otimista. Para ele, ia dar tudo certo. Não desgrudei da televisão dali em diante. Queria notícias.
Enquanto almoçávamos, veio a confirmação: Senna havia tido morte cerebral. A primeira coisa que pensei foi: “Morreu imolado”. Dias depois, saiu uma charge com .
Voltamos para casa e, no rádio, só se falava da morte dele. Eu ouvia tudo, lia tudo que pudesse trazer mais alguma luz ao caso. Ou que confirmasse o que havia acontecido. Também estava difícil de acreditar. Por que houve o acidente? Por que não deu para salvá-lo? Foi quando vieram as explicações sobre a barra de suspensão que invadiu o capacete, a perícia, o dr. Watkins dizendo que havia se despedido de Senna na pista, mesmo, pela gravidade do acidente, os relatos de que, até milésimos de segundo antes de seu acidente, Senna ainda havia tentado frear, prova de seus reflexos sobre-humanos. O rolo da família dele com a namorada da época, Adriane Galisteu. Tudo que pudesse envolver o piloto ganhou uma dimensão monstruosa.
Nada naquela semana foi do mesmo modo. Ficou tudo meio silencioso, em compasso de espera. O corpo de Senna só foi liberado pelo IML da Itália na terça-feira, como relata . Se você viveu aqueles dias, a leitura pode marejar os olhos ou despejar algumas lágrimas. Foi o que aconteceu comigo, relendo e revivendo tudo. Fica o alerta. O esquife só chegaria a São Paulo no dia 4 e seria velado na Assembleia Legislativa.
Na quarta-feira, a cidade parou para receber o caixão. Assisti o transporte pela TV, com o caixão em um carro do Corpo de Bombeiros. Foi de chorar, e bastante. Amigos meus do cursinho, muitos dos quais só falavam do acidente, mataram aula para ir se despedir do tricampeão. Eles me chamaram, mas não quis ir. As filas duravam horas para passar diante de um caixão lacrado. Soube, anos depois, que isso se devia ao inchaço em sua cabeça, que desfigurou seu rosto. Acabei me despedindo de Senna a meu modo, assistindo em casa ao velório e rezando para que ele tivesse amparo espiritual na passagem. Assisti, depois, a seu enterro no Cemitério do Morumby. Em sua lápide está escrito “nada pode me separar do amor de Deus”, mas é algo que eu soube de ler por aí. Já passei perto do cemitério e nunca tive coragem de visitar seu túmulo.
Os dias seguintes foram marcados por luto. Na época, achei que a menina que eu namorava estava insensível demais ao que havia acontecido. Indiferente. Terminei com ela poucos dias depois. Também me separei da F1. Nunca mais assisti a uma corrida inteira. Via trechos, ficava sabendo dos resultados, mas perdi qualquer interesse. Fui duas vezes assistir à prova em Interlagos. Por pura curiosidade e com convite ganho, na primeira. Na segunda, a trabalho. Saí antes de a corrida terminar. A possibilidade de testemunhar mais alguma morte pela televisão talvez tenha sido decisiva nesse afastamento. Que dura até hoje, ainda mais depois daquela sensação ruim de que é tudo apenas negócio, que fica cada dia pior.
Depois de 21 anos, noto que aquele foi meu primeiro contato com a morte de alguém querido, ainda que fosse um estranho absoluto. Pouco tempo depois, em janeiro de 1995, eu teria um encontro mais próximo com essa realidade difícil. Aconteceu com a morte de minha avó, a mesma em cuja casa eu assisti ao acidente. Desatenta, ela atravessou a rua sem olhar e foi atropelada. Quebrou a bacia e parecia que ia se recuperar bem do acidente, mas morreu dias depois, já em sua casa nova, de embolia pulmonar. Foi uma experiência mais dura, sim, mas a sensação de perda foi bastante parecida.
Quando terminei o cursinho, fui para a faculdade de direito e, por acaso, acabei me tornando jornalista especializado em automóveis. Graças a Deus! Ainda pago OAB só para alguma eventualidade. Nestes anos de profissão, uma das entrevistas mais legais que já fiz foi com Sir Stirling Moss, que comemorou ontem os 60 anos de sua vitória nas Mille Miglia. Em um carro muito pior que o de Senna, em estradas comuns.
Eu me lembro bem de duas coisas que ele me disse. A primeira é que era uma fatalidade Senna ter morrido em um carro seguro. “Foi morto por causa da segurança, dos muros, das medidas de proteção tomadas no circuito para torná-lo mais seguro. Se ele tivesse simplesmente atravessado a pista, talvez ele ainda estivesse vivo. Ele morreu por causa das medidas que outras pessoas tomaram para protegê-lo”, disse Moss. E era verdade. A segunda é que ele, Stirling Moss, havia se tornado piloto porque queria fazer algo heróico, perigoso e emocionante. Conseguiu.
