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O que achamos do filme “Ferrari”?

Pode ter sido a demora no lançamento em relação aos EUA e Europa, mas também pode ter sido o verão e o carnaval no meio do caminho, o que podemos dizer com alguma certeza é que “Ferrari”, a cinebiografia de Enzo Ferrari, não foi aguardado como um outro capítulo de sua história, contado em “Ford vs. Ferrari”. A rivalidade, afinal, parece ser mais atraente que um drama pessoal que tem as corridas como pano de fundo.

É disso que trata o filme “Ferrari”, do diretor Michael Mann, com Adam Driver no papel de Enzo e Penélope Cruz como Laura Ferrari, sua esposa. Ambientado em 1957, ele retrata um conflito interno de Enzo Ferrari depois da morte de seu então único filho legítimo, durante sua relação extraconjugal com Lina Lardi, mãe de seu segundo filho, Piero, e com a sucessão de mortes de pilotos em seus carros, em um dos momentos fundamentais da história e do mito Ferrari.

O recorte histórico foi narrado pelo jornalista americano Brock Yates (o mesmo que criou a Cannonball Run) no capítulo 14 de seu livro “Ferrari: o homem por trás das máquinas”. Nós já contamos a história real nesta matéria e, com ela praticamente memorizada, fomos ao cinema nesta última quinta-feira (22), quando o filme finalmente estreou nos cinemas de todo o Brasil para ver como a história foi adaptada para a telona.

Você pode prosseguir com tranquilidade, pois evitamos spoilers — mais adiante teremos outras matérias que irão abordar detalhes do filme,  mas vamos esperar vocês assistirem antes de começar a comentar. Enquanto isso, fique com as avaliações do Leo e do MAO.


 

“Ferrari” foi um filme difícil. O diretor Michael Mann começou a trabalhar no projeto logo após o lançamento do livro de Brock Yates, em 1991, mas coisas só começaram a se desenhar por volta do ano 2000, e so começaram a se tornar concretas em 2009. Mudaram os produtores, ao menos três atores recusaram o papel de Enzo Ferrari — Robert De Niro, Christian Bale e Hugh Jackman —, o próprio diretor e os protagonistas aceitaram um cachê reduzido para que o filme fosse finalizado, e boa parte do orçamento veio de investimentos privados, sem um grande estúdio por trás. Para se ter uma ideia, a produtora principal, STX Films, só foi fundada em 2009.

Mesmo assim o filme saiu e, talvez, o tempo tenha feito bem à produção. Adam Driver não é o Enzo Ferrari perfeito — ele chega a ser frio mesmo nas cenas em que é mais destemperado —, mas os estereótipos de chefão italiano e os trejeitos mais conhecidos do velho comendador ajudam a te convencer de que aquele é mesmo o sr. Ferrari. A escolha de Penélope Cruz e Shailene Woodley como as mulheres de Enzo foi generosa com a juventude e a beleza, mas isso já era esperado.

Depois tem os carros. Todos eles legítimos ou réplicas impecáveis. Os modelos exatos, com a numeração correta das corridas, ronco de motor real, barulho de V12 antigo de corrida. E para pilotá-los, a produção não poderia ter feito uma escolha melhor: boa parte dos pilotos são interpretados por pilotos reais. Lembra do Ben Collins, o Stig original do Top Gear? Ele é Stirling Moss. Marino Franchitti é Eugenio Castellotti. Derek Hill é Jean Behra e Patrick Dempsey, o ator-piloto/piloto-ator foi impecável como Piero Taruffi. Até o piloto de testes Marc Gené faz uma ponta como um piloto de testes que está acertando o carro do príncipe do Bahrein.

O roteiro faz algumas concessões à realidade (licenças poéticas), mas em doses moderadas e apenas para temperar o drama real. Os fatos são, quando não são extremamente fidedignos, são baseados em eventos reais com alterações pragmáticas, que existem apenas para facilitar a narrativa no tempo limitado de um filme. Também por isso alguns eventos anteriores e posteriores foram encaixados neste roteiro.

Isso, contudo, é algo que só nós, entusiastas e aficionados pela história do automobilismo vamos reparar. Um filme comercial — especialmente um filme planejado há 30 anos — precisa ser viável e encantar e convencer o grande público. E ele convence, conversando com o público entusiasta e com o público “desprevenido” na mesma medida.

No elenco, o grande destaque é a atriz Penélope Cruz, no papel de Laura Ferrari. Sua história é sempre contada en passant, mas dona Laura teve um papel fundamental naquele momento crítico da Ferrari e o desempenhou com pulso firme mesmo após perder seu filho e seu casamento. Foi sua gestão firme, aliás, que causou a “Grande Debandada” — situação quase destruiu a própria empresa em nome da honra de sua esposa.

