Há 20 anos a Fórmula 1 corria com motores V10 aspirados, Michael Schumacher conquistava seu sétimo título, Fernando Alonso estreava na Renault, Ralf Schumacher e Juan Pablo Montoya dividiam a garagem da BMW-Williams e o Verstappen do grid era Jos, o pai de Max. Red Bull? Racing Bulls? Aston Martin? Ainda eram Jaguar, Minardi e Jordan.
Passados estes 20 anos, Jos se aposentou, criou o filho e o colocou na F1 — e ele já se tornou tricampeão. Montoya foi para a Nascar e depois para a Indy, a BMW abandonou a F1, Schumacher também “colocou” seu filho na F1, Alonso foi bicampeão, a Jordan virou Midland, que virou Spyker, que virou Force India, que virou Race Point, que virou Aston Martin. Os motores V10 foram trocados por V8 aspirados que, há mais de dez temporadas, foram trocados por motores V6 turbo.
Essa é a dinâmica da Fórmula 1 moderna — e não apenas dela, mas também do mundo moderno. Pense no seu celular de 2003, em como você assistia aos seus filmes e séries favoritos. Em como você lia notícias, em como estudava e no carro que você dirigia. Isso se você dirigia.
Mas houve uma época em que a Fórmula 1, assim como o mundo, foi um pouco mais estável. Imagine, por exemplo, um motor de corrida passar 16 anos e meio sem modificações em seu projeto básico. Dezesseis anos com o mesmo diâmetro, o mesmo curso, a mesma fundição e sem perder a competitividade. E quando digo competitividade, me refiro à possibilidade de ganhar corridas, porque este motor venceu 154 provas das 237 em que foi usado, levou cinco equipes ao título de construtores e nove pilotos a 12 títulos individuais. E ele ainda teve um primo econômico vendido no Brasil.
A essa altura você já deve ter sacado que estou falando do Cosworth DFV, não?
Foi com este V8 de três litros e comando duplo no cabeçote que Jackie Stewart conquistou seus três títulos, Emerson conquistou seus dois títulos, Nelson Piquet conquistou seu primeiro título, Jochen Rindt conquistou seu título póstumo e Mario Andretti, Alan Jones, Keke Rosberg e James Hunt conquistaram seus únicos títulos na F1. Além disso, o Cosworth foi, até hoje, o único motor a vencer todas as corridas de uma temporada — e isso aconteceu duas vezes: em 1969 e em 1973.
Como e por que ele foi tão superior aos demais? A resposta está no motor que deu origem ao DFV: um quatro-cilindros de 1,6 litro chamado FVA.
Cosworth FVA, o pai do DFV
Em 1965, quando o regulamento da Fórmula 1 foi modificado para adotar motores de três litros, Colin Chapman foi à Coventry Climax perguntar se eles fariam um motor para o novo regulamento. Voltou de mãos abanando.
Depois de pensar em alternativas, ele considerou o sucesso dos Lotus de Fórmula 2 e Fórmula 3 com os motores Cosworth-Ford FJ e achou que Keith Duckworth poderia desenvolver o 3.0 que ele precisava. O problema era bancar o projeto. Depois de percorrer os escritórios de outros fornecedores, Chapman acabou convencendo o vice-presidente de engenharia da Ford britânica a pagar o desenvolvimento de uma dupla de motores: um novo 1.6 de quatro cilindros para a Fórmula 2 e um V8 de 3 litros para a F1. Em outubro de 1965, a Ford assinou um cheque de £100.000 e entregou à Cosworth — algo equivalente a £1,6 milhão hoje em dia. Um quarto deste orçamento foi destinado ao desenvolvimento do motor de Fórmula 2.
Keith Duckworth já tinha o bloco do motor Kent 120E do Ford Cortina, mas ainda não tinha um cabeçote adequado para ele. As £25.000 bancaram o desenvolvimento de um novo cabeçote de comando duplo com quatro válvulas por cilindro, inclinadas em 40 graus. Foi assim que nasceu o motor Cosworth Four Valve type A, ou Cosworth FVA.
Com quatro válvulas por cilindro e o ângulo de 40 graus, o novo FVA produzia 38% mais potência que o antigo Coventry-Climax de 1,5 litro. O design do cabeçote permitia que as válvulas abrissem mais e por mais tempo, sem aumentar a carga sobre a mola de válvula. Isso acelerava o fluxo de ar, aumentando o volume admitido e o turbilhonamento da mistura no cilindro, que permite a queima mais rápida e aproveita melhor a energia química. Além disso, o ângulo também liberava espaço para o posicionamento ideal das velas, que ficavam centralizadas no topo, entre as quatro válvulas.
Não era apenas em relação ao Coventry-Climax que o Cosworth FVA levava vantagem, mas sobre praticamente todos os motores usados na F2 naquela virada dos anos 1960 para os anos 1970. Equipando Lotus, Brabham, Tyrrel e McLaren, o FVA venceu o campeonato de 1967 a 1971. Ele só não continuou porque as regras mudaram e passaram a exigir bloco e cabeçote usados em carros de série. A Cosworth então fez uma versão de produção do FVA que foi rebatizada BDA e usada no Escort RS1600, e convertida para a F2 por Brian Hart.
