“Cuidado com o que você deseja, pois você pode conseguir” é um ditado popular que sugere a reflexão sobre o que desejamos em nosso dia-a-dia e para nossas vidas. É algo bastante filosófico, apesar de não parecer, pois trata sobre a forma como lidamos com as ilusões, os sonhos e a realidade.
Esse assunto já foi base para diversas obras culturais ao longo da história. “Fausto” de Goethe trata disso: o dr. Fausto é um ancião que deseja tanto a juventude de volta, que acaba assinando um pacto com Mefistófeles, o demônio em si. Em “O Retrato de Dorian Gray” de Oscar Wilde, o próprio Dorian Gray, orgulhoso de sua efusiva beleza, deseja mantê-la eternamente e, adivinhe só, faz um pacto com o coisa-ruim para que, em vez dele, quem envelheça é seu retrato, pintado por um amigo.
Ainda há o terrível filme de terror “O Mestre dos Desejos” de 1997, no qual uma moça acidentalmente liberta um gênio do mal, adormecido há milênios, e é convencida por ele a fazer três desejos. O problema é que, por ser malévolo, o gênio se alimenta das más intenções das pessoas e, por isso, realiza os desejos negativamente. A moça, claro, acaba desejando a beleza eterna e é transformada em… uma linda estátua — em um dos finais mais infames da história do cinema.
Estas três obras, escritas em diferentes tempos, não tratam de vaidade, mas dos desejos impulsivos que rejeitam a natureza da realidade e mostram o que acontece quando você tenta subverter o curso natural das coisas em nome de uma suposta virtude.
E o que isso tem a ver com os carros? Bem… lembram das resoluções de ano novo? Eu disse que queria dirigir mais, pegar mais a estrada. E dirigir é igual tomar banho, praticar exercícios ou abrir a geladeira: ajuda a pensar com clareza. Dirigindo, comecei a pensar sobre o tal futuro hipercarro da Porsche, que vai acontecer, mas nem mesmo a Porsche sabe quando ou como.
Pensando sobre isso, percebi a situação na qual a Porsche se encontra. É claro que ela pretende fazer um hipercarro. É bom negócio para reforçar o valor da marca e para ajudar a bancar o desenvolvimento de tecnologias que, em breve, estarão em carros mais mundanos. Quando estes carros mais mundanos chegam perto do desempenho dos hipercarros o que acontece? Você faz um hipercarro que atinge um patamar completamente novo de desempenho e tecnologia.
O problema é que você não pode crescer para sempre. Dizem que até o universo eventualmente irá parar de se expandir. E se até o universo tem seus limites, imagine a Porsche…
Imagine a Porsche, que, depois do 918 Spyder fez cinco carros mais rápidos que ele. Ok, eles não têm a tecnologia que o 918 Spyder tem. Mas podem ter e eventualmente terão. E serão ainda mais rápidos e eficientes e tecnológicos que o 918 Spyder, porque a tecnologia envelhece tão rapidamente quanto um Porsche consegue dar uma volta em Nürburgring.
Então veja só onde a Porsche se meteu: ela já tem cinco supercarros mais rápidos que seu hipercarro. O que significa que seu próximo hipercarro terá de ser muito superior a estes cinco carros — ou ele não se justificará como “halo car”.
Como ela vai fazer isso?
Quanto mais complexos e velozes os carros ficam, mais esforço é necessário para ter pequenos avanços. Sair do 959 para o Carrera GT foi relativamente fácil. Do Carrera GT para o 918 Spyder nem tanto. Do 918 Spyder para o próximo, parece quase impossível. Como lidar com os pneus? Como ir além na aerodinâmica quando se tem algo como o atual 911 GT3 RS? Como manter a famosa confiabilidade dos Porsche de rua enquanto ele faz tudo o que o próximo hipercarro da Porsche precisa fazer?
E aqui volto ao cuidado com os desejos. Primeiro, porque a Porsche quis dominar Nürburgring e fazer dos tempos de volta um argumento de venda e de reforço de sua marca. A Ferrari, por exemplo, não tem esse problema.
