No início dos anos 1950 o mundo ainda estava se recuperando dos prejuízos da Segunda Guerra e, como várias outras fabricantes de automóveis, a Mercedes-Benz finalmente começou a ensaiar sua volta às corridas.
Àquela altura, havia duas opções: os Grandes Prêmios da Fórmula 1, nos quais a Mercedes já tinha certa tradição com as chamadas “flechas de prata” nos anos 1930; ou as corridas de longa duração, incluindo as 24 Horas de Le Mans. Por questões de custo, a Mercedes-Benz escolheu Le Mans – e conseguiu desenvolver o carro perfeito para subir ao topo da categoria logo de cara.
A estratégia da Mercedes era simples: chegar sem fazer muito barulho e surpreender. Assim, foi uma surpresa considerável para a concorrência ver três cupês prateados com a marca das três pontas na dianteira – protótipos desenvolvidos especialmente para aquela temporada do Mundial de Carros Esporte (o antecessor do atual WEC), cujo visual e desempenho jamais deixariam qualquer desconfiança de que aqueles carros eram frutos de um projeto feito com orçamento reduzido, aproveitando a mecânica de um sedã de luxo para criar o novo carro de corrida.
Sim, porque em 1951, quando a Mercedes decidiu voltar ao automobilismo, seus últimos carros de corrida já tinham quase 20 anos. Ela precisaria de um novo modelo para se adequar às regras da época e aos novos tempos. A Alemanha dos anos 1950 não era o lugar mais rico do planeta, e já não havia mais um governo supremacista disposto a despejar uma fortuna no desenvolvimento de supercarros como na época das Flechas de Prata. Ela precisava se virar com o que tinha.
E o que ela tinha de melhor era o motor M188 do recém-lançado 300S (W188) e seu câmbio manual de quatro marchas. Era um seis-em-linha de três litros com três carburadores duplos da Solex e 150 cv com grande potencial para desenvolvimento, porém com um grande inconveniente: o conjunto era pesado demais.
Para compensar o peso do motor, o engenheiro-chefe Rudolf Uhlenhaut desenvolveu um chassi spaceframe de alumínio de apenas 65 kg, que seria revestido por uma carroceria também feita de alumínio. O chassi, porém, tinha um inconveniente: a resistência à torção do spaceframe vem de sua estrutura intertravada, o que resultou em laterais elevadas. Com isso, a Uhlenhaut não conseguiu desenvolver o recorte para as portas do carro. Daí veio a idéia de fazer o recorte logo acima da estrutura, invadindo parte do teto, onde elas seriam ancoradas e pivotadas.
Foi uma solução engenhosa, mas que deixou a Mercedes preocupada em um primeiro momento. Eles temiam que os fiscais de prova reprovassem o carro por causa do formato incomum, então o chefe da divisão de corridas Alfred Neubauer revisou o regulamento e disse a frase que resume as portas do carro: “Não está escrito em lugar nenhum que uma porta só pode abrir para os lados”.
A aerodinâmica era uma preocupação e, por isso, a carroceria era curvilínea e tinha a dianteira baixa, o que causou um outro problema: o seis-em-linha era alto demais para o cofre. Uhlenhaut instalou um sistema de cárter seco e inclinou o motor em 50 graus para a esquerda.
Além disso, o motor ganhou um novo cabeçote de alumínio com válvulas diagonais de maior diâmetro, além de uma nova carburação e um novo escape. O resultado: 175 cv e 21,1 kgfm para um carro que não pesava 1.100 kg. O motor foi rebatizado para M194 em referência ao código do projeto: W194.
A receita deu certo. Muito certo. Em seu ano de estreia, 1952, o W194 venceu as 24 Horas de Le Mans, a corrida de estrada Bern-Bremgarten, a Eifelrennen em Nürburgring, e a Carrera Panamericana no México, além de conseguir um segundo lugar na Mille Miglia.
Apesar do sucesso do W194, a Mercedes não planejava transformá-lo em um carro de rua. A Alemanha não era o lugar mais rico do planeta, lembra? Por que construir um esportivo de alto nível em um país que contava migalhas para comprar ciclo-carros da Messerschmitt?
