No mundo da música existe um fenômeno conhecido como “síndrome do segundo disco”. Quando um artista estreia com um sucesso arrebatador, ele acaba gerando no público uma expectativa muito elevada sobre seu próximo trabalho. Alguns artistas, pressionados, nunca mais conseguem atingir o brilhantismo da estreia. Outros se superam, e transformam em arte a pressão — e as dificuldades decorrentes dela — e voltam com um trabalho ainda melhor.
Essa “síndrome” é comum também em outras áreas. Em inglês ela é conhecida como “sophomore slump”, algo como “crise do segundo ano” em tradução livre, e usada para se referir ao desempenho de atletas e estudantes universitários, e à criatividade de músicos, cineastas, escritores e desenvolvedores de jogos. Afinal, realizar um grande feito uma vez, pode ser um mero golpe de sorte. Duas vezes? Talvez seja talento mesmo.
A McLaren também passou por isso. Melhor dizendo, ela ainda está passando por isso. Apesar dos carros “de rua” dos anos 1960 e 1970, seu primeiro carro de rua de verdade foi o F1, apresentado em 1992 e desenvolvido e produzido ao longo dos cinco anos seguintes. E ela chegou arrebentando todos os padrões logo de cara. Não houve uma linha crescente como a Porsche e a Ferrari tiveram. A McLaren estreou com um carro revolucionário, superior a tudo o que havia na época em todos os aspectos — há quem diga, por exemplo, que ele foi o primeiro “hipercarro” da história, bem antes do Bugatti Veyron. Afinal, foi ele o primeiro carro a mostrar que os 400 km/h não eram apenas um sonho, mas também uma possibilidade.
Cada aspecto daquele carro era especial. Desde a forma de projetá-lo, até as soluções técnicas e as metas do projeto. Pela primeira vez um supercarro era prático a ponto de levar três ocupantes e sua bagagem. O isolamento térmico do cofre era feito de folhas de ouro, o assoalho externo tinha dois exaustores para gerar efeito solo, extraindo o ar para reduzir a pressão sob o carro. E ele tinha o V12 mais potente feito para um carro de rua até então — o que fazia dele também o carro mais potente do mundo em seu tempo e o ajudaria a quebrar o recorde de velocidade máxima entre veículos produzidos em série em 1998, depois que um dos protótipos de desenvolvimento atingiu uma média de pouco mais de 386 km/h, só 14 km/h abaixo dos 400 km/h.
O McLaren F1 foi um carro tão revolucionário que, logo após o fim de sua produção, em 1998, o padrão de desempenho dos supercarros novos simplesmente recuou. Quando o McLaren F1 LM de 680 cv deixou de ser produzido, o carro mais potente a venda passou a ser o… Aston Martin Vantage V8 Le Mans V600, de 600 cv. Ele não chegava nem perto dos 386 km/h — a velocidade máxima era divulgada pela Aston como 320 km/h, mas não houve teste realizado. A aceleração de zero a 100 km/h era feita em 4 segundos — quase 1 segundo mais lento que o McLaren. Lamborghini Diablo VT, Porsche 911 Turbo, Ferrari 550 Maranello, todos precisavam de mais de 4 segundos e não passavam dos 320 km/h.
Quando a Aston Martin fez o carro mais potente do mundo… sem planejar isso
Como o Concorde, o McLaren F1 foi embora e não deixou um sucessor. O que talvez tenha sido uma boa providência, afinal. Imagine lançar um sucessor no instante seguinte à saída de cena do F1? Ao se unir à Mercedes, sua fornecedora de motores da Fórmula 1 na época (e também dona de 40% do Grupo McLaren), a McLaren tirou das costas o peso de fazer um sucessor à altura do F1. O Mercedes-Benz SLR McLaren era, de fato, um McLaren — tanto que era fabricado em Woking, na Inglaterra —, mas por direito era um Mercedes. E ele foi admirado e reverenciado muito mais como um Mercedes do que como um McLaren.
O sucessor de fato do McLaren F1 foi lançado somente 15 anos depois de seu fim, na forma do McLaren P1. E, novamente, a McLaren foi prudente e não estabeleceu uma conexão direta com o F1 — ele só foi mencionado uma única vez na nota oficial de lançamento, como referência para o tempo de aceleração de zero a 300 km/h do P1, que é “5,5 segundos mais rápido que o F1”. Ainda que o P1 fosse de zero a 100 km/h e de zero a 200 km/h mais rapidamente que o F1, e que também gerasse mais downforce que o F1, a McLaren não fez esse tipo de comparação. A única relação estabelecida foi o scoop no teto, mencionado como uma “homenagem” ao F1.
A McLaren também disse que, como o F1, o P1 estava chegando para redefinir os padrões de desempenho. E ele realmente fez isso. Não passava dos 350 km/h por que a McLaren, novamente de forma prudente, limitou a velocidade máxima, mas juntamente da LaFerrari e do Porsche 918 Spyder, o P1 foi um dos primeiros a quebrar a barreira dos três segundos na aceleração de zero a 100 km/h.
