Muito se discute a respeito de quem inventou o avião. Brasileiros adoram defender Alberto Santos Dumont na Internet à menor menção dos irmãos Orville e Wilbur Wright, mas os estudiosos da aviação hoje concordam que as contribuições de todos eles foram essenciais para o nascimento do avião moderno – assim como os avanços de outras pessoas, em outras épocas, para que o ser humano compreendesse exatamente como a aerodinâmica funciona e, assim, pudesse ganhar os céus com uma máquina mais pesada que o ar. Já falamos sobre isto em uma matéria antes – você pode conferir aqui.
O que não se discute com tanta frequência, porém, é a participação das mulheres na aviação. Geralmente o nome da americana Amelia Earhart é o mais lembrado. E não por pouca coisa: considerada uma pioneira da aviação, Earhart foi a primeira mulher a atravessar o Oceano Atlântico de avião – primeiro em 1928, como acompanhante do piloto Wilmer Stultz; e depois em 1932, pilotando um monomotor Lockheed Vega.
Depois de voar outras inúmeras vezes, escrever relatos e livros contando sua experiência, e ajudar a fundar a primeira escola de aviação feminina do planeta – a The Ninety-Nines (ou The 99s), que atua até hoje – Earhart desapareceu em junho de 1937, durante uma tentativa de dar uma volta ao mundo com um Lockheed Model 10-E Electra. Acredita-se que Earhart voava sobre o Oceano Pacífico quando o avião caiu, mas nem os escombros e nem o corpo foram encontrados. Amelia Earhart foi declarada morta em 5 de janeiro de 1939, bem como o navegador Fred Noonan, que a acompanhava.
Embora a importância de Amelia Earhart para a aviação e para a emancipação das mulheres seja indiscutível, é preciso lembrar de outro nome: Lilian Bland, a primeira mulher a projetar e costruir seu próprio avião – e a voar com ele. Talvez por não ter tido o mesmo apoio de Earhart, que foi muito influenciada pelo pai a interessar-se por aviões, ou por não ter tido uma morte trágica e amplamente noticiada pelo mundo, Bland geralmente é esquecida quando se fala em pioneiros da aviação.
Bland nasceu em 1878, em 28 de setembro, filha de ingleses com ascendência irlandesa – John Humphrey Bland e sua esposa, Emily Charlotte. Ela foi uma garota peculiar para a o fim do século 19: usava calças, praticava esportes e, quando cresceu, passou a fumar, pescar e caçar. E seu primeiro emprego foi como jornalista esportiva e fotógrafa de imprensa para diversos jornais de Londres e região, um campo que ainda é predominantemente masculino.
Em 1906, com a morte de sua mãe, Lilian e o pai mudaram-se para a Irlanda do Norte. A irmã de John, Sarah Bland, tinha uma propriedade ao norte de Belfast. E foi lá que Lilian teve seu primeiro contato com a aviação: seu tio Robert, que morava em Paris, enviou a ela um cartão-postal com a foto do monoplano Blériot XI, usado pelo pioneiro da aviação francês Louis Blériot no primeiro voo sobre o Canal da Mancha, em julho de 1909.
Aquilo mexeu com a cabeça de Lilian, que no momento em que viu o avião decidiu que era aquilo que queria para sua vida. Para sua sorte, estava marcado ainda para aquele ano o primeiro encontro oficial de aviadores em Blackpool, na Inglaterra. A viagem foi longa, mas Lilian aproveitou ao máximo: ela pode ver o avião de Louis Blériot de perto, estudá-lo cuidadosamente, e utilizá-lo como inspiração para seu próprio avião.
Por sorte, o falecido marido de sua tia Sarah era um militar da reserva e Membro da Royal Society – uma organização britânica criada dar apoio e reconhecimento a cientistas e pessoas que, de forma geral, contribuam de alguma forma para o desenvolvimento do conhecimento científico. A casa onde os Bland moravam na Irlanda ficava em um terreno espaçoso e continha uma oficina completamente equipada. Assim, ainda em 1909 – quando tinha 31 anos de idade – Lilian começou a trabalhar em seu avião.
O Mayfly começou simples, como um planador em escala reduzida com envergadura de 1,80 metro – pequeno, porém totalmente funcional. Com a ajuda de amigos, o modelo foi transformado em um planador em tamanho real, com estrutura de madeira e bambu, fuselagem de tecido e, diferentemente do Blériot, era um biplano. Tinha envergadura de 6,30 m e pesava 90 kg.
Embora seu pai não acreditasse que o planador fosse funcionar, Lilian seguiu firme com sua ideia. Em poucas semanas começaram os primeiros testes, feitos do topo da colina de Carnmoney Hill, perto de sua casa. Sim, o Mayfly era capaz de planar – e a cada novo teste mais reforços estruturais eram instalados e mais carga colocada. O último teste foi feito com quatro oficiais de polícia irlandeses montados no planador – e, quando constatou que sua criação tinha resistência o bastante para levar quatro ocupantes, Lilian chegou à conclusão de que o Mayfly suportaria um motor.
