É frequente, em tempos de paz, a ideia de que a guerra pode ter um legado positivo. Uma noção um tanto materialista, que só considera a conveniência da consequência, mas nunca o preço que foi pago por ela. É daí que vem a tradição de honrar veteranos nos países que venceram os conflitos. Os hot rods são um subproduto da guerra e, embora não seja imoral admirá-los, não nada ético considerá-los um legado positivo da guerra.
A guerra, no fim das contas, é a humanidade chegando ao seu extremo mais baixo, reduzida à barbárie em uma disputa pelo maior de todos os poderes: o poder de matar. É um pensamento forte e cruel, mas é a realidade. E se a guerra se baseia no poder matar, qual o valor de conceitos e objetos e economias e finanças quando a própria vida humana já está em baixa cotação? A guerra pode até nos entregar penicilina, direção hidráulica, satélites e internet, mas ela também tem o poder de nos tirar tudo isso em um piscar de olhos.
A corrida espacial é um bom exemplo. Ela foi consequência de uma disputa geopolítica travada entre Leste e Oeste, entre URSS e China contra os EUA. E ela foi abastecida pela tecnologia de guerra dos alemães. É quase um dilema moral: a corrida espacial ampliou os horizontes de humanidade, criou algumas das máquinas e tecnologias mais incríveis e nos entregou outra perspectiva sobre nossa própria existência, mas ao mesmo tempo desenvolveu armas de guerra com potencial para exterminar a humanidade.
Estas duas faces da guerra ficaram muito claras neste início de 2022, depois que um ataque russo à Ucrânia destruiu o maior avião da história da humanidade: o Antonov An-225. Um avião que foi desenvolvido durante a Guerra Fria, durante os resquícios da corrida espacial como resposta ao programa do ônibus espacial americano.
A corrida de ônibus
Depois de disputar a conquista da Lua, americanos e soviéticos negociaram uma missão conjunta, na qual o módulo de comando e serviço americano, Apollo, seria acoplado à cápsula soviética Soyuz. A missão acabou conhecida como… Apollo-Soyuz. A negociação foi feita em 1972, mas a missão mesmo só foi acontecer três anos mais tarde, em julho de 1975, data que, para muitos historiadores, é considerada o fim da corrida espacial.
De certa forma a parceria entre os antagonistas realmente encerrou a corrida pela conquista do espaço. A ação foi percebida como o início de uma nova era, na qual cosmonautas e astronautas passariam a colaborar nas missões espaciais, com o compartilhamento de tecnologias entre os dois países. Isso realmente acabou acontecendo, mas não sem uma última disputa entre os dois países, o que deu origem à era dos Ônibus Espaciais.
Não é bem o que você está pensando…
Os EUA começaram a desenvolver o Ônibus espacial na mesma época em que negociaram com os soviéticos a missão Apollo-Soyuz, em 1972. Os soviéticos, achando que os EUA preparavam um programa militar para vigilância e transporte de armamento bélico pela órbita terrestre, perceberam que precisavam se posicionar de forma contrária — e aqui é importante lembrar que eles já estavam colaborando para a missão Apollo-Soyuz.
Para os soviéticos o fato de o ônibus espacial ser capaz de levar 30 toneladas para a órbita terrestre e retornar com 15 toneladas era uma clara indicação de que eles planejavam instalar armas a laser no espaço para destruir os mísseis inimigos antes mesmo que eles pudessem se tornar uma ameaça.
A premissa soviética fazia sentido, porque estas armas só seriam viáveis se fossem testadas no espaço e trazidas para a Terra novamente para os ajustes pós-testes. Além disso, os soviéticos ainda vislumbraram o risco de os ônibus transportarem bombas nucleares para ataques-surpresa em mergulhos vindos do espaço. Sim: armas a laser no espaço para destruir mísseis, bombas atômicas em ônibus espaciais. Diga se o futuro do passado não era bem mais louco?
A questão é que diante de tudo isso, os soviéticos decidiram fazer um ônibus espacial para chamar de seu. E foi assim que, em meados dos anos 1970, eles copiaram a ideia dos americanos, porém com algumas diferenças. A maior delas é que somente o módulo orbitador seria reutilizável — no ônibus espacial dos americanos, os boosters de combustível sólido também eram reutilizáveis.
E é aqui que o Antonov An-225 entra em cena.
Igual, mas diferente
Apesar de o ônibus espacial soviético, que acabou batizado como Buran (a palavra russa para “nevasca”), ter um design parecido com os ônibus espaciais americanos, seu funcionamento era razoavelmente diferente. Os dois dependiam de veículos de lançamento, aos quais eram acoplados. Contudo, os boosters dos Buran ficavam junto com seus foguetes de lançamento, enquanto nos ônibus americanos, os boosters faziam parte do módulo orbitador e, por isso, podiam ser reutilizados.
