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O Agente, capítulo 2: O futuro de Mad Max não aconteceu

Se o Agente acordasse, em um dia qualquer, e percebesse que havia voltado 100 anos – talvez um pouco mais, talvez um pouco menos – no tempo, só teria uma preocupação: não passar às pessoas a impressão equivocada de que o futuro (no caso, seu presente) havia virado um deserto pós-apocalíptico. Ele conhecia Mad Max muito bem e, por mais que a ideia fosse fascinante, detestaria ser o portador das más notícias. Por sorte, não havia más notícias. Não nesse sentido.

Quase um século antes, no início dos anos 2020, uma preocupação começou a ganhar força entre a população – especialmente entre as pessoas que lidavam com informação e entretenimento: a perda da memória. Não a memória individual, o arquivo dentro do cérebro de cada pessoa – cuja capacidade de armazenamento ainda não havia sido descoberta, mas devia ficar em qualquer lugar entre 1 e 1.000 terabytes, segundo a ciência da época. Mas sim a memória coletiva, os registros físicos de todas as produções audiovisuais criadas pela humanidade.

Naquele momento da história, era evidente que registros físicos, tanto analógicos quanto digitais, sofreriam com a ação do tempo e deteriorariam-se, levando para sempre uma parte gigantesca da história humana. Milhares de músicas, filmes, imagens, animações, jogos, programas de computador e outras criações artísticas e funcionais seriam perdidas para sempre caso uma gigantesca iniciativa de backup não fosse realizada. E assim, por volta de 2035, esta ação teve início. Levou algumas décadas mas, ao final do processo, cerca de 85% de tudo (e este termo provavelmente nunca foi usado de forma tão precisa – tudo) pode ser salvo. Mad Max estava no meio. A trilogia original, que ainda era um clássico, o elogiado Fury Road, e todas as produções relacionadas.

(Outras obras não tiveram a mesma sorte – os 15% restantes desapareceram para sempre. Como um jogo de videogame que também lidava, entre outras coisas, com o colapso da humanidade como a conhecemos, e só havia sobrevivido em cópias físicas. Mas não havia meio de rodá-las. E talvez isto fosse uma boa coisa.)

O Agente gostava bastante de Mad Max, e realmente não conseguia entender seus próprios motivos. Mas, uma coisa era certa: se aquela hipotética viagem no tempo acontecesse, ele seria a primeira pessoa a avisar todos os demais que o futuro de Mad Max não havia acontecido. Sim, os combustíveis fósseis chegaram a níveis baixíssimos e seu uso comercial para alimentar motores a combustão tornou-se inviável. Mas uma alternativa logo surgiu: combustível sintético. Por ser artificial, o combustível sintético mais facilmente manipulável e garantia uma eficiência muito maior.

Foi o bastante para conceder algumas décadas de sobrevida aos motores tradicionais. Mas não mais do que isto: foi apenas o tempo necessário para que os principais empecilhos para a supremacia dos elétricos fossem superados: infraestrutura de recarga, tempo recarga e autonomia. Uma vez que os carregadores rápidos tornaram-se onipresentes como bombas de combustível nos postos, e que as baterias ficaram menores, mais leves e mais eficientes, o processo de transição para os carros elétricos aconteceu. Os portões foram abertos e os elétricos, que aguardavam como cães aguardam o início de uma corrida, estavam livres para dominar a indústria.

Então, veio a Era da Proibição. Tudo foi feito às claras e amplamente divulgado pela mídia – não instaurou-se o caos, como o futuro de Mad Max sugeria. Para a sociedade de forma geral, foi algo relativamente indolor. Claro, o modus operandi da humanidade mudou completamente. Reservas naturais foram criadas, outras foram construídas pelo próprio ser humano, e o acesso foi vetado a qualquer pessoa. O “pulmão do mundo” fora salvo, mas também tornara-se uma zona proibida – a influência da humanidade era devastadora, disto já se tinha diversas provas.

Proibidos, também, se tornaram os carros a combustão.

De cara, a sociedade – talvez assustada demais com a possibilidade de desaparecer para sempre – não resistiu. Dos males, o menor. Era aquilo ou a morte, dizia-se. “Ao menos, ainda podemos dirigir.” Isto, porém, durou pouco: não muito tempo depois, dirigir também se tornou tabu. O próximo passo foi proibir completamente o ato de dirigir.

Colecionadores que guardavam seus acervos de máquinas havia gerações mobilizaram-se para protegê-las da caça às bruxas. Gigantescos complexos subterrâneos foram construídos longe das cidades. Uma assinatura mensal lhe garantia uma vaga – bastava assinar um contrato e garantir que o dinheiro fosse enviado. Mas não era um valor necessariamente acessível, e não eram permitidos atrasos: no primeiro minuto seguinte ao vencimento da prestação, um sistema automatizado era acionado e seu carro, removido. Quem tinha mais dinheiro, tinha mais vagas – e não havia limite. Era um serviço extremamente concorrido. Muitos carros foram salvos desse jeito e atravessaram os séculos. Muitos outros foram perdidos pela mesma razão. E, claro, quem tinha os meios tratou de construir seu bunker particular.

Foto: Classic Driver

O negócio fora motivado pela esperança de que, quando o futuro da humanidade estivesse suficientemente garantido, a proibição seria revogada e, em um momento mágico, os carros seriam libertados suas prisões. Alguns complexos forneciam serviços de manutenção permanente por um valor extra, e davam aos clientes a certeza de que, quando pudessem dirigir novamente, seu carro (ou seus carros) estariam esperando, prontos para acelerar outra vez.

