Carros de turismo mexem com os nossos corações porque são os automóveis mais próximos daquilo que temos nas garagens ou vemos nas ruas. É a projeção de uma fantasia – que costumava ser levada muito a sério pela indústria pelo potencial de vendas que ela traz. É o famoso ditado “win on sunday, sell on monday” (vença no domingo, venda na segunda).
Quando os planetas se alinham com a vontade divina, testemunhamos a combinação de um carro já originalmente matador, modificações que o deixam ainda mais agressivo, patrocinador com racing livery atemporal, piloto e equipe de ponta, ronco da mais pura música mecânica e circuitos épicos. Nasce uma lenda.
No início da década de 70, o país ainda festejava o recente título mundial de Emerson Fittipaldi quando o automobilismo local começava a respirar novos ares. Os bólidos de competição importados foram vetados de participações em provas nacionais e os carros de corrida brasileiros dimensionados a etapas de longa duração praticamente não existiam mais. Nascia um novo paradigma de categorias de turismo e protótipos no Brasil, as famosas Divisões: D1 (turismo quase originais, preparação mais restrita), D2 (carros do tipo Puma e Karmann-Ghia), D3 (turismo, regulamento extremamente liberal), D4 (esportes-protótipo nacionais), D5 (esportes-protótipo importados com motores nacionais ou vice-versa) e D6 (esportes-protótipos importados sem alterações), sub-divididas em classes de acordo com o deslocamento do motor.
Pouco tempo depois, mais precisamente em 1973, o Ford Maverick foi oficialmente lançado no mercado nacional. Se executivos e famílias se encantavam com sua silhueta fastback que o fazia lembrar sutilmente o Mustang, playboys, pilotos de competição e preparadores estavam com os olhos brilhando por outros motivos: o potente e girador V8 302 de cinco litros sob o capô combinado a um monobloco rígido (inclusive melhor que o do Mustang) e carroceria relativamente curta, com entre-eixos de apenas 2,61 m.
Instantaneamente foi adotado pelas grandes equipes nacionais, como a Greco Competições (conhecida como Mercantil/Finasa Ford a partir de 1974) e a recém-fundada Equipe Hollywood, que veio com um plano quase diabólico para dominar a categoria de turismo extrema Divisão 3, na Classe C, destinada a carros com motores de mais de três litros. O diabo tinha nome: Maverick-Berta.
Pneus de Fórmula 1, motor similar ao Ford GT40
O sobrenome era do argentino Oreste Berta, referência mundial na preparação e construção de bólidos de corrida, conhecido popularmente como “El Mago de Alta Gracia” e que foi o responsável pela execução do projeto. Sua empresa, Oreste Berta S.A., existe com grandiosidade até hoje. Ele apresentava um grau de complexidade e ousadia que apenas a existência de um regulamento muito liberal, grana infinita em caixa e profissionais de ponta poderiam permitir.
O cartão de visitas era a carroceria, começando pelos pornográficos e colossais alargadores de para-lamas, feitos para vestir os imensos pneus slick, especialmente os traseiros, os mesmos utilizados na Fórmula 1, com mais de 380 mm de largura (!) e aro 13. Isso resultou numa proporção de bitolas particularmente curiosa para um carro de turismo, com o eixo traseiro muito mais largo que o dianteiro, o que exigiu um bom trabalho de geometria e cargas de suspensão para prevenir o sub-esterço. As rodas de magnésio eram fixadas com sistema de cubo rápido, 15 x 11″ na dianteira e 13 x 14″ na traseira.
A receita aerodinâmica era relativamente rudimentar: spoiler dianteiro para limitar o fluxo de ar a entrar sob o assoalho e evitar a sustentação aerodinâmica em altas velocidades, uma gigantesca asa traseira para gerar downforce, um par de dutos NACA atrás das portas para refrigerar os freios traseiros, recortes de refrigeração na dianteira e um scoop com um estilo misto entre o Mustang Boss 429 e o Dodge Challenger T/A – que alimentava com ar fresco o V8 302 de receita inspirada no Ford GT40, instalado em posição rebaixada e recuada para melhorar a distribuição de massas e centro de gravidade. O cofre também tinha algumas amarrações estruturais trianguladas entre os pontos de fixação da suspensão e a parede corta-fogo.
