Segundo um velho ditado de Le Mans, para ganhar a corrida pela primeira vez é preciso disputá-la ao menos três vezes. Há uma variação desse ditado aplicada às casas: na primeira você aprende a fazer, na segunda você corrige os erros e refina o projeto. A terceira é a que você acerta.
Há alguns casos, contudo, em que não existiu ainda uma terceira oportunidade. A Subida da Serra do Rio do Rastro, por exemplo, teve duas edições somente. Ainda é tudo muito novo, ninguém sabe exatamente o que é preciso para chegar lá e conquistar a vitória. O primeiro vencedor, Iures Delfino, levou o caneco porque alguém tinha de vencer a prova, e calhou de ele ser o mais rápido entre aqueles pilotos que estavam descobrindo a montanha. Mérito dele? Sem dúvida. Mas não dá para dizer que ele tinha o mapa da vitória na mão. Ele próprio reconhece isso.
“Na primeira prova a gente não tinha nenhum parâmetro das exigências da Subida. A gente tinha uma noção teórica, então nos preparamos com base nisso”, explica Iures.
Nesta edição ele chegou à Serra como o favorito, porque havia vencido a primeira edição afinal. E se ele venceu uma vez, bastaria repetir o desempenho para vencer novamente, certo?
Errado. Porque para terminar a corrida em primeiro, primeiro você precisa terminar a corrida. Nesta segunda Subida, Iures tentou não apenas defender sua vitória, mas também superar seu próprio tempo, estabelecendo um novo recorde. Mas, como vimos localmente, não basta repetir a performance do ano anterior, pois ela não depende apenas do piloto e do carro, mas também da montanha. E a montanha decidiu que as coisas seriam diferentes logo no segundo dia do evento, durante os treinos do sábado.
Uma densa neblina se formou na Serra e por ali ficou o dia todo. Acompanhada de garoa e chuva, ela trouxe o caos: muitos carros batidos e poucas chances de reconhecimento de pista. Com o tempo limitado pelas autoridades, os carros foram para a competição no dia seguinte com aquele treino limitado do sábado.
No domingo, contudo, as condições foram perfeitas. Céu azul, 30ºC no termômetro, pista praticamente seca. Dava até para arriscar uma subida com pneus slick, como o Iures faria para tentar bater seu próprio tempo e estabelecer um recorde propriamente dito.
O traçado, como já expliquei na matéria anterior, tem dois tipos de superfícies bem distintas. Na parte inicial, menos sinuosa e mais baixa, a pista tem asfalto novo, liso e suave como se vê em um autódromo. Na segunda metade, mais sinuosa e com maior altitude, o piso é concreto áspero, danificado pelas pedras que eventualmente se desprendem e rolam morro abaixo na época das chuvas. Mesmo com a aspereza, a aderência é prejudicada pelo acúmulo de água residual (que escorre das pedras ou que demora a evaporar devido às sombras) e pelo sacolejo que as irregularidades provocam na suspensão do carro — a mesma condição que impede alguns carros mais radicais de contornarem o carrossel de Nürburgring pela parte interna.
A variação de altitude castiga os carros aspirados, e depois da primeira edição ficou claro que os carros de tração integral têm mais vantagem nas saídas dos hairpins da parte alta do traçado — são 11 no total. A combinação ideal para a subida, portanto, é um carro com motor turbo e tração integral. Você irá notar isso na tabela de tempos.
No domingo as atividades começaram com uma apresentação dos drifters, que levantou o público e, como efeito colateral, ajudou a secar a pista para os competidores. Os carros largaram pela ordem de categorias, começando pela Street e terminando com a Extreme — esta última a categoria do Lancer Evolution de Iures. Isso, em tese, favoreceria os carros que largaram depois, devido à secagem da pista à medida em que a temperatura aumentava.
Porém… como eu disse antes, o desempenho na Subida não depende apenas do carro e do piloto, mas também da própria Montanha.
