Talvez você tenha se deparado em algum momento com a teoria dos ciclos. A ideia de que há uma janela de 30 anos para carros antigos, ou que a moda se repete a cada 20 ou 30 anos, ou que a sociedade volta a um estágio inicial depois de atingir uma extrema evolução etc. Muita gente brilhante já se dedicou a estas teorias — incluindo Platão, Aristóteles e Sima Qian —, então ela talvez faça algum sentido se aplicada à análise da sociedade em geral.
Quanto aos carros, bem… pode ser mera coincidência, mas a história está se repetindo com os muscle cars. Eles surgiram como um nicho de mercado nos anos 1960, derivados de uma tendência anterior de se colocar motores potentes em carrocerias mais acessíveis e menores que aquelas às quais estes motores eram reservadas. O Oldsmobile Rocket 88 de 1949 foi um deles, assim como a Chevy Nomad a partir de 1955.
Foi inspirado em carros como estes que John DeLorean e sua turma, então na Pontiac, decidiram colocar o motor do Grand Prix no Tempest, criando o Pontiac GTO, o modelo que hoje é reconhecido como o primeiro dos muscle cars. Foi um sucesso, claro, que deu origem a toda aquela cena comercial que fez história nos EUA e mudou para sempre não apenas a cultura automobilística, mas também a cultura geral.
No início dos anos 1970, contudo, o surgimento das leis de emissões visando a proteção ambiental, seguido da grande crise do petróleo, decretaram o fim dos muscle cars clássicos. A preocupação com o futuro do planeta e com o preço da energia mudou a história destes carros que, de uma hora para outra, se tornaram incorretos e indesejados pelo grande público. Nem mesmo os mais populares resistiram: o Mustang virou um carro pouco inspirado e o Camaro chegou a ter um impotente 2.5 de quatro cilindros não muito melhor que seu primo brasileiro que equipou o Opala. Os Mopar então… melhor nem citar.
A receita, contudo, continuou por ali, em recuperação, porém viva. Nem Mustang, nem Camaro voltaram a ser o que eram logo de cara. Em vez disso, a chama do muscle car moderno foi mantida acesa pelos australianos na Ford Performance Vehicles (FPV) e na Holden Special Vehicles (HSV), as divisões locais da Ford e da GM/Holden encarregadas de apertar botão do F.
A Ford Performance Vehicles deu ao mundo carros como o Falcon FPV GT-P, um sedã paterno equipado com uma derivação de 5,4 litros do V8 Ford Modular que desenvolvia 394 cv usando os cabeçotes do Mustang Cobra. Legal, não? Seu rival era o Holden VX Clubsport, com um V8 de 347 cv. Ambos com tração traseira e câmbio manual ou automático, claro. Foi dali, entre 1987 e 2006, que saíram os primeiros muscle cars modernos, ainda que ninguém os chamasse desta forma. Mas aqui entra a teoria da história cíclica: o Olds Rocket 88 e a Chevy Nomad também não eram, a rigor, muscle cars. Eles apenas tinham as características que mais tarde fariam os muscle cars.
Em 2006 a Ford deu a largada nesta nova era dos muscle cars. Ela, que nunca deixou de fazer o Mustang (ao contrário da GM que abandonara o Camaro em 2002), aproveitou a onda retrô da época, o compartilhamento de motores com o pessoal da Austrália, os 40 anos do lançamento do Mustang se aproximando e colocou no mercado a quinta geração do seu muscle car como uma releitura do modelo original. Foi revolucionário. Mesmo com os motores ainda de uma geração anterior, ele voltou com tudo o que um Mustang tinha direito: versão GT, Cobra, Bullitt, Boss e Shelby. A GM e a Chrysler tiveram que se mexer e colocaram no mercado suas versões retrô do Camaro e do Challenger.
