Muita gente protestou por não ver os injustiçados nacionais no nosso Top de ontem, mas as sugestões foram tantas, e tão boas, que os nacionais mereciam um espaço só deles. Antes não fosse assim, cá entre nós, e os modelos e o mercado brasileiro sempre tivessem sido justos e corretos com os bons carros que foram fabricados aqui. Mas a vida não é justa. E o Brasil, muito menos, tanto que a seleção foi difícil pacas. Não fique bravo se a sua não apareceu por aqui. Da enorme lista de grandes sacanagens testemunhadas por nosso mercado, essas são as mais representativas.
IBAP Democrata
Foto: ParachoquesCromados
Essa, sem dúvida, foi a maior de todas. Quando fiz a pergunta “Por que não temos uma fabricante brasileira?” no finado Jalopnik Brasil, ficou claro que a melhor chance que tínhamos para que isso acontecesse foi com o empresário Nelson Fernandes.
Em 1962, ele sonhou em montar uma fábrica brasileira de automóveis. Para isso, bolou um sistema de financiamento por ações, com 400 mil cotas, e se cercou de gente competente para tocar o projeto. Em outubro de 1963, criou a IBAP (Indústria Brasileira de Automóveis Presidente). O carro, que inicialmente seria um veículo barato, acabou se tornando um modelo de luxo, mais lucrativo, para ajudar as operações a deslanchar. No final de 1964, ele apresentava o Democrata.
Com carroceria de fibra de vidro, ele teve duas gerações. A primeira, de quatro portas, foi apresentada até ao presidente brasileiro da época, Humberto de Alencar Castello Branco, mas era tão parecida com o Chevrolet Corvair (outro injustiçado) que, em 1967, saiu a segunda fornada do carro. Tinha 4,68 m de comprimento, 1,72 m de largura e 1,39 m de altura. Baixo, bem esportivo, e com apenas duas portas.
Várias carrocerias foram construídas e exibidas pelo Brasil para mostrar a durabilidade do modelo. Os demonstradores davam marretadas nelas para mostrar que eram quase inquebráveis.
Os motores foram projetados na Itália e seriam fabricados aqui, a não ser a primeira leva, de 500 unidades. Em vez do boxer do Corvair, ele era um V6, também com bloco de alumínio. O ângulo entre os cilindros era de 60º e ele deslocava 2.498 cm³. Rendia 120 cv a 6.000 rpm pelo método Cuna (Commissione Tecnica di Unificazione dell Automobile, italiana), uma regra de medição parecida com a da SAE, ou seja, só o motor, sem acessórios, em bancada. A diferença é a temperatura de medição (15ºC, em vez de 20ºC) e o ajuste de carburação (ou injeção) e de ponto, que devem ser os mesmos do carro de série. Na SAE, podem ser os ótimos.
Com motor traseiro e tração traseira, suspensão independente nas quatro rodas e 1.150 kg, ele chegava à máxima de 170 km/h. Pelo que consta, nenhum concorrente da época chegava perto disso. O porta-malas ficava na dianteira.
Os problemas haviam começado já em 1964. Parte da imprensa fazia campanha contra o carro, chamando-o de “vento”, o vaporware da época. José Roberto Nasser, em seu livro “Democrata, o carro certo no tempo errado”, conta como as montadoras e fabricantes instaladas por aqui na época sabotaram o veículo, ameaçando grandes grupos de comunicação de cortar a verba da publicidade caso fossem favoráveis ao Democrata ou mesmo se dessem espaço a ele.
Em 1965, foi convocada uma CPI para investigar a IBAP. Seus diretores foram processados. Os primeiros 500 motores do carro foram apreendidos como contrabando e, posteriormente, vendidos como sucata. O Banco Central, por fim, impediu a venda de ações, o que inviabilizou o negócio, encerrado em 1968. Como na história de Preston Tucker e de John De Lorean, nada foi provado contra o empresário brasileiro.
Ainda hoje há pessoas que consideram a IBAP um grande golpe, mas todas as evidências vão em sentido contrário. Fernandes havia construído um clube e um hospital com ações. Depois da IBAP, criou um cemitério vertical. Se fosse golpista, tinha enfiado a viola no saco e partido para algum paraíso tropical para curtir o dinheiro. Ele e seus sócios acionistas foram seriamente injustiçados.
Com eles, o Democrata, que, lógico, não sobreviveu na ditadura. Mas, acima de tudo, o Brasil, que perdeu a chance de ter uma fabricante nativa de carros quando isso ainda era possível.
