Você sabia que um muscle cars mais emblemáticos de todos os tempos não tinha um motor V8 debaixo do capô? Pode isso?
Pode, se o carro não tiver capô. Ou se tiver um capô, mas o V8 estiver em outro lugar.
Não, senhor. Quer dizer, o motor era um V8, claro, mas ele ficava lá atrás, onde normalmente estaria o banco traseiro, debaixo do vigia traseiro, que o protegia sem escondê-lo do mundo. Era um Hemi debaixo de um vidro. Um “Hemi Under Glass”.
era seu nome – um Plymouth Barracuda criado pela fabricante de transmissões para divulgar seus produtos. E ele é tão incrível que não estamos falando de apenas um carro, mas de uma série deles, construídos entre 1965 e 1975 para divulgar os produtos da Hurst. E que bela divulgação!
Mais especificamente, a ideia por trás do Hemi Under Glass era promover os componentes que a Hurst fornecia para carros de arrancada, na categoria AF-X – precursora dos funny cars. Assim, naturalmente, o projeto foi concebido para atrair a atenção dos frequentadores de dragstrips.
O mentor de tudo isso foi o próprio George Hurst, por sugestão de Ray Brock, editor da revista Hot Rod na época. Para a dupla, fazia sentido: um dos princípios básicos da arrancada com muscle cars é a transferência de peso para a traseira no momento da largada, pressionando os pneus de trás contra o solo e, assim, aumentando sua área de contato com a pista e, consequentemente, a aderência.
Também foi de Brock a sugestão de usar o Plymouth Barracuda, rival para o Ford Mustang que havia acabado de ser lançado. Além de ter um visual marcante, o Plymouth Barracuda era um produto da Chrysler e, por isso, poderia ser equipado com o motor V8 Hemi 426 – o famoso “The Elephant”.
O motor, preparado para entregar pelo menos 600 cv, saiu do cofre e foi recolocado na parte traseira do carro. Era possível vê-lo quase todo pelo enorme vigia traseiro do Barracuda – que, ao contrário do que o nome sugere, não era de vidro, mas sim de acrílico.
O primeiro Hemi Under Glass foi construído ainda em 1964, para competir no ano seguinte. Quando o carro ficou pronto, porém, a Hurst descobriu algo inusitado: ele não parava sobre as quatro rodas quando estava em uma puxada. Não importava a forma como a equipe ajustasse a suspensão – instantes depois da largada, as rodas dianteiras decolavam e o Barracuda percorria toda a pista apenas sobre as rodas traseiras.
Era pura física: a dianteira ficou pelo menos 200 kg mais leve sem o Hemi no cofre – todo o peso foi para a traseira. No momento em que o carro saía da imobilidade, a transferência de peso era tão grande que o carro empinava.
Passado o susto inicial, Hurst e Brock tiveram um estalo: aquilo era perfeito! Mesmo sobre as duas rodas de trás, o Hemi Under Glass era rápido – fala-se em oito segundos nos 402 metros. Se não ganhasse corridas, ganharia ao menos a atenção do público. E era exatamente isso que a Hurst procurava.
A adaptação não era extremamente complexa: simplesmente construi-se um subchassi para apoiar o motor do carro e o câmbio na traseira. O câmbio automático Torqueflite, de três marchas, ficava sob o motor, e não havia cardã – o câmbio era ligado diretamente ao diferencial traseiro do tipo V-Drive, geralmente utilizado em embarcações.
O posicionamento do motor proporcionava uma visão curiosa por baixo do carro quando ele empinava. havia um peito-de-aço no assoalho e, logo atrás dele, os oito canos do escape direto, brotando das laterais – as saídas ficavam logo à frente das rodas traseiras. Também era possível ver o diferencial e os demais componentes mecânicos que, normalmente, não se vê. Não por acaso, a área foi explorada como espaço para patrocinadores, algo no qual o Hemi Under Glass provavelmente foi pioneiro.
Durante o ano de 1965, o Hemi Under Glass original foi mantido pela Hurst e conduzido por Wild Bill Shrewsberry, piloto que já havia trabalhado para Mickey Thompson, e por Bob Riggle, que também era mecânico e piloto de testes na própria Hurst. Os dois foram os únicos pilotos com colhões o suficiente para assumir a tarefa, e o fizeram com louvor no primeiro ano.