Ao final da década de 2000, os muscle cars estavam de volta. A história se repetia como nos anos 1960, o tal ciclo: o Mustang veio, (re)abriu as portas e a Chevrolet e a Chrysler seguiram, cada uma ao seu modo. A potência escalou rapidamente, com o Mustang chegando aos 760 cv no GT500 de sexta geração, o Challenger batendo insanos 1.040 cv e o Camaro ZL1 de 650 cv completando uma volta em Nürburgring Nodschleife em 7:16. Quem diria que um trio de muscle cars chegaria a este nível de desempenho?
Mas… a história é cíclica, lembram? Como em 1968 e, depois em 1973, os muscle cars modernos entraram no território do controle de emissões, da crise energética e das incertezas sobre o futuro. A Dodge anunciou o fim do Challenger e dos seus V8 para fazer qualquer coisa elétrica que tenta replicar a experiência dos seus muscle cars. A GM, por sua vez, diz que o atual Camaro será encerrado em janeiro de 2024, mas que “sua história não terminou” — o que nos leva a crer que o próximo capítulo será ligado na tomada.
Repetindo a história, quem continuará em cena será o Ford Mustang, que acabou de ganhar uma nova geração e parece longe de ser transformado em qualquer coisa elétrica. Ok, eu sei que a Ford já fez isso na forma do Mach E, mas você ainda pode comprar um Mustang V8 aspirado e manual e isso é o que importa nestes tempos.
A questão agora é que o Mustang não pode repetir a história e se tornar um esportivo medíocre como fez nos anos 1970, nem evoluir timidamente como fez entre 1978 e 2004. Agora que ele se tornou um concorrente à altura dos esportivos europeus — ao menos em termos de desempenho e na relação homem-máquina —, ele precisa manter seu status para que seu destino não seja o mesmo dos seus moribundos rivais americanos.
Até agora, pelo que vimos no papel, esta nova geração do Mustang é promissora. Mas… como ela se sai na prática? Na hora de colar o pedal no metal e despejar a fúria veoiteira no asfalto, de se aproximar das curvas e de deixá-las para trás?
Bem, parece que a Ford planeja fazer do Mustang o seu 911, o esportivo que é a imagem da marca e que pode ser capaz de revolucionar sem mudar aquilo que todos desejam nele. Essa primeira impressão dos americanos da Road & Track corrobora isso:
“O Mustang S650 parece mais um retoque do que algo totalmente novo, tanto no visual quanto no comportamento. Nesse caso, isso é muito bom. Não vamos dizer que a Ford jogou na defensiva com o estilo do Mustang 2024, mas o design é claramente evolutivo. A face e as linhas da carroceria são mais afiadas que as anteriores, mas esse carro é imediatamente reconhecido como um Mustang. A maior mudança está na traseira, onde o porta-malas e as lanternas agora têm um perfil côncavo — uma referência ao fastback de 1967. O carro parece melhorado e moderno, sem se afastar da noção popular de como um Mustang deve ser.”
O Top Gear disse isso de forma diferente, porém um pouco mais crítica:
“O Mustang se apoia na mesma fórmula básica: um motor grande na dianteira, tração na traseira, duas portas e carroceria cupê e conversível. Os motores são os mesmos da geração anterior, embora com poucas atualizações significativas. As maiores mudanças são cosméticas. Você irá notar novas faces e uma nova traseira, mais polpuda do que antes. O visual geral é muscle car puro, talvez um pouco menos Mustang.”
Sobre a continuidade dos motores, com pouca evolução, a Motor Trend começou sua avaliação falando a respeito deles:
“Alguns quilômetros no Mustang GT foram suficientes para nos convencer de que a Ford fez a escolha certa sobre onde investir. Diferentemente do Camaro, os Mustang GT anteriores tendiam a ser difíceis de lidar quando levados ao limite absoluto, com uma direção imprecisa, rodagem instável e uma tendência sobre-esterçante nas mãos de motoristas pouco experientes. Contudo, um pouco do molho especial do Mach 1 e do Shelby mudaram o sabor deste novo Mustang GT.