Como uma disputa entre funcionários e a esposa de Enzo quase matou a Ferrari

Quanto à produção, há altos e baixos. As locações são estupendas — e nem poderia ser diferente: estamos falando do interior da Itália, com seus panoramas bucólicos irretocáveis alternando-se com edificações milenares das cidades romanas. Até mesmo os marcos de pedra, indicadores de distância das estradas da Mille Miglia foram lembrados.

Os carros, já falei mais acima, também são um dos pontos altos: são os modelos corretos da época, com roncos naturais, pilotados com naturalidade (é o que acontece quando se tem pilotos reais como atores). Também os carros, contudo, trouxeram minha única decepção com o filme.

Os acidentes, todos criados por computação gráfica, foram exagerados na dinâmica — em ambos o carro decola à altura do topo dos postes e a representação gráfica é um pouco exagerada. Algumas cenas flertam com o “gore”, algo que apesar de realista, achei desnecessário — especialmente devido à qualidade gráfica, que beirou o caricato em alguns momentos, tornando se meio grotesco, meio repulsivo. Chocar e impressionar, tudo bem. Mas ser grotesco não é legal.

O fim do filme me pareceu um tanto apressado, e também é a parte onde ele faz mais concessões poéticas. A história, apesar de emocionalmente densa, terminaria bem, mas somente depois de alguns anos e não logo ali, durante o turbilhão de emoções que acompanhamos nas pouco mais de 2 horas. Mas, de novo, um filme comercial precisa conquistar o público e a solução do diretor e do roteirista para o final é bem satisfatória e, mais uma vez, modifica sutilmente a realidade apenas por uma questão pragmática.

“Ferrari” não é um filme sobre automobilismo, mas um drama baseado na história da família Ferrari, que, por acaso, tem uma equipe de corridas e uma fábrica de esportivos. Como filme de automobilismo, não chega perto de “Grand Prix”, de John Frankenheimer, mas também não deve nada para Ford vs. Ferrari — especialmente quando se trata dos carros e da pilotagem. Já como um drama que envolve automobilismo, não há absolutamente nada que o desabone, e embora não seja um clássico instantâneo, é um daqueles filmes que a gente vai colocar na lista de favoritos para rever de vez em quando. (Leo Contesini)


 

Certamente não entrei na sala de cinema preocupado com spoilers. Devo ter conhecido esta história pela primeira vez há 40 anos; o livro que inspirou li há mais de 30; tenho mais uns três livros em casa que contam essa mesma história de outra forma. Não, meu medo era outro: que Hollywood arruinasse a história original. Quando se conhece algo detalhadamente e se vai ver um filme sobre o assunto, é este o medo.

Tenho a dizer que meus medos eram completamente infundados, graças a Deus. Sim, claro, há bastante ficção como sempre, o principal e óbvio uma ainda deliciosa Penelope Cruz, capaz de inflamar o desejo sexual de um Enzo já com 59 anos de idade. Não, Laura Ferrari de verdade em 1957 não é nada parecida com a atriz espanhola, mesmo Penelope sendo hoje uma senhora de 49 anos. E Lina Lardi também não é Shailene Woodley, claro. Um filme de Hollywood pode ser completamente fiel à realidade se quiser, mas as pessoas inexplicavelmente são 248614162 vezes mais bonitas. Sempre!

Jogo dos 7549387 erros: qual Laura Ferrari é a certa?

Há outras coisas que de propósito foram colocadas lá e que simplesmente não existiram; fatos reais foram movidos cronologicamente para muito antes de quando apareceram também. Um exemplo claro: Luigi Musso sumiu completamente da história como se não existisse. Devemos detalhar tudo isso em breve, essas diferenças entre fato e ficção, em outra matéria; aqui basta dizer que a história é extremamente fiel à realidade. Certamente mais até que Ford vs Ferrari, ainda que no geral, a história de Shelby e Miles seja um filme muito melhor.

O que gostei foi isso, na verdade, a fidelidade à história, e ao livro que originou o roteiro. Quase todos os personagens aparecem. Carlo Chiti, o engenheiro-chefe de competição da Ferrari na época, tem poucas participações, mas está lá, e o ator Michele Savoia fisicamente é parecido. Papel maior tem Sergio Scaglietti, então fazendo a 250 TR de 1958 secretamente, amigo e confidente de Enzo, interpretado por Lino Musella, que também convence.

