Poderia ser uma trilogia como nunca vista na história de Hollywood, se os produtores de Ford vs. Ferrari também tivessem bancado o recente “Ferrari”. Por quê? Porque apesar de “Ferrari” mostrar Enzo negociando com a Fiat em certo momento do filme, depois de plantar o boato de que estaria negociando com a Ford, isso só aconteceu por volta de 1963. Antes disso, entre 1958 e 1963, muita coisa aconteceu em Maranello.
Naquele mesmo ano, 1957, a Ferrari venceu o título de construtores do Mundial de Carros Esporte (WSC) sobre a Maserati. Além da Mille Miglia, a Ferrari também havia vencido os 1000 Km de Buenos Aires e venceu o Gran Premio Venezuela, que encerrou a temporada. Com as três vitórias eles terminaram o campeonato em primeiro, com 30 pontos, cinco à frente da Maserati.
Além disso, a Ferrari também conquistaria o Tour de France Auto com Olivier Gendebien (que aparece no filme) em dupla com Lucien Bianchi (o tio-avô do Jules) numa 250 GT. E ela chegaria também em segundo e terceiro lugar na prova. Tudo isso mostra que a Ferrari não dependia tanto da Mille Miglia como o filme sugere. No ano seguinte, 1958, eles voltariam a vencer o Mundial de Carros Esporte e também conquistariam a 24 Horas de Le Mans pela terceira vez.
Na resenha do filme, eu disse que o roteiro tem alguns easter eggs, e um deles é uma queixa de um dos funcionários da Ferrari sobre a mão pesada da sra. Laura na condução dos negócios. Diferentemente do filme, que acaba com um grande alívio para Enzo por poder finalmente assumir seu filho, a realidade foi mais cruel.
Além das mortes de Eugenio Castellotti e Alfonso de Portago, retratadas no filme, a Ferrari ainda sofreria com as perdas de Luigi Musso, Peter Collins, Lorenzo Bandini e Wolfgang von Trips. Como o filme mostrou (e como vimos nesta matéria) a Ferrari e a fabricante de pneus tiveram contra si um inquérito da polícia italiana para investigar as mortes, que levaria um longo processo por homicídio culposo. Na época, pela legislação italiana, o fabricante do carro envolvido em um acidente fatal de automobilismo responderia legalmente pela morte.
Enzo Ferrari estava, portanto, afundado em uma série interminável de processos que o acusavam de negligência e o responsabilizavam pelas mortes dos pilotos, além de ser acusado pela imprensa de ser um “Saturno que devora seus filhos” (em referência à mitologia romana) e também pelo público, que dizia que ele estava construindo sua fama sobre cadáveres e não se importava com isso. Diante desta situação, ele simplesmente se isolou e deixou a Ferrari caminhar sozinha.
Ou quase isso. Sem Enzo ditando as regras, cada um dos seus homens de confiança continuou fazendo seu trabalho do jeito que achava melhor. Mas havia ainda a presença de Laura Garello Ferrari, a esposa legítima e, portanto, dona do negócio todo. E ela fez o que qualquer esposa faria na ausência forçada do marido: assumiu a responsabilidade de administrar a fábrica e a equipe.
Acontece que, como mostrou o filme, Laura estava amargurada pela perda de seu único filho e pela relação extra-conjugal de Enzo. E isso se refletia em sua relação com os funcionários. A sra. Ferrari era agressiva e tirânica, chegando ao ponto de ofender funcionários-chave da fábrica, em especial o gerente de vendas Girolamo Gardini, sua vítima mais frequente. Ela gritava com ele, o insultava por motivos alheios ao seu trabalho e, quando as vendas despencaram, foi culpado pela dona Ferrari em broncas homéricas. É claro que ele não aguentaria aquilo por muito tempo.
Gardini foi conversar com Enzo e foi direto ao ponto: ou Laura Ferrari deixava o comando da fábrica, ou ele deixava a fábrica. Enzo ficou ao lado de sua esposa e demitiu Gardini.
Ao saber do ocorrido, o diretor técnico Carlo Chiti, o diretor de design Giotto Bizzarrini e o chefe da equipe de corridas Romolo Tavoni e outros cinco funcionários contrataram um advogado para ajudá-los a escrever uma carta a Enzo Ferrari, posicionando-se contra a demissão do colega. Na carta, eles fizeram a mesma ameaça de Gardini, exigindo a readmissão do colega e o afastamento de Laura Ferrari. Eles dobraram a aposta pois não acreditavam que Enzo seria louco a ponto de demitir seus homens de confiança. Só que… Enzo não era um cara insensível. Laura ainda era sua esposa e ele tinha a obrigação de honrá-la. Ferrari bancou sua posição e mandou os oito para a rua.
Como uma disputa entre funcionários e a esposa de Enzo quase matou a Ferrari
O episódio ficou conhecido como “a revolta do palácio” ou “a grande debandada”, e resultou na promoção de Mauro Forghieri ao cargo de diretor técnico com apenas 27 anos, e do retorno temporário de Sérgio Scaglietti, que deixaria a fábrica mais tarde, dando início à colaboração da Ferrari com a Pininfarina.
Foi depois desse episódio que Enzo Ferrari decidiu que o melhor para o futuro da Ferrari seria vendê-la a uma grande fabricante. Àquela altura, Enzo e Laura tinham mais de 60 anos. Piero, seu único filho vivo, não era legalmente herdeiro da fábrica pois não podia ser reconhecido como filho legítimo. Além disso, ele tinha apenas 16 anos, na época.
Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 1: Davi vs. Golias
E é somente aqui que entra a negociação com a Ford. Enzo venderia a fábrica e a escuderia para a Ford, mas exigiu manter-se no comando da equipe de corridas, sem interferências de Detroit — os esportivos de rua seriam Ford-Ferrari e a equipe seria Ferrari-Ford. Os americanos, burocratas, rejeitaram a demanda e Enzo mandou um grande e silencioso vaffanculo para eles, dando início à história que conhecemos em “Ford vs. Ferrari”. Um terceiro filme, além de fechar a história, resultaria em um drama e tanto, não?
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