Você provavelmente já reparou que muitos carros têm “caras”. O desenho da dianteira, com faróis, grade, para-choque e linha do capô, não raro forma uma imagem que nos traz à mente um rosto, uma expressão facial com a qual podemos nos identificar ou não. Claro, esta característica não é uma regra, e nem está presente em todos os carros, mas é comum o bastante para procurarmos rostos em todo carro. Mesmo os que, à primeira vista, não parecem ter rostos. Estamos acostumados.
O Fusca tinha um sorrisinho simpático formado pelos faróis e pela linha do capô – ou pelos faróis e para-choque dianteiro, dependendo de como você olhe. O Mazda MX-5 Miata de primeira geração tinha um sorrisão escancarado quando os faróis escamoteáveis se revelavam.
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Certos carros dos anos 90, com suas linhas arredondadas e enormes entradas de ar, parecem bagres. O Ford Fiesta Mk4 é conhecido como “tristonho” ou “gatinho” dependendo do formato dos faróis. Nem sempre o rosto é completo – às vezes, só vemos os olhos – mas quase sempre ele está lá.
Mas é fato que a orientação da grade no para-choque amplifica a impressão
Por que vemos rostos nos carros?
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A presença de um “rosto” nos carros tem tanto a ver com a percepção humana quanto com o próprio design dos carros. Você já deve ter visto aquelas coletâneas de imagens de objetos com rostos e formas que lembram pessoas ou animais, como radares de trânsito, rochas, construções, tomadas, xícaras de café, e muitas outras coisas. Pessoas que enxergam Jesus em torradas ou manchas na parede. Pintores que “escondem” rostos em diversas cenas. Carros que parecem felizes, zangados ou surpresos: tudo pode ser explicado pela pareidolia.
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Aparentemente, quando o ser humano ainda vivia no mundo selvagem e precisava garantir sua sobrevivência se defendendo de predadores, ser capaz de enxergar e identificar o padrão de um rosto, fosse ele animal ou humano, podia ser a diferença entre voltar para casa depois da caçada ou se tornar a caça. Ou seja: entre nossos ancestrais, levavam vantagem aqueles que viam os rostos dos predadores e inimigos primeiro.
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Estas pessoas sobreviveram, e seus descendentes (nós) herdaram esta capacidade. Só que, em vez de enxergar rostos para sobreviver, usamos esta capacidade basicamente para achar graça em cabides de parede e “ir com a cara” (ou não) dos carros.
O Dodge Charger é que não vai com a sua cara. Ele é um dos carros que não têm um rosto completo, mas apenas os “olhos” já dão conta do recado
Só que isto está mudando.
Eyes Without a Face
Como já dissemos, a “cara” de um carro nem sempre está… na cara. As evoluções técnicas na indústria automotiva vêm mudando as “feições” dos automóveis há décadas. Os primeiros automóveis, da virada do século 20, tinham faróis destacados da carroceria, ao lado da grade do radiador, e havia faróis de querosene que pareciam pequenos lampiões redondos. Por isso, muitos carros daquela época parecem senhores sisudos de bigode e óculos. Um exemplo clássico é o Modelo T da Ford.
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Foi assim por décadas – boa parte dos carros dos anos 30 e até 40 ainda tinha “cara de calhambeque”, com para-lamas salientes e faróis redondos, destacados em “pods” individuais. Depois, os faróis migraram para os para-lamas, indo parar ao lado da grade nos anos 60. A maioria deles era circular, mas nos anos 70, especialmente nos EUA, os faróis começaram a ficar quadrados e retangulares – formato obrigatório nos carros americanos por vários anos.
Os faróis são os “olhos” dos carros, e sem dúvida o elemento mais marcante na dianteira. Os anos continuaram passando e os faróis foram evoluindo. Nos anos 80, faróis escamoteáveis eram a moda. Nos anos 90, alguns carros começaram abandonar as lentes de vidro, adotando lentes de plástico – mais leves, mais baratas e mais fáceis de moldar em diferentes formatos.
Com o tempo, as lentes perderam a textura e passaram a ser lisas, abrindo espaço para que os designers automotivos começassem a brincar com os elementos internos dos faróis, criando formas e desenhos atrás das lentes. Projetores, LEDs, lasers, cada vez mais eficientes, luminosos e menores, eliminaram a necessidade de superfícies refletivas. O foco no formato dos faróis para definir a cara de um carro começou a ganhar importância – começaram a surgir mais “olhares” característicos que não eram necessariamente rostos completos.
Isto levou alguns designers mais ousados a… ousar em suas escolhas estéticas. Veja o mítico TVR Tuscan Speed Six, por exemplo. O cupê britânico com motor seis-em-linha de quatro litros e 360 cv era um carro de receita tradicional, com dois lugares, câmbio manual e tração traseira. Esteticamente, porém, sua carroceria de fibra de vidro tinha cara de carro-conceito. Na dianteira, os faróis se resumiam a projetores empilhados verticalmente, três de cada lado. A grade do radiador era, na verdade, um monte de furos no para-choque, e este era totalmente integrado à carroceria. Não há um rosto ali – talvez os olhos de um inseto.
Mas o TVR Speed Six era um carro de nicho. O visual do carro certamente influenciava quando a escolha era um TVR, fosse para o mal ou para o bem, mas seu verdadeiro apelo eram o desempenho e a receita old school de seu conjunto mecânico. Havia quem fizesse questão de que o carro fosse totalmente distinto de qualquer outra coisa que rodasse nas ruas, e havia quem achasse feio mas não ligasse. Não era preciso agradar ao grande público.