Além disso, a McLaren fez do P1 um carro diferente do F1. Ele não pretendia ser o legítimo sucessor do F1, mas um novo tipo de supercarro da McLaren — o ápice e a inauguração da Ultimate Series, planejada como a linha dos carros mais radicais da marca. E embora fosse diferente do F1, ele também trouxe novas tecnologias como o powertrain híbrido, aerodinâmica ativa e suspensão ajustável. Não eram exclusividade do McLaren, mas não por atraso no desenvolvimento, e sim por que seus concorrentes chegaram às mesmas soluções ao mesmo tempo. Nem sempre você está sozinho na pista.
Mas agora, em 2024, a McLaren lançou seu novo supercarro, o W1, e o colocou como um sucessor do P1 e também do F1 — a linhagem “1”, como disse a McLaren no material pré-lançamento. Mas depois de vez seus detalhes técnicos e especificações, fiquei com uma grande interrogação pairando no ar: o que faz dele um sucessor do P1 ou do F1? O fato de ser o topo-de-linha da Ultimate Series? Bem… o Senna também ocupou essa posição quando foi lançado. Assim como o Speedtail — que tem até mesmo a configuração de três lugares do F1.
Talvez a McLaren devesse ter seguido a estratégia de não associar nenhum carro diretamente ao F1 como seu “sucessor”. Quem sabe uma abordagem religiosa: o McLaren F1 é um Messias, e tudo o que veio e virá depois dele são seus discípulos, que seguem seus ensinamentos e imitam sua passagem na Terra. O P1 teve a inovação, o Speedtail teve a busca pela velocidade e a configuração de três assentos. Todos eles têm esse toque divino, abençoados pelo F1, mas jamais iguais a ele, pois só ele atingiu a perfeição. Pode soar exagerado, mas é muito melhor que tentar convencer o público de que o W1 é um produto com um significado semelhante ao do F1 e do P1.
Começando pelo nome “W1”. Uma péssima escolha. W é a letra da Williams, um M ao contrário. Não há sequer uma explicação convincente para este nome. F1 fala por si, e P1 significa Project 1 — ou seja: o projeto número 1 da marca. Mas W1? A McLaren diz que “o nome W1 celebra o mindset de Campeonato Mundial (World Championship, daí o W) da marca.” Sério, McLaren? Isso foi tudo o que vocês conseguiram para explicar a letra da Williams no supercarro considerado o sucessor do F1 e do P1?
Depois, o W1 tem um powertrain híbrido, mas ele é exatamente igual o do P1: um V8 biturbo combinado a um motor elétrico. É mais potente e mais moderno? Sim. Mas efetivamente é mais do que vimos há exatos 11 anos, em outubro de 2013 quando o P1 foi apresentado. Enquanto isso, a concorrência lança motores capazes de girar 10.000 rpm e tem até motores elétricos de fluxo axial nos planos.
A McLaren ainda menciona que o V8, embora tenha 4 litros como o V8 dos outros modelos, é totalmente novo, projetado para ser tão leve quanto potente, e que o carro usa soluções de baixo peso, como suspensão com componentes impressos em 3D, para obter a melhor relação peso/potência da história da marca. Só que ele pesa 1.399 kg seco, o que significa que ele é 4 kg mais pesado que o P1. Sim, ele é 1 segundo mais rápido que o P1 de zero a 200 km/h (5,8 segundos ante 6,8 segundos) e quase 4 segundos mais rápido que o P1 de zero a 300 km/h. Mas… é muito pouco para algo que se propõe a ser um sucessor tão mais evoluído.
E depois tem o visual do carro. Mais uma das 12433483245334 variações do tema estético inaugurado pelo 720S em 2016, há distantes oito anos. Sem contar que, visto de perfil, ele é muitíssimo parecido com o Senna, o que me faz pensar o quanto há de compartilhamento entre os dois carros. Um supercarro que se propõe a ser o topo da “Ultimate Series” precisa ser bem mais radical do que o W1 é. O Speedtail, por exemplo, foi uma grata surpresa com soluções ousadas de design e aerodinâmica. Onde está a novidade, o impacto do design do W1?
McLaren Speedtail: o sucessor do lendário F1 é um híbrido de 1.035 cv que chega aos 403 km/h
Aqui voltamos ao tema inicial desta pensata: quando você chega ao auge cedo demais, as expectativas sobre o que virá depois aumentam. Para não correr o risco de fazer um “segundo disco decepcionante”, a McLaren mudou o tema e surpreendeu. Duas vezes. Agora, sabe-se lá por qual razão, ela trouxe o F1 para o palco e jogou as expectativas lá no alto. Justamente com o carro menos inspirado e com o menor salto tecnológico e de desempenho da Ultimate Series. No fim das contas, para manter a analogia, o McLaren W1 é um disco é novo, com as mesmas músicas de sempre, agora tocadas de um jeito diferente. É uma banda cover de si mesma.