Mil novecentos e oitenta e três. Uma sexta-feira qualquer na então aprazível e isolada Niterói, do outro lado da baía de Guanabara, com vista para o Rio de Janeiro. Meu pai, que Deus o tenha em bom lugar, aparece em casa no fim do dia com um Voyage novinho, carro da frota da companhia onde trabalhava. O motivo não me lembro; me lembro que ainda era uma novidade ainda, um carro novo que não conhecíamos.
Ficamos no fim de semana com o carro, e me lembro de meu pai nos levando para cá e para lá com ele, feliz de estar num carro novo; seu Opala 1972 estava cheio de buracos de ferrugem e bancos rasgados, e o Fusca verde… bem, era bem velhinho também. Me lembro claramente de uma coisa naquele Voyage, algo que ficou marcado profundamente em mim: voltando para casa no bairro de São Francisco, pela sinuosa Estrada Leopoldo Fróes, diferente de todos os carros que andara como passageiro até ali, o Voyage não rolava. Era uma sensação estranha, diferente, perceptível até para o moleque passageiro.
E mais: toda vez que se passava em um buraco ou ondulação, não tomava impactos secos ou chatos; eram absorvidos todos os impactos. Não sabia ali disso ainda, mas estava experimentando um pouquinho do futuro: firme, mas absorvendo impactos bem, o carro era algo que realmente nos impressionou.
Vamos acelerar agora o relógio um pouco, para o ano de dois mil e três. Morava em Resende, no estado do Rio de Janeiro, e para economizar um pouco de dinheiro da gasolina, fazia um revezamento com meu amigo Charles, o engenheiro de suspensão do projeto de caminhão da VW, onde trabalhávamos, juntos. Um dia ele me dava carona, outro dia eu dava carona para ele; assim os 20 km entre a cidade e a fábrica ficavam um pouco menos pesados no bolso de ambos.
O Charles tinha um Polo 2.0 novinho; cara sofisticado que era. Eu tinha dois carros que usava para o trecho: um Chevette 1.6 L 1993, e um Opala cupê preto seis cilindros e três marchas, 1974, que carinhosamente era conhecido como o “Morcego Negro”. Ambos sem ar-condicionado naquele lugar quente; mas o Charles não parecia se importar e lidava bem com meus carros velhos de uso.
O Charles, por mais incrível que pareça isso, arrumou uma namorada; em pouco tempo, esperto que ele era, virou sua noiva. O casório e as futuras despesas iminentes o fizeram vender o Polo. A esposa, afinal de contas, tinha um carro que ele poderia usar: o carro do avô falecido.
Era um Passat três-portas azul, 1975. O carro estava em situação calamitosa: nada de ferrugem, mas estava parado havia três anos, desde que o dono falecera, e aparentemente sem cuidado algum quando era vivo. Fazê-lo funcionar foi uma saga, e nada ali estava em bom estado. Mas o Charles o colocou em uso, o que significa que ocupei o banco do carona regularmente.
Andar nele no dia seguinte do meu Opala foi revelador. O meu carro era cuidado e em perfeito estado; mesmo assim era incrível como aquele Passat azul parecia… moderno. Não em sua carroceria, seus bancos horríveis e quebrados, seu estado deplorável… rodando mesmo. A suspensão parecia de um carro de vinte anos adiante. O meu Opala rodava firme com amortecedores mais duros, mas não era a mesma coisa; o carro tinha uma compostura e segurança ao rodar simplesmente incomparável. Os dois eram da mesma época, contemporâneos; mas o Opala era ligado ao passado, e o Passat, ao futuro.
Se você não entendeu o motivo deste pequeno passeio pela viela florida da memória, explico: nada acontece à toa neste mundo. Principalmente sucesso. Muita gente não consegue engolir o sucesso, por décadas e décadas, do Gol e seus derivados por aqui. Viveram por tanto tempo, e tiveram tantas variações, que muitos acham que a VW espremeu o suco da fruta até só sobrar um caldo amargo. Que passou do ponto. Que o sucesso é fruto apenas do nome e tradição da empresa, sem origens técnicas. Afinal de contas, os Gol nunca foram os carros mais baratos, mesmo que sua construção básica fosse obviamente focada em um custo baixo de fabricação e não muito mais que isso.
Mas o fato é que sempre foram carros excepcionais, fora essas falhas. Tanto em suspensão e comportamento, quanto em motores; bastou o motor do Passat ser colocado no Gol para ele imediatamente ser mais potente e econômico que a concorrência. E sem falar, claro, nas possibilidades quase infinitas de preparação. O Gol durou tanto, e teve tanto sucesso, simplesmente por ser competitivo. Uma coisa só pode ser realmente ser considerada velha e ultrapassada quando algo melhor objetivamente aparece; o Gol só sobreviveu tanto por não ser o caso.