Na primeira Subida, em 2022, Iures preparou seu antigo Lancer Evo X comuma noção geral de como um carro de subida de montanha deve ser acertado. O carro tinha o motor 4B11T modificado para deslocar 2,2 litros em vez dos 2 litros originais, com um turbo Garrett G30-900 pressurizando a 1,4 bar para obter entre 420 cv e 440 cv.
O foco da preparação, naquela primeira edição, foi o arrefecimento do motor e do câmbio. Para isso, o carro tinha um sistema de óxido nitroso que pulverizava o fluido a cada 30 segundos por 3 segundos nos radiadores, visando baixar a temperatura dos fluidos do carro — água, óleo do motor e óleo do câmbio. Além disso, o carro era todo aliviado, sem interior, nem ar-condicionado e com os vidros substituídos por Lexan. Foi assim que ele partiu para a (até então desconhecida) subida da montanha.
O aprendizado: o turbo muito grande demorava a encher, prejudicando as saídas de curva. Por isso, Iures precisava sair dos hairpins em primeira marcha porque, para conseguir engatá-la, era preciso frear além do necessário para contornar a curva. Primeira lição: use turbos menores. Como a velocidade máxima não é prioridade, um turbo menor não irá “estrangular” o motor e estará sempre cheio para desenvolver potência máxima nas saídas de curva.
Outro problema foi causado por algo que parecia um upgrade para a subida. Para evitar falta de combustível na linha de injeção, Iures comprou um tanque maior com um surge tank interno. Este surge tank deveria manter um volume adequado para o fluxo exigido, porém ele retornava o excesso da flauta de injeção diretamente para o surge tank. Ao longo da subida a circulação do combustível pela flauta e retornando ao tanque acabou elevando a temperatura do combustível, provocando pré-detonação no motor (a mistura ar-combustível se inflama pela compressão devido à sua alta temperatura, antes do disparo da centelha da vela). Por isso, Iures precisou aliviar o pé e baixar o ritmo da subida, limitando a velocidade do motor a 3.000 rpm para evitar uma possível quebra.
Mesmo assim, ele conseguiu completar a subida mais rápido que todos os outros, com 9:14,32 — uma vantagem de 21,66 segundos sobre o segundo colocado, Eduardo Cenci com seu Subaru BRZ. Foi assim, com turbo lag, entradas lentas e detonação que o primeiro recorde da Subida da Serra do Rio do Rastro foi registrado.
Para a segunda edição, Iures trocou de carro. Ainda com um Lancer Evo X, mas agora com a preparação mais pacata — o 4B11T ainda tinha 2 litros e o turbo original foi trocado por um menor (lição do ano anterior, lembra?) e o gerenciamento foi feito por uma injeção programável com sistema anti-lag para otimizar as reações do carro nas saídas de curva.
Esse segundo carro (o primeiro era azul, este atual é bordô) também teve uma atenção especial ao arrefecimento do motor e do câmbio. O radiador do motor é 25% maior que o original, assim como o intercooler. Ainda há dois radiadores do óleo do motor e três (sim: três!) radiadores do óleo do câmbio. O sistema de óxido nitroso foi substituído por um sistema de pulverização de água sobre os radiadores, inspirado nos Lancer Evolution do WRC. Por último, a lição do combustível quente também resultou na instalação de um sistema de arrefecimento do combustível.
Com isso, Iures e sua equipe consideraram sanadas as falhas mais prejudiciais do carro anterior. Faltou apenas mais contato com o carro, mas isso seria resolvido no dia de treino na montanha… se ela permitisse.
Como eu disse antes, ela não permitiu. O sábado começou com o céu parcialmente encoberto, mas à medida em que eu subia em direção ao platô de onde a Serra desce, as nuvens se tornavam mais densas a ponto de eu já não enxergar o carro à frente. Os competidores conseguiram fazer uma passagem de treino, mas não foi possível fazer uma segunda.
Muitos acidentes pequenos, um outro acidente mais sério que tirou o carro da prova e levou seu piloto para a observação médica, e o senso de responsabilidade falaram mais alto e a atividade foi encerrada prematuramente. Na descida, que eu fiz com meu próprio carro, entendi claramente o motivo. A pista estava muito molhada, com lâminas d’água sobre o concreto. A visibilidade era baixa e havia muitos carros de serviço e os acidentados nas áreas de escape. Não dava para continuar.
