O panteão da Fórmula 1 é um lugar normalmente reservado aos grandes campeões da categoria — ou, pelo menos, aos pilotos que chegaram muito perto de conseguir isso. É um lugar onde Fangio, Senna, Clark e Schumacher têm cadeira cativa. Onde Alonso e Hamilton certamente serão colocados em algum momento após a aposentadoria de ambos. Um lugar onde Stirling Moss e Ronnie Peterson são membros honorários por tudo o que fizeram nas pistas. É também um lugar onde raramente veremos Gilles Villeneuve, Jacky Ickx e Rubens Barrichello. O público costuma reservar esse tipo de honraria — o “direito” a ser chamado de herói — aos campeões.
Mas há um piloto que, mesmo sem ter vencido uma corrida — ou mesmo sem ter subido ao pódio em sua breve carreira — certamente tem um lugar garantido entre os grandes heróis da Fórmula 1. Seu nome é Arturo Francesco Merzario.
Mesmo que você não o conheça, você certamente já viu o piloto franzino que andava pelo paddock com um chapéu de cowboy — acessório que passou a usar, substituindo seu tradicional boné coppola, depois que passou a ser patrocinado pela Marlboro.
Merzario era um piloto de testes da Abarth que passou a pilotar os carros da preparadora em corridas de turismo e subidas de montanha ainda nos anos 1960. Em 1969, ele disputou e venceu o Grand Prix de Mugello, parte do campeonato italiano de carros esporte, a bordo de um protótipo Abarth 2000 SP. O desempenho chamou a atenção da Ferrari, que o convidou para integrar sua equipe no Mundial de Carros Esporte (WSC) no ano seguinte.
Pela Ferrari, Merzario disputou a 24 Horas de Le Mans em 1971 e 1972 — esta segunda, dividindo a Ferrari 312 PB com José Carlos Pace e conquistando o segundo lugar geral —, e venceu os 1000 Km de Spa, a Targa Florio e a 9 Horas de Kyalami, colaborando para a campanha quase invicta da Ferrari no título do WSC em 1972.
Naquele mesmo ano, Merzario estreou na Fórmula 1 pela Ferrari, e se tornou um dos poucos pilotos que pontuaram em sua corrida de estreia, depois de terminar o GP da Grã-Bretanha em sexto lugar. Ele também foi o último piloto a estrear na Fórmula 1 pela Ferrari antes de Oliver Bearman, que disputou o GP da Arábia Saudita deste ano, substituindo Carlos Sainz Jr.
Novamente seu desempenho convenceu Enzo Ferrari e o chefe da equipe, Alessandro Colombo, e ele ganhou um contrato para ser o segundo piloto da Scuderia, ao lado de Jacky Ickx. Ele começou bem a temporada a bordo da 312B, terminando em quarto lugar em Interlagos e em Kyalami, mas quando a Ferrari passou a usar a 312B3 a coisa começou a desandar. Com um carro fraco e pouco confiável, a dupla de pilotos teve problemas no restante da temporada. Decepcionado, Enzo Ferrari fez um grande reset na equipe e trocou todo mundo — Colombo, Ickx e Merzario, que foi parar na Frank Williams Racing Cars (a precursora da atual Williams).
Os carros da Williams, contudo, eram fracos demais. Sem conseguir ser competitivo, Merzario largou a Fórmula 1 na primeira metade da temporada e voltou para os protótipos, desta vez pela Alfa Romeo. Com quatro vitórias — 800 Km de Dijon, 1000 Km de Monza, Targa Florio e 1000 Km de Nürburgring —, Merzario foi fundamental na conquista do título de construtores pela Alfa naquele ano. E ele ainda encontrou tempo para substituir Wilsinho Fittipaldi na Copersucar, no GP da Itália, o qual terminou na 11ª colocação.
Em 1976 ele novamente voltou à Fórmula 1, agora pela March. Sua passagem pela equipe foi rápida: sem resultados satisfatórios em sete das nove primeiras etapas do campeonato, ele saiu da March e foi para a Wolf, que havia acabado de comprar a Frank Williams Racing Cars. A campanha de Merzario na Wolf não seria melhor que na March, mas logo em sua primeira corrida pela equipe, o GP da Alemanha de 1976, sua história mudaria para sempre.
Niki Lauda, então campeão, e James Hunt dividiam a primeira fila. Lauda havia vencido cinco daquelas corridas que Merzario mal havia terminado. Hunt havia vencido outras duas e estava distante na vice-liderança do campeonato. Merzario nem pensava nisso. Antes da prova, Lauda vinha discutindo com os colegas e com a organização que Nürburgring não era mais adequada àquela Fórmula 1 da segunda metade dos anos 1970. Tanto que aquele seria o último ano do circuito no calendário da Fórmula 1.
Uma garoa leve caiu sobre o circuito antes da largada, o que levou os pilotos a saírem com os pneus de chuva. Contudo, a garoa logo passou e, logo na segunda volta, os carros entraram nos boxes para trocar os pneus. Lauda, que já havia perdido a liderança na largada, saiu dos boxes para recuperar as posições. Ele havia sido o primeiro (e até então único) piloto a completar o circuito em menos de sete minutos. Era apenas uma questão de tempo para assumir a ponta.
