O quadro FlatOut Classics se dedica ao antigomobilismo e aos neocolecionáveis (youngtimers) estrangeiros e nacionais, dos anos 20 ao começo dos anos 2000. Carros originais ou preparados ao estilo da época.
São matérias especiais, feitas para serem saboreadas como as das clássicas revistas que amamos.
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Feito com as próprias mãos
Ricardo Landi é um cara que tem o automobilismo no sangue. Não é um eufemismo e seu sobrenome entrega isso: ele é sobrinho-neto de Francisco Sacco Landi, o lendário Chico Landi. Foi natural, portanto, que o jovem Ricardo se interessasse pelos automóveis e, a certa altura, desejasse passar a vida ao redor deles e, claro, ao volante deles. Correu de kart, de monopostos e até testou Fórmula 1, mas fez carreira mesmo no turismo como piloto e instrutor. Conheceu pilotos de diversas categorias, já foi a Le Mans e Daytona. Conhece os principais circuitos brasileiros de olhos fechados, dirige os carros mais legais que o dinheiro pode comprar e cuida deles quando não está ao volante em um circuito.
Então… com que tipo de coisa um cara como ele sonha? Com algo que não pode ser comprado. Não por seu valor, mas pela raridade. Landi sempre gostou do Porsche 550 Spyder, mas só fizeram 90 deles. E isso foi há 65 anos.
E como eram carros de corrida, não restaram muitos. Um deles, talvez o mais famoso de todos, foi destruído no acidente fatal do ator James Dean em 1955. Um deles também foi destruído por aqui, no Brasil, e acabou sendo sucateado para a construção do Fitti-Porsche. No fim das contas, não restam muito mais de 80 destes. Isso se a conta chegar aos 80. E eles foram os primeiros Porsche a cruzar a linha do milhão de dólares e já chegaram à casa dos US$ 4.900.000. Não basta, portanto, ter o dinheiro para comprar. É preciso antes encontrar um à venda. Então como conseguir um desse no Brasil?
Bem… a opção mais fácil (ou menos difícil…) é fazer um com suas próprias mãos.
Você quer o carro do Rubinho?
O ano era 2003. Landi topou com um anúncio de jornal (lembra disso?) sobre um fabricante de réplicas de Porsche 550 e Shelby Cobra em São Bernardo do Campo. Na época já havia as réplicas da Chamonix, que começou nos anos 1980 justamente com sua leitura do 550 Spyder, mas elas já eram caras e pouco acessíveis para um cara de 23 anos como Ricardo. Com o anúncio na mão, ele entrou em contato e se meteu nos cafundós de São Bernardo do Campo para encontrar seu Porsche 550.
Ao chegar, encontrou uma oficina meio desajeitada e um 550 de fibra no meio do mato alto em um terreno baldio, vizinho à oficina. Aquele era a tal réplica anunciada no jornal. Em seguida, Landi descobriu que o preço cobrado era maior do que ele imaginava. Mas, por acaso, ele tinha uma carta na manga para a negociação.
No fim dos anos 1990, Ricardo comprara um Fórmula Ford 1600 do final dos anos 1980, um chassi Minelli, com o motor CHT 1.6 usado pela categoria. Por acaso aquele era o carro #11, com a pintura da Arisco, que Rubens Barrichello usou na temporada de 1989 da Fórmula 1. Na época, em 1998, foi criado o Paulista de Fórmula Ford, que corria com estes carros antigos da Fórmula Ford e F-3 com motor 1.6 como uma categoria acessível de monopostos. Ricardo comprou o carro usado e foi disputar o campeonato. Foi vice-campeão, mas ao final da temporada seguinte a categoria foi extinta e o carro, sem ter onde correr, acabou guardado na garagem.
Então você está em 2003, louco para começar a realizar o sonho de ter um Porsche 550, não tem dinheiro para comprar a réplica, e tem um Fórmula Ford inutilizável na garagem. O que você faz?
