Todo fã brasileiro de Fórmula 1 conhece esse carro: o Lotus 72D de Emerson Fittipaldi. O número é o 32, o que significa que a pintura retrata o carro no Grande Prêmio da Bélgica de 1972, realizado no extinto autódromo de Nouvelles-Baulers – um circuito que, considerado perigoso demais para corridas de automóveis, fechou as portas em 1991. Foi lá que Emerson Fittipaldi venceu a segunda corrida naquele ano (a primeira havia sido em Jarama, na Espanha).
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O pessoal que acompanhava a Fórmula 1 na década de 1970, certamente lembra com carinho do ano de 1972. Afinal, foi o primeiro título do jovem Emerson Fittipaldi – e o primeiro de um piloto brasileiro. Não por acaso, Emmo ganhou uma série de homenagens (como o samba-rock “Lotus 72D”, a pérola desconhecida de Zé Roberto) por ser a revelação da Fórmula 1 naquele tempo. E uma destas homenagens foi o documentário O Fabuloso Fittipaldi, documentário lançado em 1973 que mostrava um pouco mais sobre a vida do primeiro brasileiro a conseguir chegar ao topo na maior categoria do automobilismo.
Escrito e dirigido por Roberto Farias e Hector Babenco, o documentário traça o perfil do “Rato” em 1973: um piloto ainda jovem, mas cheio de talento e com mais experiência que seus 27 anos de idade sugeriam. O filme traz depoimentos do próprio Emerson, de seu irmão Wilsinho, seus pais Wilson e Jozéfa, e até sua avó Maria Wojciechowska, nascida na Polônia. Além de várias outras pessoas envolvidas no início da trajetória de Emerson nas pistas, como Jackie Stewart e Ronnie Peterson.
Trata-se de um registro interessantíssimo por uma série de razões. Primeiro, porque se trata de um documento detalhado e contemporâneo dos primeiros anos de Emmo como piloto da Lotus – e, de forma geral, dificilmente se encontra informações completas e confiáveis do automobilismo setentista, ainda mais um brasileiro. Há depoimentos da família, falando sobre como Emerson e Wilsinho começaram correndo de moto, depois fabricando seu próprio protótipo (o “Fittiporsche”), e a forma como os familiares lidavam com a paixão dos meninos pelas corridas de motos: o medo que dona Maria e dona Jozéfa sentiam e, ao mesmo tempo, o orgulho ao ver que ambos levavam jeito para acelerar.
É muito interessante ver o hoje lendário Emerson Fittipaldi falando sobre os tempos difíceis do automobilismo no Brasil, sobre como mudar-se para a Europa parecia a única chance de seguir carreira, e sobre o começo na Fórmula 3 britânica e seu primeiro título – que chamou a atenção de Colin Chapman e fez o chefão da Lotus ir conhecê-lo pessoalmente.
Mas o documentário também é interessante por causa da produção em si. Tudo exala “anos 70”, e não só as costeletas do Emmo: a narração, o português elaborado e absolutamente correto e elaborado do narrador e mesmo dos depoimentos, e as cenas cuidadosamente produzidas para parecerem espontâneas – como o encontro entre Emerson e sua primeira esposa, Maria Helena, andando em um carrossel. E, claro, temos a trilha sonora.
A trilha sonora de “O Fabuloso Fittipaldi” foi lançada em um álbum com o mesmo nome ainda em 1973. As composições ficaram a cargo de dois grandes nomes da música brasileira: o compositor e instrumentista Marcos Valle e a banda Azymuth, então recém-formada pelos músicos José Roberto Bertrami, Alex Malheiros e Ivan Conti.
Marcos Valle, de formação erudita, começou a estudar piano clássico aos seis nos de idade e, começando em 1970, foi compositor das trilhas originais de uma série de novelas e filmes brasileiros e transitou por vários estilos ao longo de quase 60 anos de carreira. Em O Fabuloso Fittipaldi, Valle investiu no jazz fusion, estilo que mistura as harmonias complexas e improvisação do jazz com elementos de rock, funk e rhythm and blues – o que, não por acaso, coloca o jazz fusion perigosamente próximo do rock progressivo, porém com uma exploração musical mais ampla e atmosférica.
