Tudo começou com o Porsche 917. Ou melhor: sem ele. Em 1971 a FIA mudou as regras do Mundial de Carros Esporte (WSC, o avô do WEC) e tornou o 917 obsoleto da noite para o dia, apesar de ele ter acabado de conquistar o campeonato mundial.
Com a mudança, os novos protótipos seriam basicamente carros de Fórmula 1 com dois lugares e rodas cobertas e a Porsche não conseguiria desenvolver um desses de forma competitiva devido à sua falta de experiência na F1.
Por sorte, a FIA acabara de criar o Campeonato Europeu de GT, e o 911 tinha os pré-requisitos da categoria. Foi aí que o 911 deixou de ser um esportivo de rua para começar a se tornar um carro de corridas capaz de vencer nas pistas.
O 911 se enquadrou nas regras do Grupo 4, onde também estava a Ferrari 365 GTB Daytona Competizione, com seu V12 de 4,4 litros — que era praticamente o dobro do deslocamento do maior motor usado no 911. O jeito foi fazer um 911 especialmente para o Grupo 4.
Começando com o 911S, que já havia se dado bem no Rali de Monte Carlo e no Tour de France, a Porsche sacou o motor 2.4 e aumentou o diâmetro dos pistões de 84 para 90 mm e criou um novo motor 2.7. Os 300 cm³ de deslocamento elevaram a potência de 190 para 210 cv. A Ferrari tinha 142 cv a mais, porém pesava 1.200 kg.
Com a potência resolvida, a Porsche se concentrou na redução de peso. Arrancou tudo o que não servia para tornar o carro mais rápido, e fez uma carroceria com chapas mais finas. Os vidros também foram feitos especialmente para o novo modelo e eram mais finos também para reduzir peso. O resultado foi um carro de 975 kg — 225 kg a menos que seu rival italiano.
Para finalizar, ele recebeu uma injeção mecânica Bosch/Kugelfischer, suspensão mais rígida, pneus mais largos na traseira e um spoiler traseiro que ficou conhecido como ducktail (ou “rabo de pato”, no bom e velho português).
Com tudo pronto, a Porsche decidiu homenagear seu primeiro modelo de rua vitorioso nas pistas, o 356 que venceu a Carrera Panamericana nos anos 1950 e o batizou de 911 Carrera. Ele ainda recebeu um segundo sobrenome, que indicava sua finalidade: Rennsport, que significa “esportivo de corrida” em uma tradução livre. Assim nasceu o Porsche 911 Carrera RS 2.7, o primeiro especial de homologação da história do 911.
A FIA exigia ao menos 500 unidades do carro de rua (que era 100 kg mais pesado) para homologação, mas a Porsche acabou fazendo 1.580 unidades em 1972 e 1973. Isso porque em 1974, a Porsche lançou a segunda versão do seu Carrera RS.
Ele foi inspirado pela versão de corrida do RS, o Carrera RSR, que usava um deslocamento ligeiramente maior, de 2,8 litros. Depois de usar e abusar do flat-6 ampliado, a Porsche criou um motor de três litros, também com injeção mecânica e chegou aos 230 cv. E como se não bastasse, usou chapas ainda mais finas — tão finas que se deformavam se você apoiasse nelas.
O sacrifício valeu a pena: a carroceria aliviada e o interior espartano levaram o carro à casa dos 900 kg. E não parou por aí: a suspensão e direção eram as mesmas do Carrera RSR e os freios eram do Porsche 917. O restante do tratamento foi o mesmo do Carrera RS, com direito a um novo spoiler “whale tail” e às rodas de magnésio da Fuchs. Assim nasceu o Porsche 911 Carrera RS 3.0, o segundo especial de homologação da Porsche.