Nas primeiras missões Buran o avião responsável pelo transporte dos foguetes de lançamento era o Antonov An-22, desenvolvido nos anos 1960 como uma aeronave militar de fuselagem larga que permanece até hoje como o maior turboélice já feito. Apesar do porte dos An-22 o comando militar de transporte aéreo da União Soviética se viu com uma limitação severa de capacidade de transporte áereo de cargas pesadas. A maioria dos 50 An-22 era usado para transporte tático e, como a CIA descobriu na época por meio de seus espiões, a União Soviética não tinha capacidade de transporte aéreo de carga pesada em longas distâncias — ao menos não comparável à dos americanos.
Diante disso, os soviéticos começaram a desenvolver um novo avião para transporte aéreo tático de cargas pesadas e longo alcance. Era o An-124, que seria construído paralelamente em duas fábricas: a Aviastar-SP, em Ulyanovsk, na Rússia, e na AVIANT, em Kiev, na Ucrânia. O desenvolvimento do An-124 começou em 1971 e a construção das fábricas, em 1973.
O An-124 ficou pronto entre 1979 e 1980 e voou pela primeira vez em 1981. Por fora ele era parecido com o Lockheed C-5 Galaxy, com direito à fuselagem dupla para ter uma porta de carga traseira — o que permite a abertura do compartimento sem afetar a integridade estrutural da aeronave.
Sua capacidade de carga era assombrosa: 150 toneladas, seis tripulantes e 88 passageiros. Seu compartimento de carga tinha 36 metros de comprimento por 6,4 metros de largura e 4,4 metros de altura e poderia abrigar mais 350 paraquedistas. Além disso, o compartimento tinha um guindaste capaz de erguer 30 toneladas e rebocar 120 toneladas.
Tudo isso resultou em um avião com 69,1 metros de comprimento, 73,3 metros de envergadura, 21,1 metros de altura e 214.000 kg com os tanques abastecidos e 402.000 kg de peso máximo de decolagem. E a propulsão usa quatro turbofans Progress D-18T de 51.000 lbf cada, o que permite ao An-124 voar a até 865 km/h, com velocidade cruzeiro variando entre 800 e 850 km/h a 12.000 metros, e com alcance entre 3.700 km com carga total e 11.500 km com 25% da capacidade máxima de carga. Era, de longe, o maior avião do mundo em seu tempo, mas não foi ele o encarregado de transportar os foguetes do programa Buran.
Em vez disso, quem assumiu a função foram os antigos Myasishchev VM-T Atlant, que foram desenvolvidos como cargueiros nos anos 1950 e atualizados nos anos 1970 para o serviço no programa espacial soviético transportando os ônibus Buran e seus foguetes de lançamento.
Acontece que, nos anos 1980, os soviéticos começaram a desenvolver um novo foguete de lançamento para o Buran, os novos Energia, que se tornariam os maiores foguetes de lançamento do programa. E para transportá-los, um novo avião foi especialmente desenvolvido.
O Antonov An-225
Usando como base o An-124, o An-225 foi alongado com extensões da fuselagem antes e depois das asas, que também foram alongadas para aumentar a envergadura. Como resultado, o compartimento de carga ficou com 43,35 metros de comprimento, mantendo os 6,4 metros de largura e 4,4 metros de altura do seu antecessor. O comprimento total da aeronave passou de 69,1 metros para 84 metros, enquanto sua envergadura foi dos 73,3 metros para 88,4 metros.
O aumento da fuselagem e do compartimento de carga — e a adição de mais dois motores nas extensões das asas — permitiu que a capacidade de carga fosse dos 150.000 kg do An-124 para 253.820 kg — totalizando 640.000 kg de peso máximo de decolagem. Com os motores extra, foi possível manter a velocidade de cruzeiro do An-124 (800 km/h) e a máxima de 850 km/h. As asas maiores permitiram uma maior capacidade volumétrica para o combustível e o alcance de voo passou a 15.400 km com os tanques cheios ou 4.000 km com 200.000 kg de carga.
Tudo isso também exigiu um novo trem-de-pouso, que usava 32 rodas — algumas com capacidade de esterçamento, o que permitiu que o An-225 desse meia volta em uma pista de apenas 60 metros de largura.
Diferentemente do An-124, o An-225 não tinha a abertura traseira em rampa, uma modificação que visava reduzir o peso da aeronave. Outra mudança foi a cauda do avião, que trocou o estabilizador vertical simples por uma cauda dupla com um estabilizador horizontal — fundamental para transportar cargas externas como os foguetes energia e os ônibus Buran, sua missão principal.
