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O incrível Bianco V8 feito todo a mão | FlatOut Street

O quadro FlatOut Street se dedica aos carros preparados e customizados estrangeiros e nacionais, de todas as épocas e estilos.
São matérias especiais, feitas para serem saboreadas como as das clássicas revistas que amamos.
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Confesso que ao ver as fotos e os detalhes deste Bianco especial, imediatamente pensei que era um carro encomendado a alguma oficina de prestígio, por algum bilionário que entende de carro. Alguém cansado de Porsche e Ferrari, que queria algo especial com origens de estirpe, nas pistas, mas aqui mesmo no Brasil, seu país. E um cara disposto a pagar o que fosse por isso.

Afinal de contas, debaixo das linhas quase inalteradas de um Bianco, que originalmente tinha um chassi inalterado de Brasília, se esconde um chassi sob medida, um spaceframe tubular; o motor é um Audi V8 aspirado em posição entre-eixos; as suspensões são de competição, duplo A sobreposto nas quatro rodas, e atrás, coilovers remotos acionados por pushrods. Algo totalmente profissional, obviamente feito por gente que conhece do assunto. Tem até uma plaqueta com os dizeres: “Handbuilt by Eng. Marcelo Camargo – EngMotors”. Imaginei imediatamente um cheque em branco deixado nesta empresa, e um carro sensacional sob medida criado por ela, a um custo final inimaginável.

Ledo engano. Esta história, na verdade, é uma de gente como a gente; um entusiasta perseguindo um sonho por décadas a fio, até chegar nesta coisa positivamente incrível que podemos ver nestas fotos. Um carro que levou muito dinheiro de seu dono, claro, mas comparativamente pouco se olhando o seu tempo, suor, risos e lágrimas. Pouco também se olhando o resultado: um supercarro com um impecável pedigree de pista, em nível internacional, e simplesmente único. Um filho da mente e das mãos do engenheiro Marcelo Camargo. E uma obra de arte móvel que é tão incrível como inimitável.

 

O pedigree

Já contamos aqui no Flatout em detalhes a vida do genial Ottorino “Toni” Bianco, o criador dos magníficos Furia de competição dos anos 1960, e o Bianco de rua derivado dele. Mas vale uma rápida recapitulação, pois este carro criado pelo Marcelo percorre um arco que quase totalmente fecha o ciclo dessa história.

Depois de criar a berlinetta Bino Mark II Na Willys Toni Bianco se viu sem o apoio de um fabricante; a Willys foi comprada pela Ford e abandonou as competições. Vitório Massari, um dos sócios da Camionauto, contrata Toni para criar um carro de competição usando o motor do FNM 2150 nacional.

O carro que Toni cria nas oficinas da Camionauto seria sua obra prima. Uma carroceria de beleza ímpar e imortal, em um chassi de competição de primeira linha: um spaceframe de tubos pequenos soldados superleve e rígido ao mesmo tempo. O motor era central-traseiro. Chamou sua criação de “Furia”.

O carro se tornaria uma lenda em competição aqui no Brasil, não só por sua beleza e agressividades incomparáveis, mas também pela variedade de motores que o equipou, e os pilotos que o usaram. Este primeiro Furia tinha motor do FNM 2150 com dois Weber duplos, e 138cv a 7.000rpm em regime de competição. Era montado atrás do cockpit, acoplado a um câmbio de competição Hewland importado. Importados também eram os freios Girling a disco. Mas era só o primeiro carro.

Quantos existiram exatamente é uma incógnita, talvez alguns sejam um mesmo carro, com motor diferente. Mas acreditamos que foram seis. De uma forma ou outra, os outros Furia que apareceram em pista são os seguintes: Pedro Victor De Lamare, famoso por correr de Opala, competiu com um Fúria azul com um motor de quatro cilindros de Opala preparado com 170 cv. Jayme Silva compete em 1971 com outro carro azul: o Furia-BMW, com motor de quatro cilindros de um 2002, e sua grade em forma de duplo-rim na frente. O famoso Lobo do Canindé, Camilo Christófaro, aparece nas pistas com um Furia de frente alterada, e inicialmente um Ferrari V12 atrás do cockpit; aparentemente depois este mesmo carro receberia um Dodge V8 318 de Charger nacional.

Isso sem falar do mais lendário deles: o Furia-Lamborghini. Para adaptar toda a mecânica V12 transversal de um Lamborghini Miura acidentado, Toni teve que alterar o carro inteiro, que correu algumas vezes com Jayme Silva. Depois, conta a lenda, foi transformado em carro de rua, e muitos acreditam que ainda existe, escondido em alguma garagem na cidade de São Paulo. Uma besta mitológica (parecida com a Medusa? Não nesse caso) que só sai de noite, quando ninguém está pronto para vê-la.

