Esportivos de tração integral hoje são lugar-comum — especialmente nos supercarros. Afinal, não é tão simples fazer um carro de 600 cv e entregá-lo a um motorista comum quando se tem apenas tração nas rodas traseiras. O Mustang nem tem isso e veja só o que aconteceu… virou meme.
Mas houve uma época em que tração integral era coisa de utilitário off-roader ou carro de rali — que também é um “off-roader”, na prática. O uso de tração integral no asfalto era algo que não parecia fazer sentido. Ao menos não até o surgimento do Audi 200 Quattro em 1988.
Na época a Audi queria melhorar sua imagem nos EUA e conquistar mais espaço no mercado americano que, àquela altura anos 1980, estava em ascensão. O desempenho matador do Quattro nos ralis poderia ser uma boa forma de alavancar as vendas… se os americanos acompanhassem os ralis europeus. Para piorar, na metade dos anos 1980 a Audi estava envolvida em um escândalo de aceleração não-intencional.
Entre 1983 e 1987, as vendas da Audi despencaram nos EUA depois de vários recalls do Audi 5000 (o nome americano do Audi 100/200). Eles eram associados a relatos de aceleração repentina não-intencional que resultaram em seis acidentes fatais e outros 700 não-fatais.
Para recuperar sua imagem, a fábrica inscreveu um sedã 200 Quattro na temporada de 1988 da Trans-Am. Ele foi o garoto-propaganda do turbo e da tração integral, as tecnologias que se tornaram a assinatura da marca. A Audi já tinha dois títulos do Audi Quattro nos ralis do Grupo B da FIA, mas não tinha muita experiência em corridas no asfalto. O herói do Grupo B, Walter Röhrl foi escalado para pilotar ao lado dos vencedores de Le Mans Hurley Haywood e Hans-Joachim Stuck.
Na época, a Trans-Am era uma das maiores categorias do país, com muita grana rolando, patrocinadores grandes e a chance de ganhar bastante popularidade junto ao público com um carro vencedor. Também era uma época esquisita, porque as disputas entre muscle cars dos anos 1960 e 1970, com Camaro, Mustang e Challenger, deram lugar a uma rivalidade mais diversificada: o Mustang deu lugar ao Mercury Capri na rivalidade com o Camaro, a Buick tinha carros turbinados e havia até um espaço para carros japoneses, como o Nissan 300ZX. E foi no meio desse bolo que a Audi entrou.
Mas antes, temos que voltar dois anos no tempo. Era 1986, e a Audi decidiu testar a capacidade do Audi 200 — que, nos EUA, era conhecido como Audi 5000 — com um recorde de velocidade sobre terra. O carro, que recebeu o nome especial de Audi 5000CS Turbo quattro, era equipado com tração integral, diversas melhorias aerodinâmicas e um motor cinco-cilindros turbo de 650 cv. Ele também estava de acordo com todas as regras da Nascar, e conseguiu uma velocidade média de 332,853 km/h, com picos acima de 350 km/h no Talladega Speedway.
Foi exatamente aquele carro que a Audi decidiu aproveitar para correr na Trans-Am. Em 1987 a Audi passou o ano trabalhando no projeto que transformaria seu recordista de velocidade em um carro de corrida de turismo.
A transformação começou pelo bodykit: o Audi 200 era um carro grande na Europa — o maior vendido pela Audi no Velho Mundo — mas ainda era menor do que o exigido pelo regulamento americano, que estipulava um comprimento mínimo de 4,90 metros e largura mínima de 2 metros.
Depois veio o motor, que perdeu o sofisticado cabeçote de cinco válvulas por cilindro usado no carro recordista e ganhou outro, bem mais simples, com duas válvulas por cilindro. Assim, a potência caiu para 510 cv — bem abaixo dos mais de 600 cv que a maioria dos concorrentes e seus V8 aspirados. O turbocompressor KKK operava no limite, a 2,8 bar para não comprometer a durabilidade.
