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O Agente, capítulo 5: más influências?

“Solidão”. Uma palavra carregada de conotação negativa, claro, mas para quem está sempre acostumado a estar sozinho o tempo todo, acaba virando meio que um vício.

O Agente estava acostumado a agir sozinho, e sempre que o chefe mencionava que ele devia encontrar um parceiro, um calafrio subia por sua espinha e alguma variação do seguinte diálogo acontecia:

– Eu sei, eu sei, você prefere a carreira solo, e eu entendo. Mas você sabe que, no que dependesse do pessoal lá de cima, esse negócio de “cavaleiro solitário” acabava, não é?

– E você sabe que ninguém aguenta, não é?

– Pois é. Ninguém TE aguenta. Sempre soturno, quieto o tempo inteiro. Você trabalha pra c*ralho, é o meu melhor homem. Então é melhor não abusar, porque você não treinou ninguém para ficar no teu lugar.

– Isso é problema seu, não meu.

Não falar nada, ou só o mínimo necessário, não foi algo que o Agente escolheu e não demandava esforço. Foi simplesmente como ele cresceu – seu pai, sempre ocupado para garantir o tal “padrão de vida elevado e sofisticado” do qual vivia falando, não foi o mais próximo do mundo. E, se ele resolvesse pegar a viatura para fazer-lhe uma visita, provavelmente não o encontraria em casa. E o escritório… ele jamais se atreveria a aparecer de repente no escritório.

Por sorte, sua vida era corrida o bastante para impedir reuniões de família. Holograma? Nem pensar. Só uma ligação tradicional, a cada um ou dois meses. “Telefones foram feitos para comunicação verbal, e não visual. Você tá vivo e inteiro? Ótimo. Eu estou bem atarefado hoje. A gente se fala qualquer dia. Até.”

Mas engana-se quem pensa que o Agente era um cara triste, melancólico por causa disso. O “padrão de vida elevado e sofisticado” de que seu pai tanto falava lhe garantiu boa educação e entretenimento suficientes para manter sua mente ocupada demais para sentir qualquer ausência. Ele sabia, no fim das contas, que seu pai só queria o melhor para o filho – e, do jeito dele, foi exatamente isso que o Agente teve. Acesso ilimitado à Rede, todo o conhecimento do mundo a um comando de voz. E sem propagandas.

Mas talvez o velho não imaginasse que, em vez de um sucessor, criaria um rebelde – um filho que decidiu virar agente rodoviário de interceptação e captura só para ficar perto dos malditos carros.

* * *

A veia solitária do Agente começou a pulsar quando ele se deu conta de que os três arruaceiros estavam a poucos metros de distância, com uma nuvem de poeira crescendo atrás deles e o ronco ensurdecedor de seus veículos. De certa forma sua viatura o protegia do contato humano até o momento em que este era inevitável – a hora de algemar o rachador recém-capturado, recitar seus direitos e empurrá-lo para dentro do veículo. Depois, acabou. Dali para a Divisão, da Divisão para casa. Sozinho.

Acontece que a ideia insuportável de ter que conversar com gente tinha menos importância que a chance de, enfim, colocar as mãos naquelas máquinas.

– Puta que pariu, Carlos! Não acredito que tu rodou!

O sujeito alto, de moicano verde e jaqueta de couro, tinha uma risada insuportável. Dirigia um Volkswagen – provavelmente o único carro de antigamente que nem só os rachadores e agentes conheciam. Aquela era uma praga que havia se espalhado pelo mundo todo no século 20, e o Agente sinceramente não entendia como um carro ruim e pesado, encomendado por um lunático, havia feito tanto sucesso. Mas era mesmo simpático, ele precisava admitir.

– “Carlos”.

Era isso que o Agente considerava “gozação”.

– Pois é, esse aí gosta de me importunar – voltou-se para o punk – E eu não rodei! Tá me vendo algemado, ô desgraçado?

– É, tu fez um amigo.

– Cala a boca.

“É, cala a boca e dá um motivo só para dirigir essa merda.”

O cara do moicano provavelmente era telepata.

– A sua sorte é que você nunca trombou comigo por aí…

– Agente. Meu nome não é da tua conta.