Acelerando nas melhores estradas de serra, o novo Mustang GT é surpreendentemente equilibrado e bem-comportado. Em vez de quicar entre as curvas, ele as atravessa com precisão e velocidade só vistas em carros da Shelby até agora. A direção poderia ser mais comunicativa, mas o peso e o retorno são perfeitos, assim como o acerto da suspensão. Quanto a esta última, os modos Sport e Track a tornam bem mais firmes, porém com uma complacência para evitar pequenos saltos em caso de impactos ao se contornar as curvas.”
A qualidade da caixa de direção e da suspensão também mereceu comentários do Top Gear. De acordo com a publicação, é esta combinação que torna o novo Mustang um carro tão versátil, ou com “múltiplas personalidades”, como eles disseram:
“O Mustang tem muitas personalidades. Se você só entrar no carro sem fuçar os modos de condução ou os pesos de direção (sim, ela é ajustávle), o Mustang é fácil de se acostumar. Se você compra o Mustang esperando um muscle car, você tem. Pode acelerar o V8 e levar todas as marchas além das 7.000 rpm, lançar a alavanca de marcha pela grelha e se divertir horrores. A Ford não divulgou o tempo oficial de zero a 100 km/h, mas ele é rápido. Além disso, você tem aquele ronco do V8 preenchendo a cabine.
Quer um carro para estradas de montanha? O Mustang é bom aqui também. O diferencial ajuda muito a tração e, céus, a suspensão MagneRide é a melhor. Você pode mergulhar nas curvas com muito mais precisão graças à direção mais rápida e às rodas de 19 polegadas.”
A Road & Track também teve essa impressão da necessidade de se adaptar/acostumar ao carro. Eles, contudo, foram mais tolerantes:
“Uma vez acostumado ao peso, contudo, você pode brincar com o Mustang GT. Ele é lento nas curvas e rápido nas retas. Você só precisa controlar a transferência de carga e ficar de olho na temperatura dos freios — tivemos um superaquecimento depois de uns 20 minutos abusando do carro nas montanhas. Suspeitamos, contudo, que a maioria dos compradores irá usar o GT onde ele se sai melhor: retas e rodovias, onde você pode obter mais do motor.”
O motor V8, claro, foi uma unanimidade. A Motor Trend, que mais acima elogiou a permanência dos motores em prol do maior investimento na suspensão e direção e freios, o chamou de “monstruoso”…
“Entre as curvas, o Mustang GT continua monstruoso como sempre. Nosso bundômetro não percebeu as diferenças de potência entre este novo Coyote e o antigo, mas ele ainda é um motor torcudo e girador, atingindo a potência máxima pouco antes das 7.500 rpm, enquanto o torque máximo vem pouco antes das 5.000 rpm.”
… enquanto a Road & Track aclamou a relação ronco/potência:
“Há muito torque quase a partir da lenta, o que torna as viagens de baixa velocidade e o uso urbano muito fáceis. A diversão acontece mesmo perto das 7.500 rpm, uma vez que é onde toda a potência se encontra. Diferentemente de um motor pushrod, não há buracos de aceleração perto do limite de giros – quanto mais barulho, mais potência.”
O ponto de convergência de todas as publicações sobre o Mustang foi, sem dúvida, a transmissão — tanto a automática de 10 marchas, quanto a manual de seis marchas. A manual, claro, foi aclamada por todos, enquanto a automática parece ter passado uma impressão muito fidedigna, pois todos relataram o mesmo comportamento. A Motor Trend disse o seguinte:
“O câmbio manual de seis marchas funciona perfeitamente. As trocas são curtas e mecânicas, e cada trilho é fácil de se encontrar. Embora o Mustang faça a sincronia das trocas automaticamente (N.T.: o tal punta-tacco eletrônico), a posição do pedal é perfeita para punta-tacco, à moda antiga, com boa sensibilidade da embreagem e frenagem excepcional.”