Ricardo colocou o Fórmula na negociação: “Eu tenho um Fórmula Ford do Rubens Barrichello em casa. Dou ele para você, e você me dá o Porsche 550.” O homem relutou, mas Ricardo conseguiu convencê-lo a não apenas fazer a troca, mas também a buscar o Fórmula Ford e a levar o Porsche 550 até São Paulo.
Sem o carro de Rubinho, mas com o Porsche 550, ele começou a realização do sonho.
O jeito certo
Desde que comprou a carroceria, Ricardo pretendia fazer sua réplica com a máxima fidelidade possível ao original. É claro que o motor Furhmann não seria possível, assim como a carroceria de alumínio feita à mão. Mas o restante poderia ser reproduzido ou comprado. E assim foi feito.
Logo após a compra da carroceria, Landi começou a procurar um câmbio e o conjunto de suspensão do carro. Ambos são os mesmos do Fusca: braços oscilantes na traseira, travessa com barra de torção na dianteira. O câmbio também era o mesmo, porém na posição contrária, instalado atrás do motor. Além disso, ele também procurou as rodas e pneus. “Com tudo isso, mais a carroceria, eu consegui começar o chassi”, explica Landi.
Sim: o chassi é próprio, fabricado na garagem com tubos e soldas, reproduzindo o desenho usado pela Porsche, especialmente no berço do câmbio e na montagem das suspensões, algo que a maioria dos fabricantes de réplicas não repete por uma questão de velocidade de produção. “Alguns chassis parecem um portão com o motor em cima. Não têm as curvas do original. Este eu fiz olhando as fotos e copiando”, diz Landi.
Depois, com o chassi pronto, Landi começou o segundo processo que deixou sua réplica tão diferenciada: a substituição de fibra de vidro pelo alumínio, e a construção de partes de alumínio, como no carro original. A carroceria foi modificada na base de apoio do capô dianteiro, capô traseiro e assoalho do bagageiro, além de parede corta-fogo, assoalho e reforços estruturais. Somente a “casca” é feita de fibra.
O trabalho foi feito por seu pai, Roberto Landi, que também foi piloto e teve oficina por toda a sua vida. Ricardo mostrava como as peças precisavam ser, o pai moldava as chapas, e Ricardo as rebitava na carroceria e no chassi, como no 550 Porsche. “Com o alumínio deixei o carro mais próximo do original e também muito mais rígido pois o alumínio está rebitado tanto na carroceria quando no chassi”, explica.
O substituto do Fuhrmann
Um motor Fuhrmann não é algo que você encontra no eBay, compra no cartão de crédito e pede para a DHL entregar em seu endereço brasileiro. Atualmente é um motor de US$ 300.000 (sim, cinco zeros, seis dígitos, trezentos mil dólares). Evidentemente não era algo que Landi pretendia usar em seu 550 Spider. Apesar disso, você pode fazer um boxer Volkswagen com potência próxima do motor Fuhrmann, que tinha 110 cv em sua primeira versão e chegou perto dos 130 cv nas versões mais desenvolvidas.
Landi então comprou um bloco de alumínio da AutoLinea, pistões Mahle de 94 mm, virabrequim cursado de 79 mm, comando de válvula com maior levante, cabeçotes com molas duplas e válvulas maiores. O resultado é um deslocamento de cerca de 2.100 cm³ e potência estimada em 130 cv. As tampas de válvula têm a marca Porsche gravada como nos motores originais da marca.
A alimentação do motor é feita por um par de carburadores Dellorto 40, com bomba de combustível elétrica. A única concessão à modernidade feita por Landi neste projeto é o sistema de ignição MSD, que usa bobina e distribuidor eletrônico, com velas de Iridium. O motivo? “Bato a chave e ele pega de primeira. Não fica aquele sofrimento de carro antigo, girando o motor sem ligar”, explica Landi.