O motor do Maverick Berta era um capítulo à parte. Numa conversa que tive em 2008 com o já falecido piloto Luiz Pereira Bueno – na época ele ajudava a cuidar dos Maverick de competição da família Roschel, na categoria Históricos V8 – , ele recordou que, “da fábrica, só tinha sobrado o bloco – e mesmo assim eles mexeram nos mancais”, possivelmente modificando-o para um sistema de quatro parafusos de fixação em vez de dois, reproduzindo a solução do bloco Boss 302.
Os cabeçotes eram os mesmos do GT40 (vídeo acima), os épicos Gurney-Weslake, de alumínio e alimentados diretamente por quatro carburadores Weber 48 IDA. Bielas e pistões forjados, virabrequim extensamente trabalhado por Berta, sistema de cárter seco com bomba externa Aviaid, sistema de ignição Sulbeco e, claro, os monstruosos coletores de escape diretos, também fabricados pela Oreste Berta S.A. Bueno havia me contado que sua potência era estimada em mais de 400 cv a cerca de 6.500 rpm, mas o potencial real era bem maior do que isso – usá-lo apenas não era necessário, tamanha a vantagem do conjunto.
Seus freios, a disco nas quatro rodas, vieram dos protótipos Berta-Tornado, bem como a inspiração do projeto de suspensão dianteira, de duplo A sobrepostos. A suspensão traseira foi modificada com a troca do sistema de feixes de molas por molas helicoidais e foi adicionada um sistema Watts Link, um sistema de duas barras com articulação central em Z feito para conter oscilações tranversais do eixo. O câmbio de quatro marchas veio de outro projeto bem sucedido de Berta: o IKA Torino 380W, que ficou famoso por conquistar o quarto lugar no Marathon de la Route de 1969, prova de 84 Horas em Nürburgring que combinava o Nordschleife e o Südschleife (saiba mais sobre este circuito aqui).
A cereja do bolo era a pintura da Hollywood, marca de cigarros do grupo Souza Cruz lançado em 1931 e que, seguindo estratégia similar à empregada por marcas como a Marlboro e a Lucky Strike, patrocinou massivamente atletas de diversos esportes. Destas empreitadas, a mais ousada era a Equipe Hollywood de Competições, dedicada à diversas categorias do automobilismo nacional.
O Maverick-Berta correu oficialmente por apenas três anos, pilotado em 1974 por Tite Catapani, e em 75 e 76 por Luiz Pereira Bueno. O jargão da época dizia que, quando ele não quebrava, vencia. Já em sua estreia ele marcou o novo recorde de Cascavel, com o tempo de 1,15:3 – é o vídeo acima, jogue em 17:30 que você o verá em ação. Nos 500 KM de Interlagos de 1974, disputado no anel externo do circuito, venceu com uma vantagem de oito voltas e a velocidade média de 194,363 km/h. Cravou novos recordes também no circuito misto de Interlagos (2:11,01), onde conquistou duas vitórias em 1975 (abaixo), e em Fortaleza (1:10,02), onde venceu em 1974.
Em 1976, a Hollywood retirou seu patrocínio do automobilismo e desmanchou a empreitada no esporte a motor. Com outra pintura, sem asa traseira e algumas peças trocadas e vendidas no intercurso, o Maverick-Berta continuou a competir nas provas de Turismo 5000 da divisão do sul do País, vencendo diversas provas nas mãos de Edson Troglio e Luciano Motin.
Depois de muita procura, foi finalmente localizado na década de 1990 pelo colecionador , que executou e concluiu a sua restauração há exatamente 16 anos. Hoje o Ford tem em seu cofre um V8 351 Cleveland 4V (carburador quadrijet) – mas o conjunto original está guardado, aguardando restauração. Abaixo, temos o registro do reencontro do Luiz Pereira Bueno com o super-Maverick, registrado no Encontro Nacional de Veículos Antigos de São Lourenço (MG), em 2001. E na sequência… bem, seja discreto.
A mais recente aventura do Maverick-Berta é o filme , idealizado pelo ator e diretor Emiliano Ruschel e que tem estreia prevista para o fim deste ano (2016). A sinopse no IMDB diz: “um estranho chega à pequena cidade de Passo Fundo, no sul do Brasil. E ele está em uma caçada a um assassino que acaba se tornando uma enorme conspiração envolvendo tráfico internacional de drogas”. Para esta participação, o cupê de competição recebeu uma revisão geral para voltar à ativa e ganhou um envelopamento temporário preto-fosco. Não é todo dia que vemos um carro de corrida histórico e único protagonizando um filme…