Mas não foi o que aconteceu. As normas de circulação veicular foram ficando cada vez mais restritas. A autonomia total dos automóveis nunca veio – a salvaguarda nunca deixou de fazer parte do projeto. Nos carros modernos, um sistema conectado à nuvem garantia que, caso alguém assumisse o comando do automóvel em qualquer momento que não fosse de extrema necessidade seria punido adequadamente. Qualquer carro que fosse incapaz de ter este sistema implementado foi sumariamente banido de circulação, sem exceções. Agentes seriam encarregados de interceptar e capturar quaisquer contraventores usando as mesmas ferramentas.

O Agente aprendeu tudo isto ainda muito jovem, mais ou menos na mesma época em que decidiu tornar-se um deles.

Primeiro, quando foi visitar o zoológico holográfico e aquela figura de jaleco branco, que curiosamente parecia ser bidimensional e tridimensional ao mesmo tempo, explicava tudo. “A natureza ainda existe, podem ficar tranquilos. Ainda teremos muitos e muitos séculos pela frente. Nossos antepassados conseguiram. Mas, infelizmente, nunca mais poderemos ver de perto as belezas do mundo.” Obrigado, hologramas.

Depois, quando começou a estudar o passado por conta própria. Ele não sabia explicar direito, mas tinha a impressão de ser o único que prestava atenção a estas coisas.

Mas é curioso como o cérebro de um ser humano nos estágios iniciais de desenvolvimento é seletivo. Ao mesmo tempo que entendia exatamente tudo o que o guia holográfico do zoológico explicava, ele não conseguia compreender porque havia árvores nas ruas. Elas não eram proibidas?

Ilustração: marijeberting/DeviantArt

Mais tarde, o Agente entenderia a diferença entre uma Reserva Natural Artificialmente Preservada e a vegetação perfeita que ladeava as ruas e passarelas da cidade. As reservas eram parte essencial da preservação da vida no planeta. Elas não eram proibidas: proibido era chegar perto delas. As árvores da cidade, de acesso irrestrito, eram mais decorativas do que qualquer outra coisa. E, bem, eram mesmo bonitas.

Era uma posição privilegiada, sem dúvida, a sua. Anos mais tarde, já adulto, ele aprenderia que morar na Cidade Branca, em um apartamento pequeno no 83º andar, era por si só um privilégio. Uma cidade imaculadamente limpa, bem organizada e extremamente funcional. Provavelmente era cidade mais disputada do quadrante. A que preço? Para começar, nenhum de seus vizinhos sabia de onde ele tirava seu sustento. Ele não tinha colegas de trabalho. Ao menos, não pessoalmente.

Aliás, era muito difícil que um Agente Rodoviário de Interceptação e Captura conhecesse, pessoalmente, outro Agente Rodoviário de Interceptação e Captura. Em alguns filmes que assistia em seu tempo livre, às vezes, apareciam pessoas que tinham uma função parecida com a sua – os policiais. O termo já não era usado havia muito tempo, mas os policiais pareciam se divertir quando entre um caso e outro, se juntavam no estacionamento para cuidar dos carros e jogar conversa fora. Ford Crown Victoria, Ford Taurus, Chevrolet Impala, Simca Chambord. Ele conhecia todos os nomes das viaturas e daria qualquer coisa para dar uma volta em uma delas.

Se nunca acontecesse, porém, sem lamentos. Sua profissão lhe garantia licença especial para dirigir – mais ninguém que ele conhecia podia dizer o mesmo. Tudo o que acontecesse além disso era um bônus. E isto sim era um grande privilégio.

A verdade é que, ele logo aprenderia, a vida no século 22 era melhor do que qualquer previsão que pudesse ter sido feita 100 anos antes. Se soubessem que o futuro estava a salvo, as pessoas que viviam na Terra certamente seriam mais otimistas. “Mas, se elas tivessem sido otimistas, talvez elas não tivessem salvo seu futuro”, o Agente refletiu. “Talvez eu não estivesse aqui, agora.”

“Talvez”, concluiu, “fosse melhor deixar que eles acreditassem no futuro de Mad Max.”

Esta última frase veio em voz alta.

“Comando não reconhecido”, respondeu o assistente virtual com sua voz sintetizada. Seu parceiro, seu companheiro de serviço. Às vezes, seu confidente. O Agente poderia ter escolhido um som mais natural, um sotaque familiar. Mas ele também achava importante ser lembrado, a cada interação, de que estava conversando com uma máquina. Além disso, aquela voz robótica carregava um confortável ar de nostalgia.

“Comando não reconhecido”, mais uma vez.

Claro que não. Era hora de voltar à realidade.

Era quase de manhã. Faltavam, literalmente, cinco minutos para o fim do plantão. Ao longe, o som mecânico de um carro começava a se fazer audível. Era uma das poucas certezas na vida do Agente: um motorista se aproximava. Não foi preciso mais que alguns segundos para que o Agente identificasse os oito cilindros.

rush de adrenalina foi imediato, o calafrio que começou na base da espinha e subiu até o pescoço, dividiu-se entre os braços e esvaiu-se pela ponta dos dedos. Era para aquilo que ele vivia. Já era hora!


“O Agente” é a série de ficção do FlatOut, criada pelo Dalmo Hernandes em um momento de particular inspiração. É também um projeto que já estava sendo ensaiado havia muito tempo, mas a melhor maneira de fazer qualquer coisa é… começando. Ele ainda não pode prometer nada, mas vai tentar produzir ao menos um episódio por mês. As palavras deste disclaimer podem mudar com o tempo, mas sempre vão deixar isto bem claro.