Assim, a competição aconteceu com aquele treino parcial, somente. Com a pista seca no dia seguinte, foi possível extrair tudo dos carros. Iures estava decidido a baixar seu tempo, afinal, ele já havia sido mais rápido no treino de 2022 e seu recorde da vitória foi obtido com um tempo mais alto que o do treino. Com um carro que resolvia os problemas, era certo que ele superaria os 9:14,32 da edição anterior e estabeleceria um novo recorde. Especialmente por que ele decidiu subir com pneus slick.
Iures foi um dos últimos a largar (o antepenúltimo, se não me falha a memória), por volta das 10h, depois que o sol secou a pista. As parciais mostravam que o recorde seria batido realmente: a marca dos 9,1 km foi atingida em 6:09 — com apenas 2,5 km pela frente, aproximadamente. As projeções da equipe apontavam uma subida na casa dos 8:40 a 8:50 — seria o primeiro tempo “sub-9” da Serra.
Não apenas isso: o foco principal de Iures era superar o tempo de Rhys Millen, que foi registrado em um trajeto mais curto (9,7 km) e que é percorrido opcionalmente pelos cinco primeiros colocados na prova na forma de desafio mesmo — eles desafiam o tempo do piloto profissional, recordista de Pikes Peak (7:17,898). Pela projeção de Iures, considerando o tempo registrado nesta subida, seria possível fazer um tempo sub-7, caso tudo desse certo.
Mas… não deu certo. Iures fez um começo de prova perfeito, sem errar tangências, frenagens ou saídas de curva. E mesmo tendo pouco contato com o carro, ele já estava confortável ao volante deste Evo atual. Passados dois terços da prova, ele olha para o cronômetro e vê que havia percorrido o trecho em menos de seis minutos. E ali seu estado mental lhe pregou uma peça. “Eu comecei a focar na performance em vez de focar na precaução”, contou. “A gente deve estar sempre com a precaução acima da performance”, completa.
Obstinado e decidido a cravar um recorde propriamente dito, ele quebrou uma promessa feita a si mesmo: “Na dúvida, não acelere”. Pode parecer um contrassenso, mas você sabe… para terminar em primeiro, primeiro é preciso terminar.
Em uma das curvas, um cotovelo de 90 graus à esquerda, Iures apontou o carro para a saída, observou que o concreto estava 100% seco e deu pé. O anti-lag manteve o turbo cheio, a entrega de potência foi precisa, o as quatro rodas agarraram o piso rugoso, mas Iures percebeu que havia uma lâmina d’água de volume considerável logo à frente. Ele ainda tentou aliviar, freou o carro, mas o anti-lag atuante não ajudou. O carro passou pela lâmina, escorregou pela tangente externa da curva e a roda dianteira direita caiu na valeta de drenagem da pista. Roda quebrada, pneu cortado, piloto emocionalmente dilacerado.
“A sensação foi muito ruim. Eu tinha jogado fora tudo que eu havia preparado, o que eu vinha fazendo há mais de um ano. Não só o carro, mas a preparação física, a mental e até a financeira, afinal, saiu tudo do meu bolso. Foi muito ruim”, conta.
Apesar do sol e dos mais de 30 graus em pleno Planalto Serrano catarinense, a pista fica em meio a um cânion verde que é uma das regiões de captação do Aquífero Guarani. Em alguns pontos ainda havia água descendo das pedras, mesmo depois de horas após a chuva cessar e a temperatura aumentar. Um destes pontos acabou formando a lâmina d’água que Iures só percebeu tarde demais. Mais uma lição aprendida para a próxima tentativa: “if in doubt, do not flatout”.
Ainda neste ano, provavelmente em novembro, teremos a terceira edição. Será a terceira tentativa de Iures quebrar o recorde de Rhys Millen. Se o lema de Le Mans se aplicar também à Serra do Rio do Rastro, quem sabe o que veremos por lá…
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