A Mercedes mudou de ideia em 1953, quando seu representante nos EUA, Max Hoffman, explicou para os alemães que os EUA estavam cheios da grana e que um esportivo derivado de um carro de corridas seria um grande sucesso no outro lado do Atlântico. Hoffman confiava tanto na ideia que propôs à Mercedes um pedido inicial de 1.000 unidades, o que convenceu o diretor Fritz Konecke a desenvolver uma versão de rua para o mercado americano.
Esse é um momento que merece contextualização porque alguns universos colidem neste ponto da história. Os EUA cheios de grana, prontos para comprar um esportivo derivado de um carro de corridas, eram os mesmíssmos EUA onde Dan Gurney, Carroll Shelby, Ken Miles e Phil Hill iniciaram suas carreiras nas corridas do SCCA a bordo de esportivos europeus e hot rods — uma cena automobilística que levou a GM e a Ford a desenvolver o Corvette e o Thunderbird (e, mais tarde, o Mustang) e da qual nasceu o Shelby Cobra e o Shelby Daytona. E mais: era o mesmo país onde Zora Duntov convenceu a Chevrolet a criar o motor V8 de bloco pequeno, o hoje lendário “Chevy small block”.
O engenheiro hot rodder: a história da carta que criou o Chevrolet small block
Foi neste cenário que Max Hoffman, um austríaco filho de judeus que fugira para os EUA nos anos 1930 e se tornara piloto de corridas. Na América ele se tornou o primeiro importador da Jaguar, Alfa Romeo, Fiat, BMW, Porsche e Volkswagen nos EUA. E foi nessa posição que ele explicou a estas marcas que havia uma demanda enorme por esportivos leves, compactos e potentes. Os fabricantes entenderam, e responderam com o Porsche 356 Speedster, o BMW 507, o Alfa Romeo Giuletta Spider e, claro, o Mercedes-Benz 300SL.
A Mercedes foi a primeira a entregar um produto pronto para essa demanda, pois a versão de rua do W194 ficou pronta em apenas seis meses. E ela conseguiu fazê-lo tão rapidamente porque ela usava o mesmo chassi spaceframe do carro de corridas, porém com tubos de cromo-molibdênio em vez de alumínio. A carroceria também foi modificada para torná-lo mais atraente e melhorar o acesso à cabine, e poderia ser feita de alumínio opcionalmente.
O motor foi mantido inclinado em 50 graus e com os mesmos três litros de deslocamento, mas trocou a carburação tripla por um sistema mecânico de injeção direta de combustível, o que elevou a potência de 175 para 215 cv com o comando de válvulas regular ou 240 cv com o comando de válvulas Sport opcional. Essa variação do motor M188 é conhecida como M198, em referência ao código de projeto do modelo.
A suspensão usava eixo oscilante na traseira e braços triangulares assimétricos na dianteira, enquanto os freios usavam tambores aletados para resfriamento mais rápido e já eram servo-assistidos. Para finalizar, ele finalmente ganhou um nome, estreando uma sigla inédita na linha Mercedes: 300SL, sendo os números a referência ao motor de três litros (300 centilitros) e as letras significando Super Leicht. Nascia ali a Classe SL da Mercedes.
Por muito tempo acreditou-se que a sigla SL significava Sport Leicht (esportivo leve)— a própria Mercedes-Benz usava esse significado em seu site oficial. Mas uma matéria da revista alemã Auto Motor und Sport publicada em 2017, investigou a origem do nome e descobriu que ele significa Super Leicht. Um documento encontrado no arquivo histórico da Mercedes confirmou o significado e a marca passou a usar Super Leicht em seu material atual.
O 300SL foi apresentado ao público no International Motor Sports Show em Nova York, no dia 6 de fevereiro de 1954 (acima). Sim: a estreia não foi na Alemanha, mas nos EUA devido ao foco naquele mercado. Dos 1.400 carros fabricados pela Mercedes entre 1954 e 1957, 1.100 (quase 80%!) foram vendidos nos EUA pelo próprio Max Hoffman.