Depois dos Carrera RS dos anos 1970, a Porsche ainda evoluiu o flat-6 arrefecido a ar até chegar ao Carrera RS 3.8 dos anos 1990. Contudo logo após o Carrera RS 3.0, a marca já desenvolveu o Carrera RSR Turbo, que levaria ao Porsche 911 Turbo de rua e sua versão de corrida, o radical 935, que se tornou o principal modelo 911 nas pistas.
Em 1992, 20 anos depois da gestação do 911 Carrera RS original, a Porsche finalmente começou a trabalhar na segunda geração do esportivo. Diferentemente do modelo original, este novo não nasceu como um modo de homologar o carro de pista, mas foi uma forma de se emplacar e colocar o carro de pista nas ruas — uma diferença substancial, percebe?
Isso, porque a prioridade da Porsche era honrar o legado do RS, então eles precisavam fazer o 964 mais leve possível. Eles conseguiram reduzir quase 150 kg do Carrera 2 usando um capô de alumínio e vidros mais finos nas janelas laterais, além de remover o isolamento termoacústico e até mesmo o tratamento anti-corrosão foi deixado de lado. Evidentemente o carro não tinha assistência na direção, nem vidros elétricos, bancos traseiros ou apoios de braço. Ele tinha só os bancos dianteiros, paineis de porta simplificados e um carpete fino. Até as rodas tinham menos peso, eram as Cup de magnésio.
No final das contas, o Carrera RS ficou com 1.230 kg, mesmo com os reforços estruturais, que consistiram em pontos de solda adicionais e amarrações do monobloco. A suspensão foi rebaixada em 40 mm e amortecedores e molas vieram dos carros de competição, assim como os freios traseiros — os dianteiros eram do 911 Turbo.
Qualquer motor que a Porsche tivesse escolhido na época já o faria um esportivo ridiculamente veloz, mas ela optou pelo 3.6 M64/03, uma derivação do motor 3.6 feito para os Carrera 2 e 4, toda balanceada à mão, com volante aliviado e apoiada sobre coxins de borracha no lugar dos hidráulicos usados nos demais 911. Até mesmo o chicote elétrico foi simplificado para reduzir peso e a ECU ganhou um mapa para combustível de alta octanagem. Com isso, a potência foi de 250 cv para 260 cv.
Em termos de desempenho, na ficha técnica, ele tinha a mesma velocidade máxima do Carrera 2, porém acelerava do zero aos 100 km/h em 5,1 segundos, uma redução de meio segundo. Isso, claro, não conta a história toda, pois com menos peso e uma dinâmica mais afiada, sua vantagem era mesmo nas pistas e nas estradas sinuosas, o tipo de lugar para onde esse carro foi feito.
O Carrera RS 964 ainda teve duas versões especiais: o RS America e o RS 3.8. O primeiro deles, o RS America, foi o jeito que a Porsche encontrou de vender o Carrera RS nos EUA devido às leis de emissões e à obrigatoriedade do airbag.
Em 1993 a Porsche pegou o Carrera 2 americano, deu a ele o spoiler traseiro “whale tail”, um interior espartano com os painéis de portas planos do 911 RS europeu, revestimento de carpete no lugar dos bancos traseiros, bancos com revestimento de tecido, rodas de 17 polegadas e suspensão esportiva. A dieta incluiu a remoção do ar-condicionado, do teto solar e do radio — embora tudo isso pudesse ser comprado como opcional.
Diferentemente do RS europeu, contudo, o RS America usou o motor, os freios e a transmissão originais do Carrera 2, que tinha 250 cv em vez dos 260 cv do modelo europeu. O câmbio era o mesmo manual de cinco marchas, mas os discos eram menores no RS America. Além disso, o Carrera RS era 100 kg mais leve que o RS America.
Ainda em 1993 a Porsche lançou o RS 3.8. Naquele ano a divisão de competição da Porsche em Weissach-Flacht lançou os novos Carrera RS e Carrera RSR com uma evolução do motor boxer modificada para deslocar 3,8 litros. Para homologar o motor, a Porsche lançou uma série especial de 90 unidades batizada 964 RS 3.8.