– A sua sorte é que você nunca trombou comigo por aí, Agente. Eu vi a tua cara quando olhou pro meu Fusca, mas não vai pensando que tá original, não. Olha aí.

O dono do Fusca conduziu o Agente até a parte de trás do carro, levantou o capô, e ali só se via a carcaça do câmbio.

– O motor tá ali no meio. Abre a porta aí!

Pelo visto todo mundo era folgado naquela rodinha. Por outro lado, era interessante notar que, aparentemente, todos ali sabiam exatamente quem era aquela figura de cara amarrada e óculos escuros que estava fazendo um esforço sobre-humano para esconder a empolgação.

Ao abrir a porta para espiar o que havia atrás dos bancos, uma surpresa: um boxer, sim. Quatro cilindros, longitudinal. Mas o fato de ser central-traseiro não era a única coisa esquisita – aquele motor tinha um turbocompressor, radiadores e um intercooler no topo. Nele, três letras vermelhas pintadas saltavam aos olhos: “STI”.

– Você ia arrumar briga andando com um motor Subaru no Fusca. Quem gostava desse carro iria te massacrar.

– Eu sei, e também sei de um pessoal que gostava mesmo do Fusca que ia adorar esse carrinho. Cada um fazia do seu jeito, diziam que o Fusca era uma tela em branco. Se eu tivesse nascido naquela época faria igualzinho. E acho que seria até mais fácil!

Ou o punk do cabelo verde era um cara muito educado, ou o Agente havia sido educado demais. Fez uma nota mental para lembrar de se conter.

Mas o carro estava mesmo uma graça, mesmo com a pintura branca coberta de poeira vermelha. Por fora não havia muitas modificações – quem não prestasse atenção nas entradas de ar cuidadosamente adaptadas à frente dos para-lamas traseiros jamais desconfiaria do arranjo mecânico: apenas rodas mais largas (de três raios) suspensão mais baixa, pneus gordos para segurar nas curvas e uma marota saída de escape deslocada para o lado. O cara definitivamente tinha bom gosto. E era mesmo educado. Mesmo que fedesse feito um gambá.

– Esse aí é um 2.0, inteirinho forjado por dentro, oito bicos, um Garrett 4094. E eu descolei esse motor praticamente pronto, só dei um tapinha na injeção. Até o câmbio tava junto com ele – sequencial, seis marchas, e tração nas quatro rodas. Subaru, né?

– O Peter tem bom gosto, mesmo. Só precisa de um banho, e também precisa lembrar que a gente não usa nossos nomes verdadeiros por aqui. Que nem você!

– Tá certo, Carlos. E você precisa lembrar que eu não sou seu amigo.

Com o ronco do boxer devidamente identificado, faltavam dois. O Fusca foi uma surpresa tão grande que o Agente sequer havia reparado nos outros dois elementos.

Um deles estava encostado em seu carro, e definitivamente não parecia estar em seu próprio ambiente. Ao contrário de Peter – e de qualquer outro rachador, diga-se – ele estava impecavelmente limpo e com certeza havia tomado um bom banho antes de sair de casa. Um terno risca-de-giz de corte perfeitamente ajustado ao corpo, um fedora bem ajustado na cabeça, sapatos lustrosos, luvas de couro nas mãos. A única coisa que quebrava a aparência bem ajustada do sujeito era uma bituca de cigarro apagada que parecia colada no canto direito de sua boca – que foi prontamente cuspida, em um gesto que contrastava grandemente com seus demais maneirismos, quando ele começou a falar.

– Me perdoe! Pego isso já – disse o homem, que tinha o rosto de um rapaz de 20 anos e o olhar de um senhor de 60, ao lembrar que estava falando com uma autoridade – É um prazer imenso poder finalmente conhecer o senhor! Eu me chamo Jesse, mas com acento no último “e”.

– “Jessé”, então.

– Sim, mas como eu precisava de um codinome, só tirei o acento. O Charlie aqui, por alguma razão, costuma tomar as decisões no grupo e acha que não podemos revelar nossas identidades.

– Você sabe bem por quê! Se não fosse por mim, nenhum de vocês estaria por aqui hoje! – exclamou o dono do Crown Vic.

– Foi UMA fiança. Uma!