Quem quiser comprar o livro com a história toda pode procurar no e-mail [email protected]. Ele custa, desde 2006, os mesmos R$ 40, um milagre de honestidade e de resistência à inflação que se pode creditar a São Roberto Nasser. Mais os custos de envio, evidentemente. Pra quem gosta de história e reclama da falta de memória do Brasil, é indispensável.
Volkswagen Gol e Parati 1.0 16V Turbo
Aqui o injustiçado não é apenas um carro, mas um motor, maltratado pelo público nos dois modelos em que serviu, a Parati e o Gol. O pessoal da engenharia da Volks teve o maior carinho com o motor, deixou os alemães todos impressionados. Ele tinha válvulas de escape preenchidas com sódio, para refrigerar melhor. Rendia 112 cv a 5.500 rpm e tinha torque máximo de 15,8 mkgf a partir de 2.000 rpm.
Mas depois que o modelo ganhou as ruas, em 2000, os engenheiros assistiram decepcionados a um monte de gente querendo usar os carrinhos como se fossem verdadeiros esportivos. Sem a devida manutenção. Deu no que deu.
A primeira tentativa de downsizing brasileira, motivada pela legislação restritiva do país, que deixava o IPI dos 1.0 absurdamente mais baixo que o de modelos 1.6 ou 2.0, foi um fiasco.No começo o Gol e a Parati com esses motores atraíram atenção, mas seu uso abusivo começou a dar tanto problema que o motor só resistiu até 2004, quando a Parati deixou de ser oferecida.
Mudanças na legislação do IPI também tornaram motores maiores mais interessantes e o investimento em downsizing deixou de fazer sentido. O motor, que poderia ser aplicado a outros veículos, saiu de cena. Culpa do governo da época? Negativo. Foi dos usuários, mesmo, que não conseguiram perceber que o carro, apesar de turbo, não era esportivo. Teve gente até considerando a dupla sucessora do GTI, veja só…
Fiat Marea (1998-2007)
O sucessor do Tempra e modelo que finalmente poderia ter colocado a Fiat como concorrente no segmento de modelos médios foi injustiçado não só por conta do seu estilo, com lanternas traseiras que eram detestadas pelos consumidores, mas também por conta do que deveria ser seu ponto forte: o motor de cinco cilindros.
Oferecido em três opções, 2.0 20V, 2.4 20V e 2.0 turbo 20V, o Fivetech tinha um dos roncos mais bonitos entre os motores à venda no país no final dos anos 1990, mas logo ganhou fama de manutenção complicada. Para trocar a correia dentada, por exemplo, é preciso ter ferramentas específicas, o que limitava a manutenção às oficias autorizadas e/ou especialistas no modelo — o que também encarecia o serviço.
O problema mesmo, foi o intervalo de trocas de óleo recomendado pela Fiat nos primeiros anos: 10.000 km sob uso severo ou 20.000 km em condições ideais. Com a lubrificação prejudicada por intervalos de troca inadequados, foi apenas uma questão de tempo para que os motores começassem a ter problemas graves.
Quando surgiu a opção 1.8, com motor de quatro cilindros, muita gente a preferiu em vez da 2.0 ou mesmo da 2.4, pela manutenção mais simples, mas o Marea desvalorizava com ele tanto quanto com o Fivetech. O estrago estava feito e o Marea nunca se recuperou. Mesmo depois da reestilização da traseira, no modelo 2002, com lanternas iguais às do Lancia Lybra, modelo com o qual ele dividia plataforma.
VW Amarok
A primeira picape média da Volkswagen prometia causar uma revolução no mercado brasileiro. Usaria um pequeno motor 2.0 biturbo diesel, de altíssima tecnologia, teria uma rodagem parecida com a de um carro de passeio e excelente capacidade de carga. O que deu errado? A famosa teimosia alemã.
Enquanto a picape era desenvolvida, rumores davam conta de que ela seria lançada primeiro com câmbio manual. E quase toda a imprensa especializada avisou que a demanda era por modelos automáticos. O agronegócio não queria saber de um modelo apenas de trabalho. Queria veículos luxuosos, confiáveis e automáticos. Ou a Volkswagen não ouviu ou não tinha como consertar. O lançamento veio com câmbio manual de seis marchas.
Além de não ter reputação no segmento, a Amarok precisava ser abastecida com diesel S50, com baixo teor de enxofre. As concorrentes não tinha esse tipo de restrição. As vendas, como a imprensa já tinha cantado a bola, foram fracas.
Com a chegada da versão automática, a única com oito marchas do segmento, os problemas começaram a aparecer no motor. Relatos de quebra de correia dentada por entrada de poeira no guarda-pó da correia começaram a se espalhar, além de outros problemas menos importantes.