O grande trunfo do carro, contudo, era seu sistema de tração integral quattro, com diferencial central, praticamente idêntico ao usado no Quattro do WRC, e moderada por um câmbio manual de seis marchas. A principal vantagem não era apenas a velocidade nas saídas de curva, mas a possibilidade de combinar diferenciais de acordo com as condições da pista para mitigar sub-esterço ou sobre-esterço.
Com isso, o carro era insuperável. Mesmo tendo que “aprender” a pilotar o carro durante a pré-temporada, Stuck, Hurley e Röhrl imprimiram uma sequência impressionante de vitórias — oito em treze corridas, garantindo 93 pontos para a Audi, que ficou com o título de construtores. O campeão entre os pilotos foi Haywood, garantindo que ninguém mais tivesse tantos motivos para comemorar quanto a equipe de Ingolstadt.
Até então, não havia nada no regulamento que proibisse o uso de tração integral, mas as equipes americanas acabaram fazendo pressão sobre os organizadores da Trans-Am e, no ano seguinte, qualquer carro que não tivesse tração traseira e um motor americano debaixo do capô estaria banido da categoria.
O segundo ato
À Audi restou disputar o campeonato GTO da IMSA. Só que ali o carro não seria o Audi 200. Seria o Audi 90, o sedã médio compacto da marca nos EUA. Mas não aquele que um pai de família poderia comprar na concessionária. Ele tinha quatro portas e também tinha tração integral, mas somente parte do teto vinha do 90. O restante era uma bolha de fibra de vidro que recobria um chassi tubular onde era instalado o powertrain de cinco cilindros e o sistema de tração integral.
Nem mesmo o motor pôde ser reaproveitado do 200 Trans-Am. Ele precisou ser modificado com um novo cabeçote de quatro válvulas por cilindro, um turbo do tamanho de um melão e potência variando entre 510 e 720 cv. Os testes em túnel de vento resultaram na imensa tomada de ar dianteira e no spoiler traseiro.
Como era algo inédito para a Audi, esse negócio de carro tubular, o desenvolvimento atrasou e a equipe perdeu a corrida de Daytona. Uma dupla de 90 Quattro GTO estreou no Miami Grand Prix. Nenhum dos dois terminou.
A equipe não foi à corrida seguinte, em Sebring, mas depois voltou com vitória em Summit Point e Mid-Ohio. Os competidores começaram a reclamar na hora porque o carro tinha aderência e comportamento inigualável. Em entrevista à revista americana Road & Track, em 2018, Stuck disse que os carros “podiam fazer qualquer traçado”: “Eles nos passavam por dentro, devolvíamos por fora“, disse o piloto alemão.
Ele próprio conquistou quatro vitórias seguidas com o Audi. Ainda na entrevista, ele disse o seguinte:
“Este foi um dos meus carros favoritos… a relação peso/potência e o sistema de tração integral. O ronco. Tínhamos esta válvula de pressão antes do turbo, que assoviava. E também a capacidade de fazer com o carro o que bem quiséssemos. Era como estar no paraíso.”
O 90 Quattro GTO terminou no pódio em nove das 13 corridas, com cinco dobradinhas. O título ficou com os Mercury Cougar da Roush Racing, mas o 90 Quattro GTO inaugurou a operação moderna da Audi no automobilismo. Quando Stuck se aposentou em 2011, a marca já tinha títulos na American Le Mans Series, European Le Mans Series, no Campeonato Britânico de Turismo e no DTM, além de nove vitórias em Le Mans. Stuck acredita que aquelas duas primeiras campanhas na Trans-Am e na IMSA mudaram a forma que as pessoas enxergam a Audi.
“Somos bávaros, viemos com nossos lederhosen e entramos direto no coração dos fãs. A torcida aqui é diferente da Europa. Eles são muito mais envolvidos. São respeitosos e conhecem tudo, é assim que nos tratamos. A Audi foi muito bem-vinda e bem aceita. Exceto pelos nossos rivais, que ficaram putos.”
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