Com a efeméride do fim de sua produção em breve, faz sentido então olhar um pouco para esta história. E aproveitar para esclarecer de onde veio, e até onde foi o Gol; responder, por exemplo, o quanto de Gol ainda existe no carro atual. Mas primeiro, lembrando do início.
Do DKW ao Passat B1
A origem do Gol nacional passa primeiro de tudo pela Audi. Como sabemos, o Gol veio do Passat, e o Passat original é uma versão “fastback” do Audi 80 B1. Uma rápida passagem de como a Audi moderna nasceu e de onde veio, vale a pena contar. Nem que seja pelo motivo de que o nascimento do Gol é uma grande ironia, e uma junção de linhagens germânicas que só podia ter acontecido aqui.
Se você se lembra bem, a VW comprou a DKW-Vemag e imediatamente parou de fazer o DKW; claro, era um concorrente de seu Fusca. Incrível é então que o substituto do Fusca tenha vindo, de uma forma convoluta, exatamente dos DKW.
Isso porque a Audi é na verdade o que restou da Auto-Union: DKW, Audi, Wanderer e Horch. Já no pré-guerra, usando a tecnologia de tração dianteira pioneira da DKW, os Audi eram tão somente DKW ligeiramente maiores, com motores a quatro-tempos. Mas uma guerra interveio, e depois dela, tudo que sobrou da Auto-Union eram os baratos e simples DKW.
Em 1963, aparecia uma nova geração de DKW na Alemanha: o F102. O carro era uma grande evolução, mas ainda mantendo os conceitos básicos de tração dianteira e motor tricilíndrico a dois tempos que tornaram a marca amada por uma legião de fãs. O motor agora deslocava 1.175 cm³ (81 x 76 mm), consumia pouquíssimo óleo lubrificante, e dava 60 cv a 4.500 rpm. O resto do carro era bem diferente do DKW que conhecemos aqui, porém. Uma carroceria de desenho moderno, monobloco (o nosso DKW tinha chassi separado), levava suspensões dianteiras de duplo A sobreposto (mas com colunas de mola/amortecedores parecidas com uma McPherson), e traseira por eixo de torção. Freios a disco dianteiros eram montados inboard, próximos à transmissão. Mas o motor pendurado longitudinalmente adiante do transeixo, e tração dianteira, permaneciam.
Mas dois-tempos já era claramente algo do passado. A Auto Union era propriedade da Daimler-Benz desde 1959, e esta decide fazer algo a respeito. Dr Ludwig Krauss, um engenheiro vindo da Daimler-Benz, tinha uma ideia: colocar um moderno quatro em linha de quatro tempos no F102, e assim conseguir um carro ao mesmo tempo bem desenvolvido (a DKW fazia tração dianteira desde 1932) e moderníssimo. Abandonar o ultrapassado dois tempos era um caminho para aproveitar-se das outras várias qualidades do F102, e dos DKW desde sempre. O resultado foi o primeiro Audi moderno, e ancestral de todo Audi até hoje: o projeto F103, um DKW com motor quatro-tempos chamado simplesmente de “Audi”, em 1965, já sob a direção da VW. Um sucesso.
O novo motor de quatro cilindros em linha e quatro tempos merece menção: era fruto de uma pesquisa da Mercedes para convergir as tecnologias de alta compressão (ciclo Diesel) e baixa compressão (ciclo Otto), e por isso foi chamado de Mitteldrücker (pressão média). Contava com comando de válvulas no cabeçote e corrente para acionar o comando de válvulas, e não correia dentada como depois seria tradição na VW. Tinha 1.695 cm³ (80 x 84,4 mm) e 72 cv de potência, e trazia o desempenho do carro para um patamar mais moderno. Era um antecessor do AP, mas ainda não ele; este viria dos laboratórios da VW/Audi moderna – algo que contaremos mais adiante.
O arranjo deste motor no cofre é um passo evolucionário claro para os futuros Audi, e o Passat: inclinado para direita para permitir capô e CG mais baixo, e radiador ao lado dele com ventilador elétrico para encurtar a frente. Apenas o ângulo do radiador muda em relação ao Passat.
Em 1972 aparecia na Audi o sucessor do F103, que agora se chamava Audi 80 para diferenciá-lo do novo Audi 100, maior. Este novo Audi 80, codinome B1, era uma evolução que efetivamente consolidaria a Audi. O carro primeiro tinha um novo motor, o VW EA827, o motor que conhecemos hoje como VW AP. Era uma evolução do carro anterior, agora com um cofre desenhado com mais espaço, motor inclinado para direita, e radiador ao lado, agora perpendicular ao sentido de direção do veículo. Suspensão dianteira McPherson, raio de rolagem negativo e direção por pinhão e cremalheira; nascia o que conhecemos como Passat e Gol ali, em conceito, em 1972. Há 50 anos, portanto.