– E se não fosse por ela você teria conhecido o nosso amigo…

– Eu não sou seu amigo!

– … o Agente aqui.

– Está certo – conformou-se Jesse – Mas, me diga, que tal?

Era curioso como esses caras buscavam a aprovação do Agente. Síndrome de Estocolmo antecipada? De qualquer forma, antes mesmo de saber o que seu elegante interlocutor havia feito no carro, ele já havia aprovado seu carro. Como seria diferente?

O Agente conhecia bem aquele carro – era um de seus favoritos: um Nissan Skyline GT-R legítimo, sem qualquer modificação aparente. Não que fosse necessário. A pintura roxa era uma atração à parte, exibindo reflexos esverdeados dependendo de como a luz forte do sol do deserto atingia a carroceria.

– Esse é o maior orgulho da minha vida. Por fora está igualzinho ao que era quando novo, no distante ano de 1999. Vou abrir o capô para você dar uma olhadinha.

A polidez do tal Jesse era mesmo desarmante, e só podia ser retribuída à altura.

– Por favor!

Aquilo era, sem dúvida, um RB28 – usava o RB26 do GT-R como base, mas tinha o deslocamento ampliado para 2,8 litros em vez dos 2,6 litros originais. Os dois turbos deram lugar a um só e certamente havia mais segredos ali.

– Tem uns 700 cv aí, mas ainda há espaço para melhorias. O Fusca do Peter está começando a me dar trabalho. Quer dar uma volta?

Era óbvio que o Agente queria dar uma volta. Mas ninguém podia saber disso.

– Quem sabe na próxima. Hoje, não. Obrigado.

Até porque ainda faltava um membro da “equipe”.

Ele ainda não havia saído de dentro do carro – não que precisasse, pois não havia teto ou janelas, apenas um para-brisa. As rodas enormes com pneus extremamente borrachudos saltavam para fora, como nos monopostos de outrora, e ficavam quase totalmente descobertas. Dentro, apenas um banco concha (havia espaço para outro, porém ocupado por uma mochila velha), volante, alavanca de câmbio, pedais e um conta-giros. Nada de velocímetro, luzes-espia, nem nada do tipo.

– O Colin não fala muito, mas a gente pode contar com ele para tudo. É ele quem cuida dos nossos carros. Tem um dedo dele em todos os nossos projetos – informou Charlie. – E ele construiu esse Locost sozinho. Eu não sei de onde ele tirou essa história de Locost, parece até que ele inventou essa coisa. Nunca vi nada assim. E nunca dirigi nada assim, também.

– É claro que você não sabe! Você nunca se preocupou em aprender nada que eu tento te ensinar! E você nunca vai dirigir esse carro!

Então, virou-se para o Agente.

– Pode me chamar de Colin. Eu percebo que você é um cara que entende das coisas, então você deve saber por que eu escolhi esse nome.

– Colin Chapman, não é? Parabéns! Ficou muito bem feito.

Nenhum – nenhum – dos outros carros havia chamado a atenção do Agente tanto quanto o Locost. Uma réplica do Lotus Seven, provavelmente o carro que melhor representava a ideia de diversão ao volante. Era sem dúvida o mais fraco dos três, mas também era o carro que o Agente escolheria, se pudesse. Não era novo, estava cheio de marquinhas do tempo, mas… Ah, que coisa bonita!

– O que tem aí?

– Ah, nada muito louco. Tá com motor Honda, um K20 quase original, se tiver 200 cv é muito. Eu sempre fico para trás dos outros, mas não ligo. Me divirto mais que todos eles juntos, pode apostar!

O Agente acreditava. Em instantes, estava se imaginando dentro do Locost, em outro lugar, outra era. Longe do deserto, das retas infinitas. Em uma estrada estreita, cheia de curvas, ladeada por árvores e mato. Para sua sorte, os óculos escuros escondiam o olhar perdido no horizonte e, em poucos segundos, ele já estava de volta à realidade.

– Pensei que seu amigo não falava muito, Carlos. Você podia aprender algumas coisinhas com ele.

– É… mas e aí, o que achou do nosso grupinho?

Aquele provavelmente era o dia mais empolgante na vida do Agente desde que ele havia começado a trabalhar no Quadrante. Era a primeira vez que sua interação com os rachadores quebrava o protocolo e, internamente, ele se perguntava por que havia demorado tanto tempo para deixar isso acontecer.

