Juntando-se às grandes perdas do mundo automotivo em 2019, Ferdinand Piëch morreu no último domingo (25) aos 82 anos de idade. A causa da morte ainda não foi divulgada pela família mas, de acordo com a mídia alemã, Piëch estava em um restaurante em Rosenheim, na Baviera, quando sofreu um colapso e não resistiu.
Ferdinand Piëch era considerado um dos maiores engenheiros automotivos de todos os tempos, e também um dos executivos mais importantes da indústria. Como engenheiro, ele auxiliou na criação de alguns dos carros – de competição e de rua – das fabricantes para as quais trabalhou. Como executivo, Piëch conseguiu transformar a Volkswagen em uma das maiores potências do planeta ao tomar decisões ousadas e até mesmo controversas, mas sempre com bons resultados.
Ferdinand Karl Piëch nasceu em 17 de abril de 1937, na cidade de Rosenheim. Sua mãe era ninguém menos que Louise Porsche, filha de Ferdinand Porsche – ela própria uma figura importantíssima para a companhia. Seu pai era o advogado austríaco Anton Piëch.
Ferdinand Piëch graduou-se engenheiro em 1962, no Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, Suíça, em 1962. Em sua tese de mestrado, Piëch apresentou um projeto para construir um motor de Fórmula 1 – coincidentemente, naquele mesmo período a Porsche trabalhava no 804, um monoposto para a F1 movido por um flat-8 de 1,5 litro. Em 1963, aos 26 anos de idade, Piëch começou a trabalhar para a Porsche.
Sua chegada marcou uma guinada no programa de automobilismo da Porsche. Piëch envolveu-se, a princípio, no desenvolvimento do Porsche 906, protótipo anunciado em 1966 que seguia as regras do Grupo 4 da FIA e, por isso, teve 50 exemplares de rua fabricados. Ele tinha um flat-six de 1,9 litro e, com isto, deixava claro que a ideia da Porsche era manter seus protótipos não muito distantes dos carros de rua em configuração mecânica.
Piëch não concordava com isto – para ele, os protótipos de competição deveriam ser muito mais ousados e especializados. E foi assim que, em 1969, a Porsche concebeu o monstruoso 917, cujo coração era, inicialmente, um flat-12 arrefecido a ar de 4,5 litros e 520 cv. Piëch foi o supervisor da equipe que projetou o carro, que por sua vez era liderada por Hans Mezger.
Todos sabemos que o Porsche 917 foi um dos carros de corrida mais bem sucedidos de seu tempo, incluindo as duas primeiras vitórias da Porsche nas 24 Horas de Le Mans em 1970 e 1971. Piëch tinha ideias para torná-lo ainda mais competitivo, incluindo a adição de um motor flat-16, mas este deu lugar a um motor de 12 cilindros sobrealimentado que passava dos 1.000 cv em competições nos Estados Unidos.
Piëch migrou para a Audi em 1972, pouco depois do encerramento do programa do Porsche 917. Na época, a Audi era uma aquisição recente do Grupo Volkswagen, e Piëch foi o responsável por transformá-la de uma fabricante de carros populares a uma companhia rival para Mercedes-Benz e BMW.
Esta transição teve início em 1975, quando Piëch começou a liderar o desenvolvimento do Audi 80 e do Audi 100, dois carros que foram divisores de águas na história da fabricante. Em 1977, quando completou 40 anos de idade, Piëch passou a integrar também a equipe responsável pelo desenvolvimento dos carros de rali, culminando na criação do Audi Quattro – o carro que, como todos sabemos, estreou em 1980 e promoveu uma revolução no WRC, introduzindo a tração integral e tornando todos os rivais efetivamente obsoletos.
O trabalho de Piëch na Audi seguiu até o início da década de 1990. Em 1993, ele foi contratado pela Volkswagen como Presidente Executivo – na prática, todas as decisões mais importantes eram tomadas por ele.
Parece difícil de acreditar hoje em dia mas, na época, a VW estava à beira da falência. Sua atuação na Europa ia bem, mas nos demais mercados – em especial nos EUA – a Volks era considerada uma fabricante de nicho. O sucesso com o primeiro VW Beetle, o carro que mudou a indústria automotiva norte-americana, já estava distante no passado. Os compactos, que sempre foram o forte da VW, não estavam vendendo bem.
Para Piëch, o segredo para sair desta situação estava em expandir a atuação da Volkswagen – se os compactos estavam vendendo mal, o correto era oferecer alternativas. Assim, Piëch deu início à reestruturação da empresa, adquirindo outras companhias, começando pela Skoda em 1994. Em 1998, a Volkswagen adquiriu a Bentley, a Bugatti e a Lamborghini, em uma manobra considerada extremamente arriscada naquele momento – mas que, a longo prazo, mostrou-se extremamente acertada. Com a Lamborghini, que estava em vias de substituir o Diablo, a VW ingressou com sucesso no segmento dos superesportivos. A Bentley foi uma valiosa aquisição para o segmento de luxo, e Bugatti tornou-se a vitrine da Volkswagen, na qual toda a excelência de seus engenheiros foi exibida através do Bugatti Veyron.
Com seu motor W16 de oito litros com quatro turbos e 1.001 cv, o Veyron era quase um devaneio de Piëch – uma overdose de engenharia, um carro desnecessário do ponto de visa prático que causava milhões de dólares em prejuízo a cada unidade vendida – e foram feitos 500 exemplares. Embora seja considerado por uma parcela dos entusiastas como um exagero, o Veyron causou uma excelente impressão quando foi exibido pela primeira vez no início dos anos 2000. Depois disto, ele tornou-se o carro produzido em série mais veloz do planeta ao ultrapassar a barreira dos 400 km/h em 2005, na pista de testes de Ehra-Lessien, pertencente à VW.
Ainda na virada dos anos 2000, Piëch também tomou providências para melhorar a situação da Volkswagen nos EUA, determinando o início da produção do recém-lançado New Beetle em solo norte-americano.
Agindo de acordo com a política interna da VW, Piëch deixou a posição de chairman na Volkswagen em 2002, ao completar 65 anos de idade. O último fruto de seu trabalho na Volks foi o sedã de luxo Phaeton, tido como a primeira incursão da marca Volkswagen no segmento de luxo. O VW Phaeton, aliás, é um bom exemplo do alto padrão que Piëch exigia na execução de seus projetos. para se ter ideia, ele queria que o carro fosse capaz de rodar por 24 horas seguidas a 300 km/h, em uma temperatura externa de 50°C, sem superaquecer, e sem que a temperatura interna passasse dos 20°C. Mesmo que a velocidade máxima do carro fosse limitada eletronicamente em 250 km/h, e que temperaturas externas de 50°C sejam extremamente incomuns no mundo todo.
Mesmo depois da aposentadoria, Piëch seguiu trabalhando como consultor até 2015. Por sua influência, a Volkswagen também adquiriu a Scania em 2008. Depois, em 2012, Piëch garantiu a compra da Ducati (através da Audi), da fabricante de caminhões MAN, e da Porsche. Ele próprio era dono de 10% da Porsche.
Ferdinand Piëch tinha a fama de ser extremamente exigente – quase abusivo, até. Segundo o próprio, ele demitia qualquer funcionário, independentemente de seu nível dentro da empresa, que cometesse o mesmo erro duas vezes. Bob Lutz, outro executivo famoso por seu “toque de Midas”, disse que sem dúvida Piëch é um dos maiores nomes da indústria, mas que jamais gostaria de trabalhar com ele. Ninguém pode, contudo, contestar seus resultados.