O Tuscan Speed Six deixou de ser fabricado em 2006, e foi só um exemplo. Três anos depois, em 2009, foi anunciado o cara que me deu a ideia de escrever este post.
O crossover sem rosto
Em 2009, no Salão de Genebra, a Nissan apresentou o conceito Qazana, um crossover compacto com para-lamas volumosos, entre-eixos curto e um curioso arranjo de faróis. Eram dois pares: um deles, de faróis menores, com formato de lâminas, localizados bem no alto do capô. O segundo par ficava mais perto do para-choque, com dois faróis maiores, redondos. Mas qual par de faróis era os “olhos”?
O Qazana começou a ser produzido em 2010, foi lançado em junho daquele ano no Japão e em setembro na Europa. Agora ele se chamava Nissan Juke, e não foram poucos os que fizeram piada com ele. Além de não ter um “rosto” definido, ele tinha proporções esquisitas, com rodas enormes, uma área envidraçada pequena e laterais musculosas. Parecia a caricatura de um carro, ou um Hot Wheels. E, caramba, ele não tinha “olhos”!
A Nissan até tentou deixá-lo atraente para os entusiastas, colocando nele o V6 biturbo de 545 cv e o sistema de tração integral eletrônico do Nissan GT-R, mas o Juke-R continuava feio aos olhos do público. Só que o jogo vira, as coisas mudam, e atitudes que são ridicularizadas hoje podem se tornar as tendências de amanhã. E, veja só, foi o que aconteceu com o visual “sem rosto e sem olhos” do Juke.
Em 2013, a Citroën apresentou sua minivan baseada no C4 de segunda geração. O hatch, lançado em 2010, tinha “olhos”. Mas a minivan, veja só, dividiu os faróis em dois, como no Juke.
Em 2014, foi a vez do crossover compacto C4 Cactus, que seguia o mesmo estilo na dianteira, e ainda ousou ao colocar painéis de borracha coloridos nas laterais.
Ambos causaram estranhamento por causa dos faróis bipartidos, e pela falta de uma expressão que pudesse ser humanizada. No caso do C4 Cactus, as proporções são mais agradáveis que as do Juke para a maioria das pessoas, mas veja como os faróis inferiores sequer são circulares.
Outros Citroën seguem a tendência atualmente: o C3 Aircross 2016 e a terceira geração da versão hatch, lançada no ano passado, adotaram a mesma identidade visual, perdendo os “olhos” e ficando menos “humanos”.
Quer mais? O atual Jeep Cherokee, lançado em junho de 2013, é completamente diferente do anterior, que tinha os faróis retangulares como os Cherokee dos anos 1980 e 1990. Em vez disso, ele adotou uma dianteira minimalista, com uma grade que avançava sobre o capô e quatro faróis minúsculos, sem qualquer semelhança com um rosto.
O Hyundai Kona, lançado em junho de 2017, pode ser considerado o mais novo representante desta tendência. Os faróis superiores são separados dos principais, e ainda podem ser percebidos como os “olhos” do carro.
Você percebeu algo em comum entre quase todos estes exemplos? Sim, todos eles são crossovers e SUVs compactos. Não é preciso procurar muito para encontrar matérias na internet falando sobre como os crossovers/SUVs menores vieram para matar, de uma vez só, peruas e sedãs. De acordo com sites de consultoria automotiva americanos como o Edmunds.com, por mais que as vendas gerais da indústria automotiva tenham caído 2,1% nos seis primeiro meses de 2017, os crossovers ganharam 1,4% de participação no mercado dos Estados Unidos, chegando a 12,8%. Já os automóveis de passeio caíram 2,2%, chegando a 10,9% de participação.
Pode ser (provavelmente é) coincidência o fato de esta mudança fundamental no design automotivo estar acontecendo justamente no segmento que mais cresce atualmente. Estamos vendo esta mudança acontecer em tempo real, o que é interessante do ponto de vista puramente analítico. Mas a coisa pode ser muito mais chocante, se você encarar com um pouco mais de drama, só pela diversão. Quem é chegado em uma teoria da conspiração vai entrar nessa comigo.
Somos extremamente apegados ao modo como os carros eram quando começamos a gostar deles. Eles eram mais humanos, e não apenas porque tinham “rostos” mais parecidos com os nossos. Tínhamos o sorriso do Fusca, a cara de mau do Dodge Charger. E por mais que os “rostos” tenham se transformado em “olhares”, ainda tínhamos certeza que seria assim por muito tempo, ainda. A onda dos carros retrô do meio da década passada está aí para provar. O Chevrolet Camaro de quinta geração tinha faróis redondos atrás das lentes de acrílico, e era uma homenagem clara ao clássico dos anos 60. A atual geração é bem menos retrô, tem faróis zangados que parecem muito menos com olhos, e não ficaria surpreso se a geração seguinte for a cara de um Transformer.
Então, talvez a onda de crossovers transformers, sem rostos humanos ou animais, com muito mais cara de gadget do que de carro, sejam a forma que a indústria automotiva encontrou de tirar do nosso próprio rosto os óculos da nostalgia, que nos fazem enxergar os carros de antigamente como muito mais legais e humanos do que os que temos hoje em dia. Talvez eles queiram que a gente aceite, porque assim a mudança vai doer menos. Os carros do amanhã serão autônomos, não poluentes, silenciosos e feitos para nos transportar, apenas. Carros frios, sem emoções. E por isso, não terão mais rostos, caras ou olhares. Gadgets.
A culpa não é dos crossovers. Eles só estão avisando.
E chega de teoria da conspiração por hoje.