A Ferrari já fez cinco carros mais rápidos que a LaFerrari em Fiorano, mas não está preocupada com isso por vários motivos. O principal deles é a divisão de sua linha em três séries distintas, sendo uma delas uma gama de modelos nascidos a partir do conceito de carros especiais como a 288GTO, a F40 e a F50, a Enzo e a LaFerrari. É a série Icona, que tem as Monza SP1 e SP2 e a Daytona SP3.
Nenhuma delas é a sucessora direta da LaFerrari, mas elas cumprem esse papel em termos de especialidade e exclusividade. E a sucessora da LaFerrari já está a caminho, e só precisa superar estas três Ferrari da série Icona. Na prática, a Ferrari apenas desviou o foco dos hipercarros: em vez do desempenho puro, o próximo hipercarro da marca terá um conjunto de exclusividade, reverência ao passado e desempenho de ponta.
A McLaren fez o mesmo — e fez antes da Ferrari. Como superar o McLaren F1? Fazendo com que seus sucessores não sejam comparáveis a ele. Foi ela a primeira fabricante a dividir sua linha em séries — os hipercarros estão na Ultimate Series. Assim, o P1 não se compara ao F1, o Senna não se compara ao P1, nem ao Speedtail, muito menos ao Elva.
A outra parte do cuidado com os desejos tem a ver com a expectativa do público: por alguma razão o público sempre espera que os carros sejam mais rápidos e mais potentes. Carroll Shelby, meses antes de partir, disse que só fez um Mustang de 1.000 cv porque 500 cv já não lhe renderiam capas de revistas.
Ele, mais do que ninguém, sabia que você não precisa de 1.000 cv para ter um Mustang matador. Ele escreveu a história do Mustang com bem menos que isso. E não estou falando do GT350 dos anos 1960, mas de suas criações mais recentes.
O mesmo aconteceu quando a Renault lançou no Brasil o Sandero RS: milhares de pilotos de teclado torceram o nariz porque “esportivo de 150 cv não é esportivo”, ignorando o fato de o RS ter sido o melhor e mais completo esportivo “mundano” fabricado no Brasil. E digo isso mantendo toda a admiração que tenho pelo Gol GTI.
Esse papo já foi tema do Podcast 37 e de uma pensata publicada aqui no site há alguns anos. Os carros nunca foram tão bons — até mesmo os antigos nunca foram tão bons —, mas chegamos a um ponto no qual um Porsche 911 capaz de subir uma rampa de condomínio precisa fazer um tempo de volta que Jackie Stewart não faria em sua temporada de estréia na Fórmula 1.
E isso reflete na indecisão da Porsche sobre seu futuro hipercarro: imagine o fiasco reputacional de se lançar um hipercarro que “toma pau” do GT2 RS na pista, mesmo custando mais caro e tendo mais recursos.
Pare de reclamar! Estamos vivendo o melhor momento para curtir os carros!
Então a consequência de esperar sempre mais dos supercarros, é a mesma de quando se quer sempre mais de qualquer outra coisa: a insensibilidade, a apatia. A incapacidade de se impressionar. Extraordinário é algo que está fora do que é ordinário. Se o extraordinário se torna a nova ordem, ele naturalmente se torna ordinário. Da mesma forma o ensino superior universalizado deixa de ser superior e se torna médio. Fazer festa todo dia tira a graça das festas. E o resultado é uma espiral ascendente que te leva à beira de um abismo. Você irá querer sempre mais, mas… não é possível ter sempre mais. O próprio universo não terá sempre mais. Por que você teria?
Muita gente já acordou desse transe que é a expectativa de ter carros mais potentes e mais velozes, trocando quantidade por qualidade. A mais sólida evidência disso é o boom dos restomods e recriações — boa parte delas feitas pelas próprias fabricantes. É como aquele cara que deu a volta ao mundo para descobrir que não existe lugar melhor que o nosso lar. Você busca insanamente experiências mais intensas, para, no final, descobrir que aquilo que já conhecia era o que te satisfazia suas expectativas.
A própria Porsche já percebeu isso com o GT3 RS da geração passada, inicialmente oferecido somente com câmbio PDK, e, mais tarde, oferecido com câmbio manual. Os clientes não se importavam com os tempos mais rápidos da caixa super-rápida. Eles queriam só o bom e velho câmbio manual, o mesmo que o 911 Carrera RS usava em 1973.
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