O câmbio é do Fusca, porém com coroa e pinhão 8×31, mais conhecido como “câmbio de SP2”, porém com um diferencial com bloqueio em 70% para melhorar a tração — também uma característica do 550 Spyder. A embreagem é hidráulica, mas os freios são a tambor nas quatro rodas (com dutos de ventilação como os Porsche), com o cubo de cinco furos dos Volkswagen e Porsche dos anos 1950. As rodas têm 15 polegadas de diâmetro, com tala 4,5 na dianteira e 5 na traseira, medidas originais do 550. Os pneus são os clássicos Pirelli Campeão Supremo 5.60-15 P-671.
Sai Lil’Bastard, entra Urban Outlaw
O 550 ganhou vários detalhes originais dos Porsche da época. Alavanca do freio de mão, emblemas, volante banjo e alguns adesivos. O visual seria complementado pela pintura do número 130 com o nome “Lil’Bastard”, exatamente como o 550 de James Dean. A superstição do “seo” Roberto, contudo, convenceu Ricardo a mudar a pintura do carro.
Afinal, o Porsche de James Dean, apesar da fama pelo ator-piloto, também tem a fama de ser amaldiçoado. “O cara morreu no carro”, disse o pai a Ricardo. Parecia mesmo mau-presságio, então ele acabou convencido a mudar de ideia.
Na mesma época, em uma viagem aos EUA, Landi conheceu Magnus Walker, talvez o mais notório colecionador de Porsche da atualidade. Durante a conversa fez amizade com o “fora-da-lei urbano” e, ao voltar para o Brasil, decidiu homenageá-lo com a pintura de seus Porsches: o capô vermelho, o número 277 e a assinatura “Urban Outlaw”. Magnus até publicou uma foto do 550 de Landi em suas redes sociais.
14 anos
Há sete anos, em 2014, Landi começou a contar a história do Porsche no Project Cars do FlatOut. Na época o carro ainda não estava concluído. Levaria outros três anos para que o 550 Spider finalmente ficasse pronto. Iniciado em 2003, concluído em 2017. Landi tinha 23 anos quando começou o carro, 37 ao concluí-lo. Começou com pouco mais de 20, terminou com quase 40. É o projeto de uma vida — até por que, dizem, a vida começa aos 40.
Também é um exemplo concreto de como fazer o carro dos sonhos é bem diferente daqueles projetos da TV. O processo é lento, as prioridades do dia-a-dia, da família, do trabalho, da vida real em si, colocam o carro em segundo ou terceiro plano. Mas também é um teste que coloca a paixão pelo carro à prova. Quanta gente desiste de seu projeto diante do primeiro revés? Decide vender tudo depois do terceiro ano? Quantos de nós mudamos de vida, adquirimos novos hábitos e novos gostos em uma década?
Passar 14 anos construindo o carro dos sonhos pode não parecer, mas é um prazo mais do que aceitável quando tudo o que você tem é a vontade e a habilidade. Primeiro, porque este projeto nasceu numa era anterior à internet social. Não dava para entrar no Google Imagens e digitar “chassi Porsche 550”, procurar a imagem em alta resolução, fazer uma impressão ampliada e copiar com aço e solda. Também não era simples acessar o eBay e comprar o que era preciso, como os emblemas, instrumentos, cintas do capô e alavanca do freio de mão.
E quando você está construindo o carro — e não apenas montando-o — cada parafuso pode ser um problema. “Você pega um parafuso e prende aqui. Mas não é só prender aqui, porque o parafuso não pode tocar tal parte, ele fica muito longo, a rosca é curta”, explica Landi.
O esforço, contudo, recompensou: o carro é confundido com um modelo original com certa frequência, e o conjunto ficou bem acertado, reproduzindo com fidelidade a experiência de se guiar um Porsche dos anos 1950. Landi conta que não pretende usar o carro em track days nem participar de provas com ele. “É muito risco”, conta. O carro é mais usado para passeios aos fins de semana, com uma tocada mais inspirada ao longo do caminho e, no máximo, participará de ralis de regularidade só para manter o carro em seu habitat natural, a pista de corridas. Depois de construir seu carro dos sonhos com as próprias mãos, quem poderá dizer que ele está errado?