O Audi 80 B1 é o Passat sem tirar nem pôr. Até painel de instrumentos e bancos são os mesmos, o Passat não passando de uma versão fastback de carroceria, com outros logotipos e detalhes.
Uma tecnologia que a DKW vinha desenvolvendo já a algum tempo floresce no Audi B1: os batentes de suspensão de PU microcelular, que funcionam como mola auxiliar; são o segredo do ride que hoje chamamos de “alemão”, firme, mas não desconfortável. Hoje universal, a Audi é uma das pioneiras, justamente no B1.
Pois bem, como sabemos, o Passat veio ao Brasil em 1974, uma verdadeira revolução em relação ao que se via aqui da marca até então; um carro moderno refrigerado a água, e não mais o “bom senso sobre rodas” do Fusca e derivados. Um grande medo da VW, essa mudança; mas a excelência técnica do carro se mostrou suficiente para que o passado fosse esquecido. Rodando, não existia nada igual.
Do Passat B1 o Gol
Gol BX depois virou modelo, mas BX é o código interno do projeto do substituto do Fusca. O Gol BX original, como sabemos, vem do Passat B1. Mas não confundir isso como sendo o mesmo carro: é baseado nele. A frente é muito parecida, mas não idêntica, apesar da mecânica intercambiável. O Gol, como sabemos, inicialmente recebeu os motores do Fusca por puro medo de rejeição pela VW; depois corrigiu seu erro com os motores AP e só sucesso depois disso.
O que há de comum entre o BX e o B1 em termos de carroceria? Antes de responder isso vamos lembrar do conceito tradicional de plataforma: mesmo assoalho, curvão, longarinas dianteiras, podia-se variar entre-eixos. Neste conceito, não é a mesma plataforma: poucas peças são exatamente as mesmas. Mas uma olhada debaixo do capô mostra que a variação é pequena: um veio do outro. Peças idênticas mesmo com certeza: o assoalho e a fixação dos bancos dianteiros, e por tabela, esses bancos compartilhados.
Claro que variações existiram mesmo no Gol: picape Saveiro; perua Parati; sedã Voyage, em duas e quatro portas. A arquitetura básica permanecia a do Passat, bem como sua tecnologia e princípios básicos de funcionamento. Ainda que não fossem exatamente as mesmas peças, além dos assoalhos dianteiros e fixação dos bancos.
Em setembro de 1994, aparecia o projeto AB9, o que conhecemos com o apelido carinhoso de “bolinha”, ou Gol G2. De novo, era um reprojeto completo do carro, mas usando a tecnologia e princípios básicos do B1, o Audi 80 de 1972, aqui Passat. De novo, praticamente tudo mudou no carro em termos de carroceria, mas uma olhada nele revelava extrema familiaridade. Peças que continuavam as mesmas? O assoalho dianteiro e a fixação dos bancos dianteiros.
O AB9 teve vida longa, como sabemos: virou o Gol G3 e o Gol G4; ambos, no frigir dos ovos, eram facelifts e variações do mesmo carro básico. Claro: por incrível que pareça continuava uma plataforma versátil e competitiva no mercado. Tinha seus problemas, claro, de novo constantemente ligados à qualidade de peças, materiais e construção, todos feitos para atingir antes de tudo um preço baixo de fabricação; ainda assim, a excelência do projeto original mantinha o carro competitivo no mercado.
No meio de 2008, finalmente aparecia um Gol que era novo realmente. Agora usaria motores e transmissões transversais, já usados nos Polo e Fox. A VW anunciou na época que o carro agora passaria a usar a plataforma PQ24 do Polo, mas na verdade, como aconteceu com o Gol original e o Passat B1 tanto tempo antes, o novo Gol apenas usava seu conceito básico e tecnologia: pouca coisa da PQ24, se é que alguma, foi usada nele diretamente. Mas sim, ainda era o conceito da PQ24.
Mas é claro que, para fazer um carro brasileiro a custo baixo, muito mudou. O Gol ano modelo 2009 é o que temos até hoje, fora motores e transmissões. Mas uma coisa permanece: os assoalhos dianteiros e a fixação de banco, como um traço genético indelével, vai estar no último dos Gol quando em breve deixar de ser produzido. Sim, essas peças continuam as mesmas desde e Passat, cinquenta anos depois do primeiro carro da plataforma B1 aparecer.
Muita gente vai achar um absurdo, mas pense bem; se algo funciona ainda, mudar apenas por mudar é mais que uma bobeira: é falta de inteligência.