O carro foi um sucesso instantâneo em seu segmento e foi comprado por praticamente todas as celebridades e poderosos da época, como Juan Perón, Herbert von Karajan, Tony Curtis, Juan Manuel Fangio, Sophia Loren, Gina Lollobrigida, Zsa Zsa Gabor e Glenn Ford.
A separação dos SL
Dois anos depois, contudo, as vendas começaram a cair e a Mercedes começou a pensar no que fazer com o carro: tirá-lo de linha ou desenvolver uma evolução?
Na mesma época a Porsche e a BMW estavam indo razoavelmente bem na Califórnia com o 356 Speedster e o 507, então a Mercedes decidiu criar uma versão conversível para o mercado californiano. Foi assim que nasceu o 300SL Roadster, em 1957.
Para fazer o roadster a Mercedes modificou o spaceframe para permitir portas convencionais e um porta-malas de verdade (o coupé leva o tanque de combustível e o estepe na traseira) e deixou de oferecer o comando de válvulas básico, passando a usar o Sport como padrão — o que significa que ele é mais potente que o cupê, com 240 cv. A Mercedes também modificou os faróis do 300SL Roadster; eles deixaram de ser circulares e passaram a ser retangulares e verticais.
Em 1957 ele foi oferecido somente com uma capota de tecido, mas a Mercedes já planejava uma uma capota rígida para deixar o carro mais adequado ao uso durante o ano inteiro. O desenvolvimento da capota rígida começou ainda em 1957. Com a intenção de reproduzir a silhueta do 300SL Coupé, ela tinha um teto em queda, mas adotou um vigia envolvente em vez de três janelas separadas pelas colunas C.
Curiosamente, a Mercedes tentou reproduzir as asas de gaivota no primeiro protótipo desta capota. Ela tinha com duas abas recortadas e pivotadas na porção central, muito parecidas com as portas do primeiro 300SL de corrida, de 1952.
300SL Gullwing Roadster: quando a Mercedes tentou fazer um conversível com portas asa-de-gaivota
Esse protótipo foi batizado provisoriamente como Flügeltüren Roadster — que pode ser traduzido como “roadster asa-de-gaivota”, uma vez que Flügeltüren significa literalmente “portas asa”. Esta capota nunca foi adiante, muito provavelmente por não fazer sentido em conjunto com as portas convencionais e soleiras baixas. No fim das contas, o teto rígido opcional foi lançado em 1958, como uma peça inteiriça, sem aberturas além das janelas.
A estratégia de transformar o 300SL em um roadster deu certo: o modelo foi produzido ao longo de sete anos, sendo encerrado em 1963 com 1.858 unidades vendidas. Naquele mesmo ano, a Mercedes decidiu apostar na continuidade daquela nova Classe e lançou um novo SL, porém seguindo a receita do roadster, e não do cupê.
O 300SL Roadster, no fim das contas, Foi um divisor de classes: enquanto ele deu origem à Classe SL, que existe até hoje, o sucessor legítimo do cupê só nasceu em 2003, quando o SLR McLaren foi lançado, comemorando os 50 anos do 300SL Gullwing.
Ele também deu início à Classe dos supercarros da Mercedes, que atualmente está em sua quarta geração com o AMG GT C192 — do qual deriva também o atual SL AMG, que uniu os dois irmãos depois de 60 anos de separação.
Gullwing em dose dupla: conheça todos os detalhes dos Mercedes 300SL asa-de-gaivota em Araxá!
Esta matéria é uma amostra do nosso conteúdo diário exclusivo para assinantes, e foi publicada sem restrições de acesso a caráter de degustação.
A sua assinatura é fundamental para continuarmos produzindo, tanto aqui no site quanto no YouTube, nas redes sociais e podcasts. Escolha seu plano abaixo e torne-se um assinante! Além das matérias exclusivas, você também ganha um convite para o grupo secreto (exclusivo do plano FlatOuter), onde poderá interagir diretamente com a equipe, ganha descontos com empresas parceiras (de lojas como a Interlakes a serviços de detailing e pastilhas TecPads), e ainda receberá convites exclusivos aos eventos para FlatOuters.