Juntando tudo o que tinha, Lilian encomendou um motor novinho à recém-fundada A.V. Roe & Co., mais tarde rebatizada Avro Aircraft. Com dois cilindros opostos, o motor desenvolvia 20 cv a 1.000 rpm – e foi instalado antes mesmo de ex-planador e agora avião ter um tanque de combustível. Usando uma garrafa de whisky como reservatório improvisado, a aviadora tentou dar seu primeiro voo sem sucesso: o motor vibrava tanto que as peças começaram a se soltar.
Uma vez que o sistema de combustível correto ficou pronto, em agosto de 1910, o primeiro voo foi realizado. Não foi um voo muito longo – o Mayfly decolou por conta própria depois de uma breve arrancada de 9 metros no solo, e percorreu mais 400 metros no ar a poucos metros de altura. Não parece impressionante agora, mas no contexto da época foi uma conquista de tamanho absurdo. Lilian Bland tornou-se a priemeira mulher a voar em um avião na Irlanda – projetado e construído por ela mesma. E o próprio Mayfly tornou-se o primeiro biplano funcional não apenas da Irlanda. Hoje, os historiadores acreditam que Lilian na verdade foi a primeira mulher em todo o planeta a projetar, construir e pilotar seu próprio avião.
Lilian não parou por ali: ela continuou testando e aperfeiçoando seu Mayfly por mais alguns meses – até garantir que o Mayfly pudesse subir a pelo menos 9 m de altura. Depois, começou a projetar melhorias, e chegou até mesmo a oferecer planadores e aviões para venda. O que ela queria era abrir sua própria fabricante de aviões. Mas isto nunca aconteceu.
Foi um misto de desilusão e falta de incentivo. Bland jamais conseguiu tornar o Mayfly capaz de voar com um motor maior; e seu pai também não estava exatamente empolgado com a ideia de a filha ganhar os ares. Ele achava perigoso demais.
Por insistência do pai – que chegou a comprar um Ford Modelo T para ajudar a convencê-la – em 1912 Lilian encerrou sua promissora carreira na aviação de forma abrupta, doando o Mayfly e seu motor para um clube de aviação. Depois disto, mudou-se para Vancouver, no Canadá, para viver com o marido, Charles Loftus. Os dois haviam se casado em 1911.
A única filha do casal, Patricia Bland, nascida em 1913, morreu aos 16 anos de idade, vítima do tétano. Pouco depois, Lilian e Charles separaram-se e ela voltou para o Reino Unido, tornando-se jardineira.
Ela nunca recuperou a vontade de viver que tinha quando voava. A maior parte de seu salário era gasta com apostas – e ela permaneceu viciada em jogos até seus últimos dias, dizendo sempre que a jogatina era a única alegria que lhe restara na vida. Lilian morreu em maio 1971, aos 92 anos.
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Em inglês, mayfly quer dizer “efemérida”, nome popular da ordem de insetos aquáticos Ephemeroptera. Eles possuem diversas características muito antigas, típicas dos insetos pré-históricos, que não se encontram em nenhum outro tipo de inseto hoje em dia – como suas longas caudas duplas e suas asas, que não se dobram sobre o abdome.
Mas a característica que mais chama a atenção nas efeméridas é o quão pouco elas vivem. As efeméridas passam a maior parte de sua vida como larvas e ninfas – fases que podem durar de semanas a alguns anos.
Uma vez que completam sua última metamorfose e se transformam em adultos – o que acontece sempre ao mesmo tempo para todos os insetos de uma população – as efeméridas chegam a seus últimos momentos de vida. A fase adulta de uma efemérida raramente vive por mais de 24 horas, durante as quais machos e fêmeas, todos nascidos ao mesmo tempo, dançam e copulam no ar. Em alguns locais, são tantos insetos que o ritual é considerado uma atração turística.
A única função biológica de uma efemérida adulta é reproduzir-se – uma vez cumprido o acasalamento, os machos morrem; as fêmeas botam milhares de ovos na beira de riachos e lagos, e morrem também. Em algumas espécies, as efeméridas adultas literalmente saem do casulo, se reproduzem e morrem em cinco minutos. Uma efemérida sequer têm sistema digestivo – afinal, não tem tempo nem para um petisco.
Os entomólogos – estudiosos dos insetos – acreditam que uma vida tão breve pode ser uma estratégia evolutiva das efeméridas para garantir a reprodução e evitar predadores. Afinal, aqueles que estão acima de você na cadeia alimentar não podem te pegar… se você morrer primeiro.
Lilian Bland conhecia o ciclo de vida das efeméridas, e foi por isso que batizou seu avião com o nome delas – em um ato carregado de ironia, na medida para provocar seu pai. Porém, de forma ainda mais irônica, a vida do Mayfly e a carreira de sua projetista, construtora e pilota também foi muito breve – como se, por medo de fracassar, ela tivesse decidido simplesmente abandonar seu próprio sonho e levar uma vida tranquila, formando uma família.
Mas talvez o mais irônico de tudo isto seja o fato de Lilian ter tido uma vida tão longa. Depois de perder a filha e voltar para a Europa, ela provavelmente viu outras mulheres tornarem-se pilotas de avião. Deve ter lamentado profundamente o desaparecimento de Amelia Earhart. Viu os aviões serem usados em duas Guerras Mundiais. Viu o advento do avião a jato, capaz de atravessar continentes em horas. Ao contrário do Mayfly, Lilian Earhart não foi uma efemérida.