O ronco ardido, grave e rouco do V8 de virabrequim de plano cruzado é uma assinatura sonora que está presente no DNA da AMG desde 1971, quando o colossal sedã Mercedes-Benz 300SEL “Red Sow” (conheça sua história aqui), equipado com um oito cilindros aspirado de 6,8 litros e 428 cv, conquistou o segundo lugar nas 24 Horas de Spa-Francorchamps, deixando 59 rivais menores e mais leves – como Ford Capri, Alfa Romeo GTAm e BMW 3.0 CS – para trás e sem entender nada. Foi a primeira corrida deste carro e a primeira grande conquista da preparadora fundada quatro anos antes pelos engenheiros Hans Werner Aufrecht e Erhard Melcher.
Ao avançar quarenta e quatro anos na história, num primeiro olhar nada sobra em comum entre este full size race car aí de cima e o AMG GT S abaixo – ao menos até você apertar o botão engine start e ser respondido pelo rosnado do despertar do V8 biturbo 4.0, conhecido pelo código interno M178. A fruta não cai longe da árvore. Como seu distante bisavô, seu números são superlativos, como se espera de um esportivo de sua categoria: 510 cv a 6.250 rpm, 66,1 mkgf de torque entregues já desde 1.750 rpm e que se estica em uma mesa plana até os 4.750 rpm, zero a 100 km/h em 3,7 segundos, máxima de 310 km/h.
Mas existe bem mais em comum entre eles do que uma assinatura sonora do V8. Mesmo com todos os avanços tecnológicos, que permitiram enormes melhorias nos processos de fabricação, materiais, desenhos de projetos, testes de modelos teóricos e leituras e análises de protótipos, um motor de extrema performance precisa de mão de obra da mais alta qualificação para ser montado. Seja na década de 1970, seja hoje em dia.
Uma camiseta pode ser fabricada em processo automatizado, mas um terno confeccionado na Savile Row – a rua de Londres conhecida por reunir alguns dos melhores alfaiates do mundo – necessita de um artesão experiente e detalhista para fazer um trabalho sob medida impecável: é exatamente isso que separa um motor de linha de produção convencional de um taylor made.
A comparação com o alfaiate não é nada exagerada: a montagem de cada motor da Mercedes-AMG, a tripla checagem por scanner das tolerâncias de cada componente, o torque de cada parafuso, a instalação de cada anel, bronzina e retentor, é trabalho de um, e somente um profissional. É a filosofia “one man, one engine”, que mantém acesa uma das tradições mais antigas e essenciais dos carros de corrida e performance: o craftsmanship, a arte do trabalho manual especializado, essencial para o desempenho e a longevidade do conjunto mecânico. O trabalho destes engenheiros inteiramente dedicados e altamente equipados – uma montagem possui 23 etapas e pode levar até seis horas – é coroado pela instalação de uma plaqueta assinada na cobertura do motor.
Não são poucos os proprietários entusiastas que participam de fóruns em todo o mundo, compartilhando fotos destes plaquetas e buscando a identidade e a história do artista responsável pelo motor de seu carro – como o engenheiro Darius Garbas, que aparece no detalhe da galeria abaixo – e, de quebra, fazendo amizades com outros donos de AMG que compartilham o mesmo “pai” do conjunto motriz.
Por sinal, um dos pedidos mais comuns que o AMG Private Lounge – comunidade on-line formada entre a fábrica e os proprietários de AMG, que também organiza eventos em todo o mundo – recebe é justamente a identificação destes profissionais, já que nem todas as assinaturas são perfeitamente legíveis e os modelos pré-2004 não tinham esta plaqueta, apesar da filosofia já existir.
Florian Brader, Frank Siewert, Dominik Baier, Robert Feiler, Erol Cenk, Ozan Issiz, Joachim Schmidt, Thomas Griese, Markus Jaudes, Andreas Unkauf, Burkhard Krüger, Christoph Glania, Sivadas Inthrathas, Rijad Handanovic, Timo Brill, Tobias Liesch, Peter Gerlach, Almir Dzuzdanovic, Mathius Lutz, Matthias Wöllner… São mais de 60 engenheiros-artesãos na seção de montagem de motores da fábrica da AMG, localizada em Affalterbach, onde há um painel que não apenas os identifica como também exibe a filosofia do trabalho: “Leidenschaft, Leistung, und Verantwortung”, algo como “paixão, performance e responsabilidade”.
E não pense que são apenas homens. Jacqueline Ayasse é uma das cinco mulheres que trabalham na planta de Affalterbach. Ser um dos técnicos responsáveis pela montagem dos motores AMG é a coroação de um longo processo de formação técnica e de muito suor dedicado à outras áreas da fábrica. A foto abaixo mostra o suporte móvel no qual os engenheiros montam os motores: eles buscam as peças necessárias como se fosse uma espécie de supermercado, selecionando-as cuidadosamente de acordo com as tolerâncias aferidas de cada conjunto.
Cada peça é aferida individualmente pelo sistema AMG Trace, que não apenas cataloga cada unidade, como também faz o cruzamento com as próprias ferramentas: os parafusos que prendem um cabeçote ao bloco, por exemplo, precisam ser torqueados em uma sequência específica, demonstradas num monitor que fica próximo ao engenheiro. No caso de haver algum problema, a tela identifica o componente mal ajustado no mesmo instante. As próprias ferramentas são monitoradas pelo AMG Trace – no caso de uma delas apresentar falha funcional com certa constância, é imediatamente substituída ou recalibrada.