Os planos para uma versão SUV foram abortados. Hoje, a picape vende muito pouco perto do que sua dinâmica e projeto poderiam permitir. Dançou por erro de estratégia da marca.
Renault Mégane
O primeiro sedã médio da Renault fabricado no Brasil foi também o último, pelo menos até agora. Teve carreira curta, de 2006 a 2010, em boa medida por causa do estilo controverso de sua traseira. O hatch, ainda mais esquisito, nem foi fabricado por aqui. Mas era bom carro. Tanto que sua versão perua, a Grand Tour, continuou em linha até 2012, tendo produção interrompida para a chegada do Duster.
Equipado com motores 1.6 e 2.0, o Mégane oferecia bom espaço interno e um porta-malas de respeito, com 520 litros. Se o motor 1.6, com 115 cv a 5.750 rpm e 15,2 mkgf a 3.750 já era suficiente, o 2.0 de 138 cv a 5.500 rpm e 19,2 mkg a 3.750 rpm deslocava o sedã de 1.320 kg com uma razoável pitada de tempero.
Seu rodar confortável, o bom acabamento e a ótima oferta de itens de série seriam motivos mais do que palpáveis e extremamente racionais para ele vender muito mais do que efetivamente conseguiu. Inclusive porque seu preço era bastante competitivo. Foi o estilo o seu grande vilão, além, é lógico, de um mercado que não o acolheu como poderia.
VW Fusca com teto solar
Outra injustiça que se pode creditar ao público foi com o Fusca com teto solar. Apelidado pela concorrência de Cornowagen (tinha a abertura no teto para os chifres tomar um ventinho), o modelo chegou em 1965 com a opção de teto solar de chapa, pintado na cor da carroceria, com acionamento por manivela. Era coisa fina, mas foi morto por provincianismo.
Sorte do dono que aguentou as gozações e não caiu na tentação de soldar o teto, como muitos chegaram a fazer. Um Fusca com teto solar, hoje em dia, vale uma fortuna, principalmente pela raridade. Mas infelizmente, até hoje, é posto à venda como “Cornowagen”. Quem gosta de carro faz um favor ao tratá-lo do modo como se deve: Fusca com teto solar. E fim de papo.
Fiesta Zetec 1.4 16V
O Fiesta de quarta geração, o tristonho, foi o primeiro fabricado no Brasil. Além das versões 1.0 e 1.3, ele tinha uma que não vendeu muito, mas que fez as alegrias daqueles que gostam de fazer lenha: o Zetec 1.4 16V.
Equipado com um motor de 89 cv a 5.600 rpm e 12,5 mkgf a 4.500 rpm, ele tinha no bom acerto de suspensão seu ponto alto. Na reta podia ser até que ele não fizesse muito estrago, mas nas curvas? A carroceria baixa e os balanços curtos e a suspensão bem acertada ajudavam o Fiesta a se manter estável quando o asfalto dobra.
E por que não vendeu como deveria, sendo um carrinho tão legal, um verdadeiro precursor do Ka XR? Porque era tristonho. É como a mulher feinha que é boa de cama. O eventual namorado da moça vai agradecer a Deus por ter encontrado a criatura, mas, para virar namorado, vai ter de ter coragem de convidá-la pra sair.
Fiat 147
O primeiro carro brasileiro com motor transversal pagou o preço do pioneirismo. Nenhum carro de sua época tinha um cofre de motor tão apertado. Não foi à toa que os mecânicos da época o xingaram tanto, sem saber que o carrinho seria o padrão dali em diante.
Mas o 147 não se viu em maus lençóis apenas por ter motor transversal. Seu câmbio, de engates difíceis e imprecisos, também rendeu muito xingamento por aí, justificadamente. Mas duvidamos de que, se tivesse um câmbio extraordinário, ele teria escapado às críticas.
Não adiantava ser absurdamente econômico nem ter um espaço interno que muito carro maior não oferecia. O 147 acabou conhecido como uma bomba mecânica. E não era. Foi bode de mecânicos acostumados a mexer em Opala e Corcel II, com aqueles cofres enormes e seus motores de fácil acesso.
Gurgel Supermini
O sucessor do BR800 tinha tudo para emplacar. Estilo mais harmonioso, um motor que já tinha caído no gosto do público por ser econômico e confiável e aquela torcida para que o Brasil finalmente tivesse uma fabricante nacional. Mas o governo deu um tombo daqueles nos planos de João Amaral Gurgel.