Com o fim dos Furia de competição, e dos planos de fazer um GT de motor dianteiro para a FNM, Toni então pega a carroceria do Furia e adapta num chassi de VW Brasília, para produzir o carro em série. Nascia o Bianco, em 1976.

O Bianco nasceu em pista então, mas veio para as ruas de uma forma bem mais simples e prosaica; apesar de ainda interessantíssimo mesmo com mecânica VW, não era a mesma coisa que o Furia, que aterrorizou as pistas no seu tempo. Sempre foi algo belíssimo, sonho de muitos por isso, mas nunca trouxe seu pedigree de competição para as ruas. Até o Marcelo Camargo decidir fazer algo a este respeito.

 

O Bianco e o Marcelo

Há mais de 20 anos, Marcelo era um jovem que nem sabia direito o que era um Bianco. Mas ao descobrir um abandonado em sua cidade, se apaixonou perdidamente pelo carro. O design, claro, foi o que lhe fisgou; aquela cara de protótipo de competição dos anos 1960, cheia de curvas e ancas; a cabine estreita e avançada, lá na frente do carro. A sua baixíssima altura, sua largura aparente, seu minúsculo tamanho total.

O Marcelo é o de boné

O estado daquele carro não ajudava: estava com pintura fosca do tempo, e nada em ordem: motor ruim, carroceria feia, bancos rasgados. Mas o Marcelo não resistiu e o comprou. Rodou um pouco com o carro mesmo assim, feliz apesar de tudo, e já chamando atenção aonde quer que fosse. Diz ele: “Até hoje não sei se chamava atenção pela carroceria linda, ou o estado deplorável!”

Mas o carro tinha muito a fazer. E o Marcelo, desde cedo um fuçador que hoje faz de tudo, de galpões e móveis a carros inteiros, resolveu que o melhor era desmontar o carro inteiro e refazê-lo do zero. Hoje diz: “Maior burrada que alguém pode fazer é essa. Hoje aconselho: vai arrumando o que dá aos poucos, pois se desmontar vai ficar desmontado.” E, é claro, é exatamente o que aconteceu com o Bianco dele.

Cinco longos anos se passaram, com o carro completamente abandonado. Mesmo; carroceria na chuva e peças sabe-se lá onde, entulhando casa e garagem. Parecia que seria mais um daqueles carros que desapareceriam em meio a vegetação, voltando à natureza para nunca mais rodar.

Mas nosso herói de repente resolve fazer algo; finalmente restaura o carro, agora pintando-o de azul, e instalando um motor VW com uma preparação tradicional de sua região: aumento para 1.900 cm³, dois carburadores Solex 40, cabeçote trabalhado. O carro fica bonito e pronto, é dá muita alegria para seu dono; mas não era o suficiente. Diz ele “Era difícil do motor ficar redondo, esquentava, dava problema toda hora, bebia que nem Opala seis cilindros mas não andava tanto assim.”

Insatisfação, todos sabem, é a mãe da invenção. Paralelo a isso, o Marcelo tinha começado, por meio de seu mentor Rodolfo Perdomo (o “Lolo”), a trabalhar como mecânico em competição. Também começava uma faculdade de engenharia, tudo junto. O resultado é que trabalhou por anos em carros de Stock-Car, F3, F-Renault, e todo tipo de competição. Um longo aprendizado que o ensinou como funciona o mundo de alta performance de verdade.

Aprendeu a montar e desmontar carros de um dia para outro, a fazer acertos de pista e comportamento, a entender o que interessa e o que não interessa em alta performance. “Acredito que performance é do carro todo; meu Bianco tem uns 350 cv, e gente aí fala que o bom é 1500, com turbo, etc. Não é; cada carro tem um objetivo, e para o meu, os 350 são suficientes.”

Todo esse aprendizado o dá mais vontade de fazer algo que sempre sonhou, desde o início, para seu Bianco: um V8 central-traseiro. Para isso comprou um câmbio manual de Porsche Boxster, usado. Por sorte achou seu trambulador na concessionária Stuttgart, novo, a um preço menor que em desmanche. Os cabos vieram do Ebay americano.

Conseguiu um motor V8 Rover de alumínio e 3,9 litros. Este motor pesa menos de 200 kg, então é ideal para este tipo de coisa, apesar de girar baixo e dar ao redor de 165 cv apenas, original. Nessa primeira tentativa de Bianco V8, o Marcelo cria algo que chama hoje de “uma baita de uma ratoeira, uma desgraça para andar. Mas divertida pra caramba!”.

