Já reparou como um carro esportivo que não nasceu para ser esportivo tende a ser mais interessante que um esportivo “de berço”? Um Tiguan R Line é legal. Mas imagine se a Volkswagen tivesse lançado uma Kombi com motor 2.0 flat-6 Porsche?
Um belo exemplo são as picapes esportivas: um utilitário com carroceria sobre chassi, eixo rígido, pesados e pouco equilibrados por causa da massa concentrada na dianteira, feitos para transportar carga e passar por terrenos difíceis. De vez em quando uma fabricante precisa tentar algo diferente para ver o que acontece. Muita coisa interessante surgiu assim. E a versão esportiva da F-150 foi uma delas.
Nos anos 1970 a Ford percebeu que a F-100 não era comprada só por gente do campo, mas também por jovens urbanos que gostavam da ideia de dirigir algo que remetesse à vida aventureira. Foi quando a Ford introduziu a versão Sport Custom, com cabine simples e visual contemporâneo. A foto promocional do carro, de 1978, expressa bem o espírito da coisa: os donos da picape são um casal de jovens aventureiros. E as faixas tinham um ar de carro de verão, algo para levar as pranchas de surfe para a praia.
Uma versão esportiva de verdade, contudo, veio só nos anos 1990. Logo no início da década, a Chevrolet lançou a 454 SS — com motor V8 de 454 polegadas cúbicas (7,4 litros) da Chevrolet C/K, conhecida no Brasil como Chevrolet Silverado. O motor tinha 230 cv (lembre-se que uma Ferrari 348 da mesma época tinha 300 cv) e 53 kgfm já a 1.600 rpm. Com isso, a picape chegava aos 100 km/h em menos de oito segundos. A Ford precisava de uma resposta à altura.
Chevrolet 454 SS: a Silverado que obrigou a Ford a criar a F-150 SVT Lightning
E ela veio na forma de uma encomenda do alto escalão ao Special Vehicle Team (SVT). A missão era criar uma concorrente para deixar a 454 SS comendo poeira. A base, claro, tinha de ser a F-150, a concorrente natural da C/K e também o modelo mais vendido da Ford nos EUA.
O projeto dividiu as pranchetas com o Ford Mustang SVT Cobra. A divisão SVT fora criada em 1991 com a missão de dar uma levantada na percepção de esportividade da Ford, e tinha como objetivo produzir versões de alto desempenho — daí a encomenda pela super-picape. Como o Mustang SVT estava sendo desenvolvido ao mesmo tempo, eles compartilharam alguns componentes.
O Mustang SVT Cobra de 1993 tinha um V8 Windsor de cinco litros (302 pol³) com injeção eletrônica multiponto e cabeçotes de alto fluxo inspirados no Ford GT40, combinado a uma caixa manual de cinco marchas. Com 238 cv e 38,7 kgfm, o carro ia de zero a 100 km/h em 5,9 segundos.
A picape usou o mesmo Windsor, mas na versão de 5,8 litros (351 pol³), porém com os mesmos cabeçotes do Mustang SVT. Com o deslocamento maior, o motor chegou aos 243 cv e 47 kgfm. Diferentemente do Mustang, porém, a F-150 só foi oferecida com câmbio automático de quatro marchas, que era conectado ao eixo traseiro por um cardã de alumínio. Apesar de ter tração somente na traseira, a picape ganhou as longarinas reforçadas da versão 4×4 da F-150.
O conjunto levava a picape do zero aos 100 km/h em 7,2 segundos, com velocidade máxima limitada em 110 mph, ou 177 km/h. Não era a maior velocidade final possível, mas em uma picape deste tamanho é algo que impressiona. Especialmente dentro dela. Pronta, a picape foi batizada F-150 Lightning — ou “Relâmpago” em inglês.
Curiosamente, a Ford também tomou o cuidado de trabalhar o comportamento dinâmico em caráter mais esportivo. Segundo a SVT, “o tricampeão mundial de Fórmula 1 Jackie Stewart esteve profundamente envolvido” com o projeto da picape esportiva.
A ficha técnica embasa ao menos a afirmação do comportamento dinâmico refinado: a suspensão era mais baixa (2,5 cm na dianteira e 6,3 cm na traseira), mais firme e usava amortecedores Monroe Formula GP, com mais carga. A altura de rodagem também ajudava a reduzir a sustentação por reduzir o volume de ar sob o chassi. As rodas eram exclusivas da versão, e tinham 17 polegadas de diâmetro e tala oito polegadas, todas calçadas em pneus Firestone Firehawk 275/60.
Por fora, a caminhonete tinha o tal “chrome delete”, com pouquíssimos cromados. O para-choques dianteiro era especial, também, com uma entrada de ar maior e luzes de neblina embutidas. Por dentro, o banco inteiriço da F-150 deu lugar a bancos individuais com ajustes elétricos e ergonomia mais esportiva. O volante era revestido de couro perfurado e o quadro de instrumentos tinha velocímetro com escala até 120 mph (190 km/h).
A F-150 Lightning foi apresentada no Salão do Automóvel de Chicago de 1992 junto do Mustang SVT Cobra. As vendas começaram em fevereiro de 1993, há exatos 30 anos e continuaram até 1995, quando a Ford encerrou a produção da picape. Na linha 1993 havia apenas preto e vermelho como opções de cores. Em 1994 chegou a opção branca e só. Três cores e mais nada. Nestes três anos, foram feitas apenas 11.563 picapes.
Naquele mesmo 1995 a F-150 ganhou uma nova geração completamente renovada. E não só isso: a Ford dividiu a F-Series em duas linhas — uma mais voltada ao uso geral (Light Duty) e outra para uso comercial (Heavy Duty). Com mais liberdade para trabalhar na linha leve, a SVT desenvolveu uma nova versão da F-150 SVT Lightning.
O projeto ficou pronto em 1999 e veio melhor do que a encomenda: além do visual mais esportivo, o motor era um V8 de 5,4 litros com compressor Eaton e comandos no cabeçote, que entregava 365 cv e 61,2 kgfm. Uma verdadeira assassina de pneus.
Novamente oferecida apenas com uma caixa automática de quatro marchas, a potência era suficiente para levar a picape até os 100 km/h em 5,8 segundos, com velocidade máxima de 222 km/h. Ela ainda percorria o quarto-de-milha em 15,2 segundos.
Em 2001, o motor foi atualizado e passou a desenvolver 385 cv e 62,2 kgfm, reduzindo seu tempo de aceleração para 5,2 segundos até os 100 km/h — o que fez dela a picape mais rápida de seu tempo. E, como se não bastasse, seu motor serviu de base para o Ford GT em 2005.
Por dentro, a receita da primeira F-150 Lightning foi repetida: bancos esportivos, quadro de instrumentos exclusivo e volante com revestimento de couro. Por fora ela tinha rodas de 18 polegadas calçadas em pneus 295/45 e ausência de cromados. Desta vez a produção foi um pouco maior, mas ainda assim limitada perto do volume total da F-Series desta geração: foram feitas apenas 28.124 unidades nos cinco anos de produção.
Depois dela a Ford ficou sem uma picape esportiva e só voltou a fazê-la em 2009, quando a F-150 Raptor 2010 foi lançada. Mas esta é uma história recente, que vimos ser escrita em tempo real. Houve um conceito que ensaiou uma terceira geração (acima), mas ela acabou engavetada.
O nome Lightining, contudo, voltou ao mercado, mas não do jeito que esperávamos, e sim na forma de uma versão elétrica da F-150. Ao menos o nome combina com a proposta.