Chiti com seu chefe

Mas Wolfgang Von Trips, Olivier Gendabien, Peter Collins, Mike Hawthorne, todos aparecem lá, pessoas mencionadas com o peso que carregam. Pilotos fazem papéis menores e o casting é sensacional: o “Stig” Ben Collins faz Moss, e nos faz rir ao lado de um barbudo Dennis Jenkinson quando o pedal de freio de seu Maserati 450S quebra em plena Mille Miglia. Jean Behra é interpretado por Derek Hill, filho do piloto da Ferrari Phil Hill. Marino Franchitti é o piloto Eugênio Castellotti. Estão lá os Irmãos Orsi da Maserati, Romolo Tavoni, e muito mais. Para um fã dessa história como eu, genial.

Os atores principais também estão todos muito bem, apesar da falta de semelhança física com os personagens reais. Bem, Shelby tinha quase dois metros de altura, e não se parece nada com Matt Damon também; temos que nos acostumar com essas pequenas diferenças. Pelo menos em altura, acertaram: Enzo não era baixinho. Tem gente que reclamou que falavam inglês com sotaque italiano: eu acho que é uma forma de se dar o ritmo italiano à conversa, mesmo se falando em inglês. Não me incomodou.

Os carros também são totalmente acurados. Até os normais: logo de início Enzo dirige com vontade seu carro pessoal então: um Peugeot 403 sedã com câmbio na coluna. Vibrei tanto de ver ele neste carro correto, dirigindo como ele faria, que para mim já valeu o ingresso. Sua esposa e mãe eram levadas por chauffer de lá para cá numa versão Berlina da Alfa Romeo Giulietta, também. O supporting cast de veículos é realmente de cair o queixo, da 250 TR recém-terminada por Scaglietti, até o caminhão com que leva Enzo Ferrari para casa.

Mas há o Maserati 250F de Behra; há a Ferrari-Lancia 801 em que Castelloti tem seu acidente. E Maserati 450S, Ferrari 335S, 315S, 250 TdF e todos os outros carros de competição, perfeitos. Na estada passam Osca, Porsche, e Austin-Healey mais lentos.

A famosa foto “O beijo da morte”

As cenas de corrida são boas mas não sensacionais (carros obviamente devagar algumas vezes, talvez por serem clássicos reais); não tem o orçamento milionário de Ford vs Ferrari, claramente. Mas compensam pelas locações perfeitas, lindíssimas, e a reconstrução acurada dos locais, eventos e acidentes. O pátio da Ferrari e a entrada da fábrica; os carros, os atores, a imprensa, tudo nos leva de volta à 1957 e Modena; uma era ao mesmo tempo sensacional e trágica da indústria de supercarros da região.

Depois há o Piero Taruffi do ator Patrick Dempsey. Perfeito em tudo: idade, experiência e empatia. Taruffi é uma história sensacional que ocorre dentro desta história sensacional: então com 50 anos de idade, em sua 27ª Mille Miglia, o “Silver Fox” de cabelos brancos acaba por vencer a prova pela primeira vez, justamente na última vez que ela aconteceu. Sensacional história dentro da história, mas que acho pouca gente percebeu.

Taruffi, interpretado por Dempsey: perfeito

A trágica história de Alfonso de Portago (o ator brasileiro Gabriel Leone) também é visível; até o fatídico beijo de Linda Christian em Roma é reproduzido exatamente como no mundo real. Mas realmente chama atenção a reconstrução do acidente final. Parece exatamente acurado, na forma e lugar que aconteceram de verdade. Tudo bate exatamente com fotos e relatos de época, até nos detalhes grotescos. Teve gente que não gostou, mas de novo: para um aficionado e conhecedor da história, foi incrível ver um evento que conhecia só na imaginação, acontecer na minha frente ao vivo e em cores, exatamente como sei que foi.

Fidelidade é o que passou para mim. Inclusive ao material-fonte: a matéria que fiz relendo o capítulo do livro de Brock Yates que se passa durante o ano de 1957, base para o roteiro do filme, aparece claramente durante toda a duração da película. Pena que hoje em dia poucos são tão fiéis ao material original que, afinal de contas, deu origem a tudo.

Mas como saber que não são meus olhos apenas que gostaram da história do livro tornada real? É apenas a visão do entusiasta, que está feliz apenas por algo assim ter acontecido? Bem, minha esposa adora cinema, mas definitivamente não é entusiasta, e não sabia absolutamente nada da história. Ela realmente gostou do filme, tragédia final e tudo mais.

“Ferrari” pode não ser tudo que muita gente esperava, mas é história, feita real. Ou pelo menos, tão real quanto Hollywood consegue ser. Eu adorei de verdade, e estou com vontade de ir ao cinema ver de novo. (MAO)