A carreira da banda Azymuth também passa por Marcos Valle. Foi com ele que o trio gravou seus dois primeiros álbuns, tão obscuros que nem trazem créditos – Som Ambiente e Brazil by Music Fly Cruzeiro, ambos de 1972. Este último, aliás, foi feito pelo dono da extinta companhia aérea Cruzeiro do Sul, que era pai de Marcos Valle e de seu irmão, o compositor Paulo Sérgio Valle. Com O Fabuloso Fittipaldi, o Azymuth teve seu primeiro trabalho com grande projeção nacional, algo que garantiu uma longa e diversificada carreira galgada no jazz fusion com elementos de samba e outros ritmos brasileiros.
A música em si é a cara do automobilismo da década de 1970 – na época, o jazz fusion era que embalava as transmissões da Fórmula 1 e outras categorias do automobilismo, e a temática foi explorada por grupos como Casiopea e T-Square (ambos do Japão). A complexidade técnica das composições, as levadas frenéticas das músicas mais rápidas e o virtuosismo dos músicos costumavam ser associadas ao alto nível de habilidade e à velocidade das corridas. Ao mesmo tempo, por serem canções em sua maioria instrumentais, o jazz fusion serve perfeitamente como plano de fundo – tanto para uma corrida quanto para um documentário sobre um piloto de corridas. Ou melhor, um “corredor de automóvel”, como o Emerson diz várias vezes na película.
As canções foram compostas de acordo com o momento do filme (que, claro, é o mínimo que uma trilha sonora pode fazer). Todas elas trazem elementos em comum, como o baixo marcado, as melodias no piano de Marcos Valle e guitarras funkeadas, limpas e com bastante wah.
O tema de abertura, por exemplo, “Fittipaldi Show”, é uma canção acelerada, com efeitos sonoros de ronco de motor e um interlúdio de piano com acordes de bossa nova, permeado pela orquestração característica de Marcos Valle. “Vitória” é usada exatamente quando Emerson fala a respeito de sua primeira vitória na Fórmula 3, e também toca quando Emmo leva um Ford Maverick para Interlagos, onde vai mostrar o traçado.
“Tema de Maria Helena”, uma canção mais romântica – e a única com vozes – toca sempre que a primeira esposa de Emerson aparece e fala sobre a relação dos dois. Há também momentos tristes – Rindt é a composição que entra em cena quando o documentário aborda o acidente com o piloto Jochen Rindt, em 1970, que Emerson Fittipaldi lamentou profundamente apesar de o ocorrido ter lhe dado a chance de ocupar um posto na Lotus.
Esta duplicidade foi explorada na canção, que começa triste e tensa, com acordes menores e uma cadência mais melancólica mas, a partir do solo de sintetizador Moog rumo ao final, ganha um tom mais sereno, de esperança e paz.
São músicas que você pode ouvir e curtir mesmo se não for fã de Fórmula 1 ou de automobilismo. Quando se assiste ao filme e se tem o contexto, porém, é perceptível a capacidade de Marcos Valle, Paulo Sérgio Valle e do Azymuth em evocar sentimentos com suas performances e composições. Mas muitas músicas têm trechos falados que usam áudio do filme – tornando irresistível a ideia de assistir para entender o contexto de tudo o que ocorre. Marcos Valle, aliás, tornaram-se amigos depois da produção, e há algum tempo Valle compartilhou nas redes sociais uma foto dos dois “jogando tênis em Long Beach”.
O maior problema de O Fabuloso Fittipaldi é sua disponibilidade. Como se não não bastasse ser difícil encontrar registros de automobilismo brasileiro na década de 70, também é impossível assistir ao documentário ou ouvir sua trilha sonora de forma legal.
O filme em uma página do Facebook e a trilha sonora está no Youtube mas, se você quiser cópias físicas, terá de contar com o mercado de usados – e um CD lacrado, de época, custa pelo menos R$ 400.