A Road & Track foi mais comedida, mas ainda abordou o câmbio manual de forma positiva no funcionamento. O ponto crítico para eles foi a relação das marchas:
“O câmbio não é algo memorável, mas a ação da alavanca é curta e fácil, enquanto a embreagem é leve e comunicativa. As relações são longas como nos Mustang posteriores a 2018, acertada para eficiência e não para o desempenho. Isso significa que a segunda marcha chega à faixa dos 110 km/h, resultando em infrações de velocidade sempre que se chega à faixa de corte.”
Já o câmbio automático de dez marchas foi menos aclamado. Ele é a única opção disponível na Europa (e no Brasil), mas é um opcional comum nos EUA, então as publicações americanas também o avaliaram. A Road & Track gostou do câmbio:
“Essa é a parte em que eu ignoro o automático de 10 marchas e recomendo a compra do manual, se você é fisicamente capaz de dirigir um carro manual. Mas não posso fazer isso, porque a caixa de 10 marchas é boa agora. As alavancas no volante respondem bem aos comandos, resultando em trocas precisas enquanto a caixa anterior ficaria hesitante. Não é boa como a ZF de oito marchas, mas as diferenças são poucas e a maioria dos motoristas nem irá notar.
No modo Sport ou Track, a transmissão reage às frenagens e movimentos da direção para entregar a marcha correta. Está claro que a Ford dedicou um bom tempo a melhorar o software do câmbio — o que faz sentido, considerando que 73% de todos os Mustang V8 2024 vendidos até agora foram pedidos com o câmbio automático. Em vez de neutralizar a experiência, o automático permite que mais gente se divirta com o carro.”
A Motor Trend, por sua vez, foi mais comedida, mas ainda assim positiva:
“O câmbio de 10 marchas é impecável, mesmo não sendo divertido. Quando usado automaticamente, ele responde ao seu estilo de condução — segurando as marchas mais tempo se perceber que você está forçado, ou trocando as marchas mais cedo para otimizar o consumo. As subidas de marcha rápidas certamente ajudarão a derrotar os Mustang manuais nas pistas de arrancada, embora as reduzidas não sejam tão rápidas como as do câmbio de embreagem dupla do velho Mustang GT500.”
A conclusão possível depois de ver todas estas avaliações é que a Ford jogou um jogo seguro, sem mexer no time que está ganhando, sem arriscar muito — o que ela poderia fazer, visto que tem poucos concorrentes diretos. Ela poderia ousar e partir para cima do BMW Série 4? Talvez. Mas isso poderia causar um problema que a Ford não precisa ter: a descaracterização do Mustang como Mustang. Ele talvez deixasse de ser um muscle car americano, para se tornar uma cópia americana do BMW Série 4.
Nesse sentido ele tem alguma vantagem, pois ele consegue emular a esportividade do Série 4, enquanto o alemão não tem vocação para muscle car. É justamente a falta de refinamento, criticada por alguns, que faz do Mustang um Mustang, e não um simulacro de cupê europeu. Isso seria positivo para a Ford?
Além disso, jogar seguro é uma decisão estratégica: o Mustang não precisa provar nada a ninguém, apenas manter seu status quo, como mencionei mais acima. E em tempos de incertezas sobre o futuro da combustão interna, manter um Mustang mais rápido e mais eficiente, é uma forma segura de esperar para ver o que acontece. Enquanto isso, ele segue sendo o Mustang, mas agora com algo a mais. O resumo da ópera foi bem identificado pelo Top Gear. Encerro com eles:
“Depois de todas estas décadas, o Mustang evoluiu de um pony car tipicamente de drag strips para um esportivo sincero, que equilibra potência e precisão. Ele ainda faz burnouts fumegantes? Ainda faz drifts? Pode apostar que sim. Mas a nova agilidade do Mustang dá a ele um apelo além do básico dos muscle cars.
Ele não é mais um brinquedo de fim-de-semana. O Mustang tem a mesma tecnologia de assistências que você encontra em outros carros da Ford, com uma cabine tecnológica e vários itens de conforto. Nunca foi tão fácil considerar um Mustang como opção para uso diário.”
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