Por fora, porém, era preciso manter a compostura.

– Eu poderia colocar todo mundo dentro da viatura, que é bem espaçosa, e levar todo mundo para a delegacia. Aliás, era o que eu deveria fazer agora mesmo. É para isso que sou pago. Mas, como o Charlie já sabe, hoje ninguém vai preso.

– Você me chamou de Charlie?

Inabalado, o Agente prosseguiu.

– Vocês têm 10 segundos para entrar nos seus carros e desaparecer da minha frente antes que eu mude de ideia.

Ninguém se mexeu.

– Andem logo! Dez…

Charlie, Peter, Jesse e Colin, como soldados sob o comando de um superior, fizeram exatamente o que o Agente ordenou. O acordar dos motores ecoou pelas pedras do deserto, ouvido por ninguém fora os cinco indivíduos. Em seguida, uma enorme nuvem de poeira e fumaça se levantou e, uma vez dissipada, deixou apenas o Agente e sua viatura autônoma ali. Além das marcas dos pneus no asfalto.

Com um gesto, o Agente abriu a porta de sua viatura e ajeitou-se no banco. Quatro pontinhos no radar denunciavam a posição dos quatro rachadores. Após considerar, por breves segundos, seguir atrás deles, o Agente decidiu seguir seu plano original e encerrar o expediente.

Envolvidos até o pescoço com seus carros de verdade, os quatro sujeitos que o Agente acabara de conhecer sequer imaginavam que sua viatura já havia registrado fotos de seus carros e de seus rostos, identificado seus verdadeiros nomes e até mesmo guardado as coordenadas do galpão secreto – algo extremamente útil naquele deserto enorme cheio de galpões abandonados iguaizinhos àquele.

– Para casa, por favor. Com música.

– Para casa – repetiu a voz sintetizada da viatura, que logo em seguida deu lugar aos primeiros acordes de “Wild Horses”, dos Stones.

A viatura não tinha ronco e o isolamento acústico era simplesmente perfeito. A melancolia da canção ajudaria o Agente a se recompor, a baixar sua adrenalina. Mas também o faria pensar.

Havia um bom motivo para aqueles caras viverem como viviam, torrando até o último centavo de seu dinheiro – e, bem, o dinheiro do pai de Charlie – com máquinas velhas, banidas e cheias de tecnologia antiga e proibida. E o Agente estava começando a entender por que seu emprego ainda existia.

* * *

A Cidade Branca despontou no horizonte quando o crepúsculo se abateu sobre o deserto. As luzes começavam a se acender, e o cheiro daquele ambiente estéril e organizado já se fazia sentir. Em poucos minutos, a viatura parou à frente do edifício onde ficava o apartamento do Agente, abriu a porta e o deixou em casa. Antes de fechar a porta, o Agente ainda conseguiu ouvir o discreto zunido de seu veículo partindo, sem ninguém dentro, em direção à Divisão de Interceptação e Captura.

Era impressionante como tudo ali funcionava direito, em perfeita ordem, sem confusões ou atrasos. A viatura nunca ficava sem energia. O elevador nunca quebrava. A geladeira estava sempre cheia – quando identificava que algo estava acabando ou perto de vencer, fazia uma compra pela Rede imediatamente e o Agente só precisava agendar a entrega. Toda a informação do mundo estava acessível a qualquer momento, em qualquer lugar. Contratempos eram raros, e as preocupações todas vinham de dentro.

Aqueles caras, porém, pareciam ter aversão àquilo tudo. Estavam no controle de suas próprias vidas, ao menos quando dirigiam seus carros, sujeitos a problemas mecânicos, falta de combustível e, claro, aos seus próprios erros ao volante. Mas era perceptível que todos eles eram felizes. Ao menos quando dirigiam seus carros.

– Eu preciso de um carro. E sei quem vai me arranjar um.

* * *

The story so far…

O Agente, capítulo 1: Combustão noturna

O Agente, capítulo 2: O futuro de Mad Max não aconteceu

O Agente, capítulo 3: Crown Victoria GT500

O Agente, capítulo 4: uma oficina mecânica no meio do deserto