O modelo usava a carroceria “wide” do 911 Turbo combinada ao motor aspirado de 3,8 litros que, na versão de rua, produzia 300 cv. Além do visual encorpado, ele também era identificado pelas rodas Speedline de três peças com 18 polegadas de diâmetro nos dois eixos, mas 9 polegadas de largura na frente e 11 polegadas na traseira.
A carroceria também tinha portas e capô de alumínio, que eram exclusivas do 3.8 — os demais RS usavam portas de aço estampado. Isso ajudou o RS 3.8 a manter-se na casa dos 1.210 kg, quase 200 kg mais leve que os RS America. Além dos para-lamas largos e do spoiler “whale tail” ele também tinha para-choques mais agressivos, com splitter na dianteira.
Por dentro ele usava bancos concha e o acabamento espartano típico dos Porsche RS — nada de airbags, rádio, ar-condicionado, maçanetas internas ou banco traseiro. O carro era fabricado pela própria divisão de corridas da Porsche em Weissach, e somente se alguém o encomendasse. Apesar dos 90 exemplares declarados, a revista Total 911 estima que foram fabricados 104 exemplares do RS e RSR e somente 55 foram feitos para as ruas, o que o torna ainda mais raro.
Perceba que o Carrera RS aí de cima tem a mesma receita que, mais tarde, conheceríamos nos 911 GT3 RS: carroceria alargada, baixo peso e motor aspirado com o maior deslocamento da linha. Foi o início de uma transição que resultou na atual linhagem dos GT da Porsche e que se consolidou com a chegada do último da linhagem original, o Carrera RS 993.
Ele foi construído somente entre 1995 e 1996, mantendo o motor aspirado de 3,8 litros da geração anterior, também com 300 cv. A receita, tanto do motor quanto do carro, continuava a mesma: no boxer, pistões forjados, radiadores de óleo, válvulas maiores na admissão, coletor de admissão variável e balancins aliviados.
Na carroceria, o capô era feito de alumínio, as janelas laterais usavam vidro mais fino e até mesmo os lavadores de farol foram removidos para reduzir o peso. Por dentro, só ficaram os bancos dianteiros, um carpete mais fino, os paineis de porta planos e os bancos esportivos. Freios, suspensão, câmbio, tudo foi mantido como no Carrera RS 3.8 964. Tanto que o peso é praticamente o mesmo — 1.280 kg.
Houve ainda o Carrera RS Clubsport, uma versão voltada para o uso em pista, embora ainda fosse um carro de rua, que perdia o revestimento interno, os vidros elétricos, o ar-condicionado e o rádio, e ganhava uma gaiola soldada, uma asa traseira ainda maior e um spoiler dianteiro também mais pronunciado que o do Carrera RS regular. Foram feitos só 227 exemplares dessa variação mais radical.
Note também que o Carrera RS e o Carrera RS Clubsport prenunciam uma outra tradição dos Porsche GT modernos: o Carrera RS é o modelo radical “pero no mucho” como os GT2, GT3 e GT4 atuais, enquanto o Clubsport é o porralouca, como os GT2 RS, GT3 RS e GT4 RS. Também note que o RS 3.8 da geração 964 foi uma versão de transição entre as gerações.
A Porsche ainda faz isso com os GT: o GT3 da geração 997 foi lançado com o 3.6 e recebeu o 4.0 como série especial, antes de fazer dele o motor de série da geração seguinte. Mesmo parada no 4.0, a Porsche ainda faz isso com gerações de motores e níveis de potência: repare que os GT2/GT3 de uma nova geração tem potência semelhante aos GT2 RS/GT3 RS anteriores. Nem poderia ser diferente: apesar de não se chamarem mais “Carrera RS”, os GT, no fundo, são os sucessores dessa linhagem que fez da Porsche a marca que ela é hoje.
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