O nível de detalhes dos simuladores de corrida que temos hoje em dia é assombroso. Há centenas de aspectos nos carros que podem ser modificados ao gosto do jogador, diversas configurações de circuitos do passado e do presente, e uma imensa variedade de equipamentos que podem ser comprados para proporcionar uma experiência absurdamente realista e imersiva – ao ponto de alguns simuladores serem utilizados para treinar pilotos profissionais nas categorias mais altas do automobilismo. Sem falar nos pilotos que, como o espanhol Lucas Ordoñez, começaram nos simuladores e tornaram-se profissionais com carros de verdade.
Mas, até chegar neste ponto, percorreu-se um longo caminho. Na linha do tempo dos jogos de corrida, o início era dos jogos tridimensionais modernos é relativamente recente. Os jogos 3D começaram a se tornar o padrão apenas no início dos anos 2000, e os gráficos fotorrealistas só se tornaram realidade há pouco mais de dez anos. Antes disto tudo, jogos de corrida eram, em sua maioria, casuais e em 2D, com sprites coloridos (alguns deles belíssimos, convenhamos) e jogabilidade que valorizava a diversão e a sensação de velocidade. Simuladores com uma pegada mais realista eram jogos de nicho – muito mais que hoje – e, ainda assim, acabavam sacrificando a variedade de pistas e carros em nome da física detalhada e dos ajustes nos veículos.
Ainda não é assinante do FlatOut? Considere fazê-lo: além de nos ajudar a manter o site e o nosso canal funcionando, você terá acesso a uma série de matérias exclusivas para assinantes – como , , e muito mais!
Assim, quando se fala nos precursores dos jogos de corrida modernos, vêm à mente títulos lendários como Formula One Grand Prix, lançado pela Atari em 1991 – um dos primeiros a explorar com maestria os gráficos tridimensionais, com uma taxa de frames decente (25 fps), dinâmica fiel à realidade e diversas opções de ajuste no carro. Ou, para quem quer ir mais longe, Pole Position, da Namco, que é considerado o template para jogos de corrida arcade em 2D.
Já exploramos a evolução dos games de corrida em uma série de matérias há alguns anos, mas hoje vamos falar de um título em específico que, possivelmente, deu origem a todos os jogos de corrida modernos. Assetto Corsa, iRacing, Gran Turismo e mesmo Need for Speed e a série Forza devem muito a ele: Nürburgring 1, um game alemão lançado em 1976 que trouxe um aspecto simples, porém revolucionário aos jogos de corrida: a visão em primeira pessoa, ou visão do cockpit – algo essencial para a imersão que os games atuais proporcionam.
Hoje em dia, este tipo de câmera – e a possibilidade de trocá-la – é algo que esperamos ver em praticamente qualquer jogo, com exceção daqueles que são assumidamente retrô, como Horizon Chase ou o belíssimo Slipstream, que estão na moda hoje em dia.
Contudo, na década de 1980 e até a década de 1990, cada game de corrida te dava uma opção. A primeira pessoa era a favorita dos desenvolvedores de jogos de Fórmula 1, até mesmo pelo visual interessante que os monopostos em 2D proporcionavam. Jogos mais casuais apostavam na terceira pessoa, ou na visão bird’s eye (visto de cima, como Road Fighter) ou até mesmo na perspectiva isométrica, como Rock N’ Roll Racing.
Se você leu a primeira matéria sobre a evolução dos games de corrida, vai lembrar que Night Driver foi um dos games que revolucionaram o gênero. O arcade foi lançado em outubro de 1976 e foi um dos primeiros a simular, ainda que de forma limitada, a experiência de guiar um carro de corrida visto de dentro. Para isto, usava blocos brancos em um fundo completamente preto – os blocos representavam a pista, e vinham na sua direção causando a ilusão de profundidade, perspectiva em movimento. O carro na tela era, na verdade, uma impressão em adesivo transparente, colocado atrás da tela. Não era muito diferente, em concepção, do Turbo Driver, brinquedo vendido no Brasil pela Tec Toy que trazia um cockpit totalmente analógico e uma tela de projeção. Um cilindro retroiluminado fazia a “pista” aparecer na tela, enquanto as curvas eram geradas por uma ligação mecânica com o volante. A diferença era que, no caso de Night Driver, a pista era gerada pelo processador – e você realmente podia perder o controle e bater o carro.
Acontece que não foi a Atari que criou Night Driver. O game, na verdade, é uma cópia quase idêntica da criação de um engenheiro alemão chamado Reiner Foerst: Nürburgring 1, lançado um ano antes.