A superioridade técnica do FVA foi reconhecida por um de seus rivais: a BMW comprou um FVA e, com engenharia reversa, adaptou o design do cabeçote para criar o M12/6 usado nos campeonatos de Fórmula 2 de 1973 a 1982 com deslocamento de dois litros. Nessa mesma época, os alemães usaram o M12/6 como base para criar o M12/13 turbo que se tornaria o primeiro motor turbo campeão da Fórmula 1 na Brabham de Nelson Piquet.
A lenda dos engenheiros que urinavam em motores de Fórmula 1
Mas àquela altura dos anos 1980, um outro derivado do FVA já tinha conquistado a Fórmula 1 — e de forma muito mais consistente.
4+4=V8
Lembra que o contrato da Ford com a Cosworth consistia no desenvolvimento de um motor de quatro cilindros para a Fórmula 2 e um 3.0 para a Fórmula 1? Pois bem: logo após o início dos testes de bancada do FVA, Keith Duckworth começou a projetar o motor de três litros para a Fórmula 1. Desde que iniciou o projeto do FVA, ele já planejava fazer um V8.
O motor usava como base o projeto básico do FVA — podemos dizer que ele era formado por “dois FVA unidos”: tinha o mesmo diâmetro dos cilindros do FVA, porém com o curso reduzido de 69,44 para 64,14 mm para atingir o limite de três-litros do regulamento, e praticamente o mesmo posicionamento de válvulas, dutos de admissão e escape. O levante e abertura das válvulas eram os mesmos do FVA, assim como o posicionamento das velas na câmara de combustão.
Duckworth também conseguiu reduzir o ângulo das válvulas em 1 grau, otimizando o fluxo da admissão e, consequentemente, o volume admitido e o turbilhonamento, o que melhorou ainda mais a eficiência volumétrica de cada cilindro.
Como o V8 era basicamente dois FVA unidos pela base do bloco e separados por 90 graus, ele foi batizado de Double Four Valve, ou DFV. As diferenças para o motor de quatro cilindros ficavam por conta das molas de válvula duplas, anéis de pistão de aço inoxidável forjado, pistões com cabeça plana. O virabrequim era plano para facilitar o desenvolvimento do escape (devido à sua pulsação pela ordem de ignição).
A alimentação ficava a cargo do sistema de injeção mecânica da Lucas, que também usava uma bomba mecânica de 100 psi. A ignição também era Lucas, e tinha um sistema que enfraquecia gradualmente a centelha após um limite pré-estabelecido de rotações.
Atualmente esta combinação de elementos desde a admissão, passando pelo ângulo das válvulas, layout da câmara de combustão etc se tornou praticamente um padrão dos motores em geral, mas em 1967 (e até o fim dos anos 1970), era algo que somente a Cosworth tinha desenvolvido, e foi isso o que deu ao DFV tamanha superioridade. Os V12 eram tão potentes quanto ele, mas eram mais pesados. Os V8 eram tão leves quanto, mas era menos potentes.
O motor ficou pronto em abril de 1967, depois do início da temporada da Fórmula 1, e foi entregue à Lotus em maio. No mês seguinte, em 4 de junho, Graham Hill e Jim Clark alinharam seus Lotus 49 com o novo DFV 3.0 V8.
Graham Hill classificou-se na pole position, e liderou a prova até a 11ª volta, quando abandonou por uma quebra no motor, vejam só. Clark largou na oitava posição mas, quando Hill abandonou, já estava na segunda posição, herdando a ponta e conquistando a primeira vitória do DFV.
A superioridade do DFV era nítida no primeiro ano: das nove corridas disputadas com o motor, Clark e Hill conquistaram nove poles, e venceram quatro vezes. Em 1968, a Cosworth começou a fornecer o motor para outras equipes; Tyrrell e McLaren equiparam seus carros com o DFV e aumentaram as chances de vitórias do motor. Foram cinco poles e 11 vitórias em 12 corridas.
O ano seguinte viu pela primeira vez (e até hoje única) o domínio de um único motor: das 11 corridas disputadas na temporada, o DFV era o motor das 11 pole positions, e dos 11 vencedores. A única vez que o feito chegou perto de se repetir foi em 1973, quando o próprio DFV estava em 14 poles das 15 etapas, e foi o único motor a vencer naquela temporada.
Nos anos seguintes o DFV foi evoluindo, ganhando novos comandos de válvulas, sistemas de lubrificação e arrefecimento aprimorados, componentes reforçados e chegando aos 515 cv de potência em seu último ano de uso, 1983 — um aumento de 110 cv em relação à sua primeira variação, de 1967.
Apesar do aumento substancial de quase 30% de potência, ele já não era páreo para os motores turbo da época, que já beiravam os 750 cv. Ironicamente, entre eles estava o BMW M12/13, o motor que copiou o cabeçote do Cosworth FVA e — por que não? — do DFV.