Mesmo depois de quase meio século, “Bullitt” continua dando o que falar. A clássica película de ação já foi esmiuçada inúmeras vezes por fãs de carros e de cinema. Sabe-se de detalhes a respeito da emblemática perseguição (ao redor da qual todo o resto do filme foi construído), do elenco e dos carros – nós mesmos temos um belo guia que você pode conferir aqui.
O que não se sabe é o paradeiro do outro astro do filme, além de Steve McQueen: o Ford Mustang 1968 do protagonista Frank Bullitt, com sua icônica pintura verde, seu visual sem frescuras e seu motor preparado para encarar o Dodge Charger dos vilões. Quer dizer: não se sabia até agora.
Nos últimos dias, chamou a atenção da internet. Um usuário que atende por “Fede Garza” postou imagens daquele que seria um dos dois carros que foram usados nas gravações, e as evidências de que se trata de um legítimo Bullitt são bastante convincentes.
Para entender esta história toda, porém, é preciso contar um pouco sobre os carros usados em “Bullitt”.
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Steve McQueen estava em uma ótima fase quando “Bullitt” começou a ser produzido. Ele havia acabado de estrelar em “Crown, o Magnífico” (The Thomas Crown Affair) e abriu sua própria companhia, a Solar Productions, para ter mais independência em seus filmes. Logo de cara, ele conseguiu assinar um contrato com a Warner Bros para a produção de um filme policial baseado no romance Mute Witness, do autor americano Robert L. Pike. Foi de McQueen a ideia de aumentar a quantidade de perseguições no roteiro, e também de dar ao protagonista Frank Bullitt um Ford Mustang (há quem acredite que a Warner firmou um contrato com a Ford para que o Mustang fosse usado, embora isto jamais tenha sido confirmado). A opção pelo Dodge Charger para os vilões, evidentemente, se deu por causa do visual maléfico do Mopar.
A Solar Production adquiriu dois exemplares de cada modelo mas, para tornar as coisas mais simples, vamos nos concentrar nos Mustang. Os dois exemplares eram idênticos, pintados na cor Highland Green, e tinham números de chassi sequenciais: 8R02S125558 e 8R02S125559. Guarde estes números, porque eles são importantes.
Naquela época, o Mustang GT vinha equipado com o motor V8 small block 289 Hi-Po (identificado internamente como K-code), que deslocava 4,7 litros e era dotado de componentes reforçados para entregar 315 cv brutos. No entanto, o ano de 1968 trouxe consigo o auge da guerra da potência entre as fabricantes americanas, e por isso a Ford começou a oferecer o big block 390 (S-code), de 6,4 litros e 335 cv brutos.
Era um motor maior não apenas em deslocamento, mas também em dimensões físicas, e por isso a Ford precisou modificar consideravelmente a estrutura do cofre do Mustang para acomodá-lo. Com isto, o carro cresceu em largura em cerca de 6,5 cm, o que levou a uma reestilização relativamente sutil, mas que mudou a postura do pony car. O Mustang ficou mais musculoso e menos delicado, além de ganhar um caimento mais suave na traseira fastback (como detalhamos neste post especial). As bitolas dos dois eixos foram alargadas em duas polegadas e, além de garantir mais espaço para o motor big block, isso também contribuiu para a dinâmica do Mustang: ele rolava menos e ganhou mais estabilidade dos ângulos de cambagem nas curvas.
Ambos os carros comprados pela Solar Productions eram idênticos e equipados com o motor 390, devidamente preparado com comandos de válvulas mais agressivos, trabalho de fluxo nos cabeçotes, coletores de escape dimensionados e substituição do sistema de ignição e do carburador. Eles também foram devidamente reforçados para aguentar o ritmo frenético das filmagens, um trabalho que ficou a cargo de Max Balchowsky: as torres da suspensão foram reforçadas, molas e barras estabilizadoras mais grossas foram adotadas e amortecedores Koni com calibragem bastante rígida foram instalados.
Max também realizou modificações discretas no visual dos Mustang. Boa parte dos ornamentos (incluindo quase todos os elementos cromados, emblemas GT e o cavalinho na grade dianteira) foi removida, a face traseira e as molduras das lanternas foram pintados de preto, e as rodas originais foram substituídas por um jogo de Torq Thrust, da American Racing, de medidas 15×7 (maiores que as stock), calçadas com pneus diagonais de medidas GR70 15, a pedido do próprio McQueen.
Os dois carros tiveram fins ligeiramente diferentes durante as gravações. O primeiro, com chassi de final 8, foi o que mais sofreu nas filmagens – as cenas de ação mais difíceis, com saltos e direção arriscada, foram gravadas com ele. O outro, com chassi de final 9, foi o hero car, ficando com as cenas mais tranquilas, com closes e tomadas mais detalhadas.
O que se sabe a respeito de seu paradeiro: o hero car passou por três donos depois de sua participação em “Bullitt”. O primeiro, Robert Ross, o comprou logo que as gravações terminaram e o utilizou diariamente por pouco mais de um ano antes de vendê-lo a outro cara, segundo o próprio contou a jornalista americano Brad Bowling. Sabe-se que este outro cara era um policial e que pagou muito barato pelo carro, e também que ele ficou com o ‘Stang por cerca de dois anos antes de vendê-lo a seu terceiro e atual dono, que está com o carro até hoje. Foi dele, aliás, que Steve McQueen tentou comprar o carro em 1977, três anos de morrer, mas teve a oferta recusada.
O consenso geral era de que carro com chassi de final 8 havia sido destruído depois das filmagens. Porém, o tópico no fórum Vintage Mustang pode ter desmentido esta teoria.
O usuário Fede Garza diz que o Mustang está no México já há duas ou três décadas, e que esteve destinado a ser transformado em um clone do Shelby GT500 Eleanor, o famoso carro do filme “60 Segundos” (Gone in 60 Seconds, 2000). Garza é dono de uma distribuidora de parafusos no México e diz que o dono da oficina que iria realizar o trabalho de customização foi quem forneceu o número de chassi do carro, além dos documentos que comprovam a origem do Mustang.
Garza, então, decidiu olhar o carro por conta própria e ficou surpreso ao constatar que o número de chassi batia com o do Mustang usado no filme. Ele também encontrou os reforços estruturais nas torres dos amortecedores, alguns buracos onde provavelmente foram instalados equipamentos de filmagem e um diferencial Ford de 9”, outra modificação realizada nos carros do filme.
Além disso, dá para ver que o carro está bem danificado. O assoalho amassado e uma das longarinas trincadas são evidências de que o carro foi realmente judiado.
Alguns dos usuários do fórum ficaram bastante entusiasmados com a possibilidade de este ser o legítimo Mustang usado por McQueen em Bullitt, enquanto outros estão mais céticos, dizendo que pode-se muito bem forjar um número de chassi.
Nós preferimos acreditar que é legítimo. De acordo com o tópico, aparentemente o dono desistiu de transformar o carro em um clone do GT500 Eleanor, e em vez disso vai restaurá-lo nos EUA para devolvê-lo à forma que tinha quando as gravações de “Bullitt” começaram.
Na nossa humilde opinião, isto é um erro: seu valor histórico (e possivelmente monetário) é muito maior do jeito que está – com as marcas de guerra feitas por Steve McQueen. Também achamos que esta história ainda vai dar pano para a manga e, por isso, vamos acompanhar de perto.