Foerst era dono de uma companhia especializada em simuladores. Não apenas de corrida, mas todo o tipo de simulação. Hoje em dia, seus produtos são usados no desenvolvimento de automóveis e outras máquinas, no treinamento de profissionais da saúde e, hoje em dia, até mesmo no desenvolvimento de inteligências artificiais. Foerst, naquela época, já estava interessado na ideia de que nosso próprio universo pode ser uma simulação, rodando em um computador extremamente poderoso criado por alguma civilização muito mais antiga e muito mais avançada que a nossa, em seu próprio universo. E, para provar que a nossa realidade é simulada, o caminho mais natural criar sua própria simulação.
“E o que isto tem a ver com um jogo de corrida?” Simples, caro leitor: na época, simulações computadorizadas ainda estavam engatinhando, eram caras, e precisavam de recursos. Então, para financiar seu projeto, Foerst chegou à conclusão que criar um game de corrida que pudesse ser comercializado era uma ótima forma de financiar suas pesquisas.
Uma inspiração para seu projeto era o simulador que a Volkswagen utilizava para testar seus carros na década de 1970, usando um osciloscópio e metade de um VW Golf Mk1 para criar um simulador que movia-se junto com as imagens na tela. Era uma máquina gigantesca e caríssima, usada em escala industrial – seria inviável como artigo doméstico produzido em série.
Então, para resolver seu problema, Foerst olhou para outro jogo eletrônico – o famoso Pong, de 1973, no qual dois pauzinhos eram usados como raquetes para rebater uma bolinha (que, na verdade, era um quadrado…). Sem pensar duas vezes, Foerst comprou uma cabine, desmontou e tentou entender como ela funcionava. Sendo um cara muito inteligente, ele descobriu – e decidiu aplicar a mesma tecnologia de uma forma diferente.
Foi ele quem teve a ideia de usar a ilusão de perspectiva dos blocos brancos sobre um fundo preto para criar uma pista. O funcionamento era exatamente igual ao que viria a ser usado em Night Driver, e a forma como Foerst conseguiu fazê-lo era impressionante.
Sem recursos para uma CPU – que, como você deve saber, significa unidade central de processamento, ou seja, um “cérebro eletrônico” unificado para realizar as funções do jogo, ele precisou se virar com 28 placas de circuitos diferentes que, juntas, agiam como uma CPU.
O resultado era uma máquina grande e cara, mas impressionante: com um volante, alavanca de câmbio e pedais, o arcade de Foerst trazia todos os elementos chave que, evoluídos, moldaram ao menos três gerações de jogos de corrida ao longo das décadas. Havia até um velocímetro, um marcador de quilometragem percorrida e um contador de erros do piloto.
Sendo alemão, evidentemente Foerst decidiu batizar o jogo com o nome do circuito de corridas mais famoso e lendário de seu país: Nürburgring. Retroativamente, o game ficou conhecido como Nürburgring 1 – porque, nos anos que se seguiram, foram lançadas as sequências Nürburgring 2, que trocava o carro por uma moto e o volante por um guidão; e Nürburgring 3, que revolucionou ainda mais ao trazer imagens em tons de cinza e a possibilidade de trocar os cenários – “planície” ou “montanha”.
E ele não parou por aí: uma versão experimental da cabine de Nürburgring usava um sistema eletro-hidráulico para gerar movimento, com o banco inclinando-se para acompanhar as curvas.
Os três Nürburgring fizeram relativo sucesso na Alemanha, mas nunca ficaram muito conhecidos mundialmente. Contudo, sua influência em Night Driver foi direta.
O criador de Night Driver, Dave Shepherd, teve a ideia quando viu um flyer para Nürburgring 1 mostrado por um amigo. Em uma citação no site Arcade History, Shepherd diz que ver aquela imagem da tela foi o que “plantou a ideia” de Night Driver.
Como a Atari já era uma empresa grande e com mais recursos, Night Driver tinha praticamente os mesmos recursos, porém em uma cabine menor e mais leve, com apenas uma CPU em vez de 28 placas separadas. E o jogo foi um tremendo sucesso – embora, verdade seja dita, a interface de Nürburgring 1 fosse mais completa e seus gráficos, mais elaborados.
Embora o sucesso da série Nürburgring jamais possa ser comparado ao de Night Driver, é fato que o jogo alemão foi a principal fonte de inspiração da Atari – e foi o suficiente para que a empresa de Foerst obtivesse caixa para dar sequência ao desenvolvimento de simuladores mais funcionais. E o próprio Foerst não se incomodou muito – afinal, foi graças a Pong, da própria Atari, que ele conseguiu criar seu game. Mas isto não deve tirar dele o mérito do pioneirismo.
Fotos: Foerst-Firmenchronik