Além de procurar saber mais sobre os engenheiros de seus motores, outra prática entre os entusiastas de AMG são as saborosas histórias hipotéticas sobre temperos extras que alguns deles poderiam ter colocado no motor de seu carro – pois muitos destes técnicos possuem carreira na área de competição. No meio destes mitos, ao menos um é verdade: Michael Schumacher e Nico Rosberg realmente montaram um V8 5.5 biturbo na fábrica de Affalterbach em julho de 2012, acompanhados de um dos engenheiros da AMG, e a plaqueta deste motor foi assinada pelos três.
Depois da montagem do motor, ele é submetido a ao menos dois testes: um de pressão, para procura de possíveis vazamentos, e um que a AMG chama de “teste frio”, no qual o motor trabalha em rotação lenta em uma bancada de testes. Ele não é ligado. Os componentes internos funcionam de forma passiva, movidos por uma conexão externa ao volante do motor. Este teste é suficiente para detectar o funcionamento da parte elétrica e eletrônica, hidráulica e balanceamento. Considerando todo o rigor nas etapas de montagem, não é de surpreender que um motor nunca foi reprovado nesta etapa.
Ainda assim, periodicamente algumas unidades são selecionadas para um teste funcional em um sofisticado dinamômetro, cujo valor passa dos dois milhões de euros – a AMG possui dois deles. No vídeo abaixo e na foto acima, podemos vê-lo em funcionamento com o M178, código que identifica o V8 4.0 biturbo do AMG GT. Note os dois turbos BorgWarner incandescentes, capazes de gerar até 1,3 bar de pressão e que ficam instalados entre as bancadas de cilindros: de acordo com Christian Enderle, Diretor de Motores e Powertrain da AMG, esta solução de design possibilitou que o conjunto resultante ficasse 88 mm mais curto que o antigo motor 6.3 aspirado.
Nas imagens do vídeo, temos Thomas Ramsteiner, gerente de desenvolvimento dos motores V8 da Mercedes-AMG, e Jochen Schmid, gerente de design e desenvolvimento dos componentes mecânicos da Mercedes-AMG. Nesta sala, mais de 200 sensores térmicos e mais de 100 sensores de pressão monitoram as câmaras de combustão, os cabeçotes, as turbinas, o sistema de escape e os circuitos de lubrificação e de arrefecimento.
Além da capacidade de aferir o trabalho do motor em diversos mapas de aceleração (um dinamômetro convencional só consegue aferir aceleração plena), a AMG consegue controlar as temperaturas do líquido de arrefecimento e do óleo de forma independente, podendo criar ambientes bastante limítrofes para testar o motor, que, dependendo do teste pode funcionar por até 1.500 horas sem parar. Depois do teste funcional, o motor é desmontado e cada componente é analisado individualmente, especialmente anéis, bronzinas, roletes e mancais.
A montagem artesanal do V8 M178 do AMG GT faz um contraste curioso com todas as tecnologias que ele oferece: além do exótico posicionamento das turbinas (que giram a até 186 mil rpm!) e, em consequência, dos intercoolers ar-líquido que mostramos nas imagens acima, ele traz sistema de lubrificação do tipo cárter seco (com isso, o motor pôde ficar 55 mm mais baixo. As bombas, que ficam sob o cárter, possuem fluxo de até 250 litros por minuto), que pode ser visto na foto abaixo à esquerda. Seus cabeçotes são de uma liga de alumínio refinado com zircônio, com quatro válvulas por cilindro, comando duplamente variável e injeção direta piezo Bosch, com pressão de linha de até 2.900 psi (!) e capacidade para até cinco injeções por ciclo de combustão.
O bloco apresenta ângulo entre as bancadas de 90 graus e os cilindros, com pressão operacional de até 130 bar, apresentam um tratamento de redução de atrito batizado pela AMG de Nanoslide (deposição em alta temperatura de uma trama de aço carbono em escala molecular). O M178 apresenta deslocamento total de 3.982 cc, com 83 mm de diâmetro e 92 mm de curso em cada um dos cilindros, mesma proporção de deslocamento dos motores quatro cilindros turbinados de 360 cv que equipam os A45, CLA45 e GLA45 AMG.
Uma pegadinha interessante: note na foto acima à direita que a tampa do motor na verdade não cobre o bloco, mas sim, o sistema de intercoolers das turbinas. Na fotografia abaixo fica claro que o motor está em posição central-dianteira, totalmente atrás do eixo frontal, o que, combinado à transmissão do tipo transeixo, resultou numa distribuição de peso digna de um carro de corrida: 47 por cento sobre o eixo dianteiro e 53 sobre o traseiro!
Mas melhor do que ler os 510 cv a 6.250 rpm (com corte de giro a 7.200 rpm) e os 66,1 mkgf de torque entre 1.750 e 4.750 rpm, é ver e ouvir o M178 em ação no AMG GT S. Aumente o volume pra valer e deguste o resultado do trabalho destes engenheiros-artesãos.