Logo depois de passar a dobra à esquerda que antecede a Bergwerk, Lauda perdeu a traseira da 312T2, escapou para a direita e bateu numa barreira a 220 km/h. A violência do impacto lançou o carro de volta para a pista, já envolto em chamas. Guy Edwards conseguiu desviar, mas Brett Lunger não, e acertou a Ferrari em cheio. Em seguida, Harald Ertl acertou o carro de Lunger e os dois, junto de Edwards, tentaram tirar Niki Lauda do carro em chamas, mas, em meio à fumaça e à tensão eles não estavam conseguindo.
Arturo Merzario vinha logo atrás e, ao ver o caos, parou o carro. Ele próprio narrou o que se sucedeu, em uma entrevista à revista Esquire, em 2019:
“Você faz o que tem que fazer. Niki estava chorando de dor e pânico. Seu corpo estava preso, então não consegui soltar o cinto na primeira tentativa. O calor era tão intenso que eu precisei recuar algumas vezes. Na terceira tentativa ele já estava inconsciente, mas eu consegui soltar o cinto. Eu pesava só 60 kg. É um milagre eu ter conseguido puxar Niki do cockpit e levá-lo para longe do carro. Achei que ele estivesse morto, mas então vi que ele havia engolido a língua. No exército aprendi o procedimento, então executei. Por sorte eu estava com as luvas, que deram mais firmeza nas mãos. Depois fiz massagem cardíaca e respiração boca-a-boca até a chegada do médico. Durante a batida, o capacete de Nikki se soltou e, por isso, ele teve queimaduras severas. Quando ele acordou e perguntou como estava seu rosto, eu sabia que ele conseguiria sobreviver.”
Quem explica como Merzario conseguiu remover Lauda do carro é Brett Lunger. Veterano do Vietnã e, por isso, treinado pelo exército como Merzario, ele estava puxando Lauda enquanto Merzario tentava soltar o cinto da Ferrari. Quando finalmente conseguiu, os dois, juntos, puxaram Lauda do carro e o deitaram na grama.
Lauda inalou gases tóxicos e, por isso, passou quase uma semana entre a vida e a morte no hospital. Apenas 41 dias depois do acidente, ainda com as queimaduras em processo de cicatrização, ele voltou às pistas para o GP da Itália. Ali foi a primeira vez que Lauda encontrou Lunger e Merzario depois do acidente. Lunger conta que estava discutindo relações do câmbio com a equipe quando Lauda se aproximou por trás, cutucou seu ombro, disse “obrigado” e seguiu andando. “Isso é a cara do Niki Lauda. Mas é tudo o que ele precisava dizer. Eu valorizo isso”, disse mais tarde.
Com Merzario, contudo, as coisas foram diferentes. “Ele passou por mim e sequer disse ‘obrigado'”, contou Merzario na mesma entrevista.
O austríaco tentou consertar as coisas uma semana depois, quando Merzario estava no Salzburgring para o Elan Trophy, última etapa do WSC naquele ano. Niki Lauda, do nada, parou em frente a Merzario tirou seu relógio do pulso e o entregou ao italiano. Merzario, ofendido, disse que não aceitaria o presente. Não da forma que Lauda o entregou. “Não foi algo comprado especialmente para mim”, disse Merzario.
O relógio em questão era um Rolex Oyster Perpetual Datejust de ouro. Algumas fontes dizem que Lauda havia ganhado o relógio em 1975 por sua pole position no GP de Mônaco. Merzario diz que o relógio fora um presente da ex-namorada de Lauda, Mariella von Reininghaus, pelo título mundial de 1975. Qualquer que seja a origem do relógio, ele não parecia ter grande valor para o austríaco. No fim das contas, Carlo Chiti, então chefe da Autodelta, convenceu Merzario a aceitar o presente. Depois disso, Merzario e Lauda praticamente mal se viram ou se falaram.
O reencontro aconteceu em Nürburgring, durante o GP da Europa de 2006, quando o acidente completou 30 anos. Bernie Ecclestone convidou Merzario para pilotar o safety car para convencê-lo a ir ao circuito. Ao chegar lá, Arturo descobriu que Bernie queria apenas uma foto de Lauda e Merzario no local do acidente. O relógio, contudo, nunca mais foi visto desde o encontro em Salzburgring.
“As pessoas me perguntam o que aconteceu naquele dia. Todos dizem que foi uma quebra na suspensão ou algum outro problema técnico. Ninguém quer acreditar que o grande Niki Lauda cometeu um erro. Mas foi o que aconteceu. Até a Adenau, a pista estava completamente seca. Depois, havia alguns pontos molhados. Dá pra fazer a dobra que antecede a Bergwerk com o pé embaixo. Só é preciso passar na borda da zebra interna. Mas havia água ali e, de longe, vi Lauda passar pela poça e, depois, perder o carro.”
Depois da cena de 2006, Lauda e Merzario se aproximaram. Não se tornaram melhores amigos, mas mantiveram uma relação cordial e eram visto juntos com alguma frequência nos paddocks da F1.
Questionado pela revista se usava o relógio, Merzario respondeu quase ofendido: “Nunca!”. O desapego, contudo, parece ser só fachada. A matéria da Esquire conta que, ao terminar a sessão de fotos, um preocupado Merzario perguntava “onde está meu Rolex?”, o que mostra que, talvez, o presente signifique mais do que ele admite. Ao retomar o relógio, Merzario o entregou à sua esposa, que guardou o Rolex na bolsa e levou o presente de volta para o cofre onde ele é guardado há 48 anos.
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