O Antonov An-225 voou pela primeira vez em 21 de dezembro de 1988 e serviu o programa espacial soviético por apenas três anos. Com o cancelamento das missões em 1991, o An-225 foi guardado em um depósito junto com uma segunda unidade incompleta. Os motores Progress foram removidos para uso nos An-124, que continuaram usados por sua nova operadora, a Antonov Airlines – uma companhia estatal formada pela recém-reformada Ucrânia após a dissolução da União Soviética.
Ao longo dos anos 1990, contudo, a demanda pelo transporte de cargas de grande porte deixou claro que a Antonov precisava de um avião ainda maior que o A-124. Em 2001 o An-225 foi tirado da hibernação e atualizado para receber seu certificado de aeronavegabilidade, o que aconteceu em maio de 2001.
Desde então ele vinha sendo usado para transportes de cargas especiais, uma vez que era o maior avião do planeta. Naquele mesmo 2001 ele fez um de seus voos mais pesados, transportando cinco tanques do exército ucraniano que somavam quase 210.000 kg — três T-72B, de 41.500 kg e dois T-80UD, de 42.500 kg.
Em 2004 ele quebrou o recorde mundial de peso transportado em um avião: o maquinário de um oleoduto que saiu de Praga, na República Tcheca e foi entregue em Tashkent, no Uzbequistão. A carga pesava 247.000 kg e exigiu a redução do combustível para manter o An-225 abaixo do peso máximo de 640.000 kg para decolagem. Por isso, apesar de ser um voo curto, o trajeto exigiu duas paradas para reabastecimento — uma em Kiev, na Ucrânica, e outra em Ulyanovsk, na Rússia.
O An-225 ainda detém outros três recordes de carga: a carga única mais pesada já transportada em um avião, a carga mais longa transportada em um avião e a carga mais volumosa já transportada pelo ar. O primeiro recorde aconteceu em 2009, quando o An-225 transportou um gerador de energia para usinas a gás da Alemanha para a Armênia. O gerador em questão era uma peça única de 187.800 kg, 16,23 metros de comprimento e 4,27 metros de diâmetro.
O outro, da carga mais longa, aconteceu em 2010, quando transportou duas pás de geradores eólicos da China para a Dinamarca. Cada uma das pás tinha 42,1 metros de comprimento.
O An-225 também fez transportes no Brasil em duas ocasiões. A primeira foi naquele mesmo 2010, quando trouxe três válvulas para a Refinaria de Paulínia, em São Paulo. Na época, o An-225 pousou em Guarulhos, que não tinha as alterações na pista para receber aeronaves tão pesadas e precisou de uma operação especial durante a passagem do Antonov.
Ele voltaria ao Brasil em 2016 para coletar um transformador elétrico de 182.000 kg que precisava ser levado de São Paulo a Santiago, no Chile. O An-225 desembarcou em Viracopos, onde recebeu o transformador e sua base que, juntos, somaram 182.000 kg — a segunda carga única mais pesada da história da aviação.
Seu último recorde de transporte foi uma missão nobre: o Antonov An-225 transportou 1.000 metros cúbicos de medicamentos para ajudar no tratamento de pacientes com COVID, em abril de 2020, no auge da pandemia na Europa.
“O Antonov An-225 foi destruído”
Tragicamente, depois desta missão (e de voos menores), o An-225 foi levado ao aeroporto da Antonov em Hostomel, na Ucrânia, para reparos. Enquanto estava estacionado, os russos invadiram o país e iniciaram a ofensiva para tomar o aeroporto. Depois de dois dias de combate (24 e 25 de fevereiro) os russos tomaram o aeroporto. Inicialmente o avião foi reportado como intacto, mas uma foto publicada em 27 de fevereiro mostrava o An-225 em chamas dentro de seu hangar, agora destruído.
A Antonov inicialmente se recusou a comentar os boatos, mas ainda em 27 de fevereiro uma declaração da Ukroboronprom, um consórcio das empresas de defesa da Ucrânia, confirmou a destruição do An-225.
Apesar dos danos, a Ukroboronprom disse que planeja reconstruir o Antonov An-225 com indenização dos russos. A restauração é estimada em US$ 3.000.000.000 e o prazo é de mais de cinco anos. Segundo a declaração, a indenização será cobrada porque a Rússia causou danos intencionais à aviação da Ucrânia e ao setor aéreo do país.
Dias depois, em 1º de março, uma nova foto mostrou a cauda do avião supostamente intacta, embora o restante do avião estivesse severamente danificado. Mais recentemente, em 4 de março, uma cobertura do canal russo Channel One mostrou imagens locais com a aeronave destruída e grande parte da seção anterior da aeronave destruída.
É o provável fim de uma das máquinas mais incríveis já construídas pela humanidade — tragicamente também destruída pela humanidade. Ou pela falta dela.
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