Em 1966, porém, Shrewsberry decidiu sair da empreitada e dedicar-se a sua própria carreira, deixando Riggle como piloto solo do Hemi Under Glass, que seguiu correndo em diferentes dragstrips ao redor dos Estados Unidos. Pelas imagens da época, acredita-se que, inicialmente, Riggle pilotava o carro sem qualquer visibilidade à frente – afinal, o para-brisa do carro apontava para o céu.
Em 1967, uma pequena janela foi aberta na parede corta-fogo para ajudar Riggle a enxergar alguma coisa. Naquele ano, o carro também recebeu um sistema de freios independente para as rodas traseiras, que permitia que Riggle esterçasse o carro aplicando os freios individualmente em cada uma das rodas. Na prática, era como um controle de estabilidade acionado manualmente.
No início da década de 1970, com a venda da Hurst para a Sunbeam, o patrocínio da fabricante de transmissões foi retirado, e o Barracuda passou a ser divulgado simplesmente como Hemi Under Glass.
Foi assim até 1975, dois anos depois da Crise do Petróleo os Estados Unidos, quando os muscle cars perderam apelo junto ao público e manter aquele show car na estrada já não fazia mais sentido. Mas não era só isso: também em 1975, Riggle sofreu um acidente durante uma arrancada com um funny car e, após isso, afastou-se das pistas por quase duas décadas.
É sabido que, embora muito se fale “no” Hemi Under Glass, foram feitos ao menos nove carros entre 1965 e 1975, um por ano, acompanhando as mudanças no Barracuda. O primeiro carro, que correu em 1965, já não existe mais – ele foi desmontado e suas peças foram usadas nos outros carros. Dos originais, sobraram quatro. Mas esta história, definitivamente, não acaba aqui.
Em 1992, estimulado por um revival na popularidade das corridas de arrancada nos EUA, Riggle decidiu construir um novo Hemi Under Glass, usando como base um Plymouth Barracuda 1968. Com ele, o piloto tornou a viajar pelos EUA com o carro – permitindo que aqueles que viram o carro de perto pudessem reviver suas memórias, e que novos entusiastas ficassem conhecendo aquele icônico muscle car.
Ao chamar a atenção da comunidade, Riggle acabou sendo procurado por um entusiasta que dizia saber o paradeiro do Hemi Under Glass original de 1967. Segundo ele, o carro estava em Montreal, no Canadá. Inicialmente, Riggle não acreditou no que ouviu – até que, meses depois, recebeu algumas fotos que acabaram com qualquer dúvida. Sem pensar duas vezes, Riggle fez uma oferta, comprou o Barracuda e o levou para sua casa no Arizona.
Ocupado com outros projetos, Riggle deixou o carro parado por oito anos antes que conseguisse dar a atenção que o Hemi Under Glass de 1967 merecia. Foi só em 2005, com patrocínio de um colecionador chamado Bill Sefton, que Riggle conseguiu restaurar o Barracuda. O acordo só tinha uma condição: o piloto teria de vender o carro a Sefton depois de algum tempo. E foi o que ele fez, meio que a contragosto, antes de voltar a correr com sua réplica.
Em 2013, porém, o jogo virou: Sefton foi acusado de sonegar impostos, condenado e preso. Seus bens foram confiscados, incluindo a coleção de carros – com as quatro unidades sobreviventes do Hemi Under Glass. Todas foram a leilão em 2014.
Àquela altura, Riggle – já perto dos 80 anos de idade – já havia até construído uma segunda réplica do Hemi Under Glass, que ficou pronta em 2010. O carro era equipado com um Hemi de deslocamento ampliado de 426 cm³ para 468 cm³ (de 7,0 para 7,7 litros) e, equipado com um supercharger, entregava nada menos que 2.500 cv para as rodas traseiras.
Foi com este carro que, em 2016, Riggle levou Jay Leno para uma demonstração no oval de Irwindale Speedway, que fica no sul da Califórnia. A ideia era que Leno pudesse riscar o item “andar de carona no Hemi Under Glass” de sua lista de coisas para fazer antes de morrer.
Só que não foi bem isso o que aconteceu: logo depois do wheelie, Riggle perdeu o controle do carro na hora de frear e capotou, com o Hemi Under Glass rolando sobre o próprio teto antes de repousar novamente sobre as quatro rodas. Os dois senhores saíram ilesos de dentro do carro, que saiu de Irwindale direto para a oficina, onde recebeu uma nova carroceria. Ao menos o incidente não aconteceu com um dos Hemi Under Glass originais.
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