Primeiro foi a lei do carro popular. Com o BR800, a Gurgel atuava em um nicho sem concorrentes. A redução de impostos para modelos 1.0, que beneficiaria principalmente a Fiat, com o Uno Mille, colocou um monte de cachorro grande pra brigar com o fox paulistinha. O Supermini chegou em 1992, mas serviria só para segurar as pontas até a empresa ter um modelo que pudesse voltar a colocá-la em vantagem: o Delta.
Os governos do Ceará, com Ciro Gomes, e de São Paulo, com Luiz Antônio Fleury Filho, havia prometido apoio aos planos de Gurgel, que faria uma fábrica em Fortaleza. Ali ele fabricaria até o câmbio do carrinho, com ferramental importado da fabricação do Citroën 2CV. Pois o ferramental ficou preso na alfândega. E os governos do Ceará e de São Paulo deram para trás nas promessas de ajuda. Com atrasos de produção e empréstimos por vencer, a empresa teve problemas de fluxo de caixa e acabou pedindo concordata em 1993. Em 1994, numa última tentativa de salvar a lavoura, Gurgel pediu ajuda ao governo federal, por um financiamento de US$ 20 milhões. Ele não veio e a falência foi decretada em 1994. A história toda foi contada no ótimo documentário “Sonhos Enferrujam”, produzido pelo pessoal da ECA/USP em 2004:
A injustiça é que o Supermini talvez fosse o melhor Gurgel já fabricado. O modelo que finalmente unia estilo e mecânica independente para fazer a empresa crescer. Foi muito azar não ter dado certo justo na vez dele. Ou talvez não tenha sido exatamente azar…
VW 1600, o Zé do Caixão
A propaganda de lançamento do VW 1600 mostra bem por que ele deveria ter sido um sucesso de vendas. Freios a disco na dianteira, motor mais forte (para atingir incríveis 135 km/h!), luzes de ré, painel tipo jacarandá e… quatro portas. Ainda que o estilo possa ser o grande responsável por seu fracasso, não se pode tirar das portas alguma responsabilidade.
O estilo foi o maior culpado, sem dúvida. Ou o carro não teria sido apelidado de Zé do Caixão. E não por alguma afinidade especial com José Mojica Marins, mas sim por ser quadrado ao extremo. Tanto que ele também era chamado de saboneteira.
As quatro portas, por sua vez, estavam em pleno desuso. Ninguém queria e não quis até a década de 1990. Um daqueles modismos idiotas e difíceis de entender, mas que dificultavam a revenda absurdamente. Em uma época em que os carros eram ainda mais caros do que são hoje, representando uma fatia mais gorda do orçamento. Foi o suficiente para matá-lo rapidinho. Nascido em 1968, o Zé do Caixão da VW baixou à cova em 1971.
Mercedes-Benz Classe A
Mas ele já não estava na lista anterior, dos mundialmente injustiçados? Sim, mas ele também sofreu bastante por aqui. Em boa medida por erro de cálculo da própria Mercedes-Benz. E sem o agravante do teste do alce, que não chegou ao conhecimento do grande público.
No lançamento do carro no Brasil, a marca realizou um dos test drives mais legais de que se tem notícia. Rodamos cerca de 500 km, de São Paulo a Teresópolis/RJ, onde aconteceu a entrevista coletiva, e de Teresópolis a Juiz de Fora/MG, onde o modelo era fabricado, no dia seguinte.
Houve troca de motoristas para que pudéssemos avaliar as duas versões, a A160 e a A190. Aliás, onde a Mercedes-Benz havia levantado uma fábrica só para ele, com equipamentos de ponta. A previsão era vender cerca de 50 mil carros por ano e exportar o restante. A fábrica tinha capacidade para 70 mil unidades.
Durante a entrevista coletiva, Roberto Bogus, então diretor comercial da Mercedes-Benz, foi questionado sobre o preço e o tamanho do Classe A. Em outras palavras, se não havia o risco de o consumidor preferir pegar um Chevrolet Vectra em vez do Mercedinho, já que os preços eram equivalentes. Sua resposta ficaria registrada: “Brasileiro não compra carro por metro”. O azar de Bogus e da Mercedes é que os consumidores preferiram o Vectra.
O Classe A vendeu, de 1999 a 2005, ano em que sua produção foi encerrada no Brasil, 63.402 carros. Era um pouco mais do que a marca pretendia vender em um ano, o que dá a dimensão do tamanho do prejuízo. Era um carro indiscutivelmente bom e o mais moderno à venda no país, mas custava caro, tinha manutenção cara e era pequeno.