Niki Lauda, retratado no filme Rush, pensava justamente na margem de segurança que tinha, e não aceitava ir além do que achava razoável. Acabou se envolvendo em um dos acidentes mais terríveis a deixar algum sobrevivente. Senna morreu fazendo o que amava. Ainda competitivo. E nada daquilo, cá entre nós, era heróico. Mas era especial. Dava orgulho. Era o tipo de coisa que, 21 anos depois, ainda merece uma exibição como esta, que vai rolar neste final de semana e no próximo na fonte multimídia do Parque do Ibirapuera. Às 20h e às 20h30.
E é isso que talvez tenha tornado Senna não um herói, mas um mito. Um ídolo para todo um país que via em suas atuações, aos domingos, um motivo de orgulho. Em um país com tão pouco de que se orgulhar. Foi isso que se perdeu naquele domingo, dia 1º de maio de 1994. E que, até hoje, ninguém conseguiu resgatar.
Dalmo Hernandes
No dia 1º de maio de 1994 eu tinha acabado de completar dois anos e oito meses e, apesar de algumas pessoas se lembrarem de coisas que aconteceram quando tinham menos de três anos de idade, este não é o meu caso. Não faço a mínima ideia de onde estava quando o FW16 de Ayrton Senna se acidentou em Imola e não vi o ídolo competir até vários anos depois, já em meados dos anos 2000.
Assim, não posso contar a vocês o significado que a morte de Ayrton teve para mim, mas acho que o fato de me referir a ele pelo primeiro nome já quer dizer algo: mesmo que eu nunca não tenha visto nenhum de seus títulos pela TV e não me lembre de ouvir o Galvão Bueno gritando seu nome nas manhãs de domingo, sei que o cara era diferente.
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As últimas horas de Ayrton Senna
Na verdade, talvez esta seja uma manifestação da forma como enxergo Ayrton Senna. Como não o vi correr (e, na verdade, só fui me interessar mais pelo automobilismo de forma geral depois que comecei a escrever para o Jalopnik Brasil, lá em 2010), tudo o que sei sobre Ayrton veio da Internet e das coisas que os mais velhos (incluindo TODOS os meus companheiros de redação…) contam.
Quando Ayrton morreu, eu mal sabia falar. Na verdade eu não sabia quase nada, muito menos o que era uma corrida de Fórmula 1. Portanto, dá para dizer que eu cresci em um mundo onde Ayrton Senna já era um mito. Duas palavras que, mais do que o nome de um grande piloto, eram sinônimos de um exemplo de ser humano, ou até algo maior e mais puro do que um ser humano. Não vi como ele se tornou o maior piloto de todos os tempos pois, desde que me entendo por gente, é assim.
Anos depois, quando, tardiamente, comecei a me aprofundar mais na história do automobilismo e da Fórmula 1, foi que entendi o tamanho do significado de Ayrton não apenas para a categoria ou para o automobilismo, mas para o mundo. E, talvez como reação natural ao que nos é posto como verdade, me perguntava se Ayrton merecia mesmo ser lembrado desta forma.
A cada sessão de pesquisa, a cada conversa com gente que acompanhou toda a carreira de Ayrton, a cada vídeo assistido no YouTube (especialmente depois da homenagem do Top Gear e do lançamento do documentário “Senna” em 2011), eu entendia um pouco melhor aqueles que acreditam que nunca existiu e nunca existirá um piloto tão bom, no sentido mais amplo da palavra, quanto Ayrton Senna.
Atualmente sei que ele tinha uma capacidade sobre-humana de se tornar um só com a máquina. Hoje, um pouco mais cedo, o Juliano me disse que “Senna era o cara que muitas vezes conseguia falar quantos décimos conseguiria tirar naquela curva se fizesse determinado acerto no carro, ou quantas libras a menos ou a mais tinha um dos pneus”. Eu não duvido, e sei que Ayrton era o tipo de cara que operava verdadeiros milagres ao volante, e que tudo o que ele fez na sua vida serve de inspiração para muita gente até hoje. Eu compreendo e respeito isso.
Só que eu prefiro guardar comigo a imagem de um Ayrton humano. Aquele cara tão obcecado com perfeição que acabava se arriscando demais e errando sozinho. Aquele cara que foi morar na Europa no início da carreira e aproveitou a grana extra na conta para comprar um carro bacana. Gosto daquela foto de Ayrton ao lado de um Escort XR3, e gosto de saber que, se quiser (e tiver paciência para procurar), eu posso comprar um carro igual ao do Ayrton Senna. E sei que isso pode ser meio superficial, mas é tudo o que eu tenho.
Agora, pensando bem, eu até que escrevi bastante para quem sequer viu Ayrton correr, não é mesmo? Talvez porque, ao falar dele, seja inevitável acabar refletindo e falando sobre nós mesmos. E isto, sem dúvida, é o tipo de coisa que faz um ídolo.
Como você notou, cada integrante do FlatOut reagiu à morte de Ayrton Senna de forma diferente e tem memórias diversas. E você? Onde estava e quais são suas lembranças daquele que foi o fim de semana mais sombrio da história da Fórmula 1?