Faz um chassi a partir de suspensão traseira de Variant II e dianteira do Bianco, preparada; consegue fazer tudo funcionar, mas era, obviamente ainda algo precário. Um ponto importante na sua curva de aprendizado.

Em 2014, o carro está desmontado de novo, Marcelo decidido do que quer para seu Bianco: um V8 Audi. Mas começa a perder as esperanças de encontrar um quando uma pessoa lhe liga: um dono de ferro-velho que tinha consultado sobre o V8 quatro anos antes! Encontrou em São Paulo um A8 em estado de zero, que tinha batidas bobas na carroceria, mas o seguro tinha dado perda total. Tinha apenas 52.000 km. O motor V8 de 4,2 litros estava na mão agora.

É então quele começa a construir, do zero, o carro que vocês veem nas fotos. Não queria alterar a carroceria do Bianco: apenas o que foi necessário foi alterado. É ainda um Bianco, portanto; nenhuma admissão de ar é decorativa, tudo nele é funcional, por exemplo. Mas um com um chassi e mecânica todo diferente, moderno e inspirado em corrida, por baixo. Restomod? Tributo aos Furia? Furia modernizado? Tudo isso, e muito mais: criado com técnica de pista, é o que seria o Furia, se produzido hoje. Um carro fenomenal.

Mantendo o entre-eixos e carroceria do Bianco, e com motor/câmbio na mão, Marcelo fez todo o resto ele mesmo. O chassi spaceframe. As suspensões duplo-A sobrepostas de competição, com braços feitos a partir de tubos sem costura. Os dois tanques de combustível interligados na frente. O carro inteiro. É mole?

A carroceria não é a do seu carro original; é de outro, comprada só para tocar este projeto. Os freios dianteiros vieram de um Porsche Cayenne; os traseiros são sobra dos carros de competição que trabalhava: vieram de um Aston Martin de corrida, que doou também os semi-eixos traseiros.

O carro não demorou a ficar pronto, mas ainda muito trabalho foi necessário para chegar aonde está hoje. A saga para achar uma injeção que controlasse o motor moderno com comandos e coletor variável é gigante; inicialmente em 2014 teve que comprar, por uma fábula em grana, uma Motec usada, e encontrar alguém que soubesse programar mapas nela.

A saga para fazer o motor funcionar no carro, também extensa, que incluiu fabricação de um coletor novo a partir de dois usados pelo Marcelo, e uma limpeza de bicos milagrosa (e barata) em uma oficininha especializada em Gol quadrado em sua cidade. Hoje está com um módulo Injepro, e o funcionamento, finalmente, é perfeito. Mas definitivamente, um trabalho não de dias nem de meses, mas de anos. O motor dá 358 cv a 6600 rpm em dinamômetro. Em um carro de aproximadamente 950 kg de peso.

Mas imagine isso: o Marcelo fez o carro inteiro. Chicote elétrico. Estofamento. Escapamento. Paineis internos e de instrumentos. Ar-condicionado, usando um radiador de Gol “Bola” modificado, atrás do carro, com ventoinha elétrica. O carro tem alarme, trava e vidros elétricos. Marcelo fez a pintura da carroceria ele mesmo!

As rodas, que encontrou em uma loja em Curitiba, são japonesas Rays, de 18 polegadas, 11 polegadas de tala atrás e 9 na frente. Os pneus foram cuidadosamente escolhidos: tinham que ter diâmetro igual, e a largura da roda influi nisso. Um fornecedor da Achilles foi até ele, e montaram e mediram pneus até encontrar os ideais: 255/35 R18 na frente, 305/30 R18 atrás. O resultado é um carro fabuloso, criado durante 20 anos por um cara dedicado e com o conhecimento necessário para fazer tudo funcionar.

Mas e a tal Engmotors da plaqueta? Marcelo diz: “Então, sou eu e meu galpão. Durante esses mais de 20 anos, fui acumulando maquinário, e por isso poderia fazer outros carros com ele. Mas tenho um emprego na indústria (deixei competições há dez anos), é por hobby. Faço no meu tempo, sem estresse; se alguém quer prazo ou reclama de preço, tchau. Mas estou aqui, sempre que tenho tempo livre, fazendo coisas. Um rapazinho da cidade vem aqui me ajudar de vez em quando. Mas é essa a Engmotors!”

Muitos carros já passaram por este quadro do FlatOut, cada um deles uma história incrível. Mas acredito que essa é a mais louca de todas. Se não soubesse que não consigo entrar num Bianco, ia já para Campo Largo, no Paraná conhecer isso de perto. Um carro único, que nunca mais veremos igual. Um Furia de rua, renascido, gente! Algo simplesmente fabuloso.